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Entrevista
Yoji Yamada

Postado em 01/10/2000

O autor da mais longa série do cinema mundial faz uma crítica aos valores que dominam a sociedade japonesa após a abertura ao Ocidente

Yoji Yamada é o cineasta da simplicidade. Seu papel como cineasta é transpor os acontecimentos mais prosaicos da vida cotidiana para a tela. Sem mediações, sem efeitos especiais, seus filmes mostram um Japão solidário, despregado dos valores que informam a sociedade de competição.

Sua obra fundamental, a série É Triste Ser Homem, com 48 episódios, teve início em 1969 e terminou há três anos com a morte do ator Kyoshi Atsumi que protagonizou todos os filmes na pele do ingênuo Tora-san, o anti-herói japonês.

Em uma época em que as produções são cada vez mais sofisticadas, tanto do ponto de vista técnico como do enredo, como se explica que um filme baseado em motivos simples cative tanto o público e torne-se tão popular?

O trabalho, a missão dos diretores de cinema, é justamente procurar produzir filmes da maneira mais simples e com conteúdo extremamente complexo. O que os mais experientes diretores falavam é que o conteúdo da história deve ser contado em três linhas.Como um hai kai?
Não é bem isso, mas seria, por exemplo, descrever a história de Romeu e Julieta como uma história de amor entre jovens de duas famílias que brigam entre si.

Seria possível o senhor fazer um breve histórico de como as temáticas abordadas em seus filmes evoluíram desde a década de 1960 até hoje, focando problemas diferentes, mas sempre buscando a mesma essência?
Produzi o primeiro episódio da série É Triste ser Homem, em 1969, justamente quando o Japão estava vivenciando o crescimento econômico. Era uma época em que os japoneses só pensavam em trabalhar, em ganhar mais dinheiro. Eles eram muito ávidos. O primeiro episódio da série era totalmente oposto a esse arquétipo. O personagem não tinha avidez, não ia em busca de riqueza, ele não tinha a ganância dos japoneses da época. Ele tinha amor e tempo. Na verdade, ele era um vagabundo, desempregado, mas foi justamente essa figura que captou o coração do povo no Japão. Os japoneses, dentro de um ambiente social no qual era primordial trabalhar e ganhar dinheiro, não estavam realmente satisfeitos. Eles deviam ter uma preocupação endógena de que talvez apenas trabalho e dinheiro não fossem a verdadeira felicidade. É isso que estou sempre querendo levar para os filmes, mostrar que talvez o sentido da felicidade não seja esse. Eis o grande tema dos meus filmes. Nessa série Escola, o senhor coloca uma preocupação muito recente para a sociedade japonesa, a questão do desemprego e do esmorecimento do crescimento econômico. Como o senhor trabalhou esse problema que no fim da década de 1960 não existia?
Eu penso - na verdade não só eu - que talvez a maioria dos japoneses ache que, primeiro, o Estado tem o dever de oferecer emprego para todos, mas não é isso o que está acontecendo. A lógica se inverteu. As corporações não existem para a população, mas o Estado trabalha em função das corporações e a população que trabalha é despedida quando mais se precisa dela. Esse tipo de estrutura é até valorizado, tanto que as ações sobem quando uma empresa que não está bem resolve fazer uma estruturação. Isso é bem-visto como solução para a crise. Fico revoltado com a valorização dessa atitude enquanto a população desempregada cresce, e acho que compartilho esse sentimento com a maioria da população. As fábricas, por exemplo, estão totalmente robotizadas, não precisam mais de mão-de-obra.

Tora-san, o protagonista da série É Triste Ser Homem, representa o anti-herói, aquele que rejeita a gana de ganhar dinheiro? Como o senhor trabalha com um personagem que não consegue se colocar dentro dos padrões estabelecidos? O público se vê nesse personagem?
Poderia se falar que a existência do Tora-san é uma crítica à sociedade japonesa. Seria a antítese. Mas o personagem não foi criado para esse fim. Essa não era a intenção inicial. Eu nem considero que isso seja algo exclusivo de um personagem criado por mim. Em todos os países deve existir esse tipo de pessoa, que banca a boba mas na verdade tem dentro de si uma pureza, uma inocência que contrasta com a sociedade em vigor. Isso acontece também no Japão. Nós temos a figura do urakugô, um narrador cômico que faz parte dos clássicos japoneses. O Carlitos de Charles Chaplin, por exemplo, representa esse tipo de personagem, que se tornou universal. Quanto ao público se ver no personagem, é exatamente isso que eu quero. Busco o efeito de o público se ver dentro do Tora-san, e perceber que também tem esse lado meio bobo, meio estúpido, meio Tora-san mesmo. Na sala de cinema, há pessoas que riem assistindo ao filme, mas há outras que choram. E choram porque se vêem no personagem, algo do tipo "poxa, eu também sou assim, eu também falo essas coisas bobas". Mas é isso mesmo que eu quero, que as pessoas percebam que elas têm esse lado. Eu penso que mesmo sendo brasileiro, indiano ou francês, todos devem gostar daquele tipo de personagem. Sinto que não é somente o personagem especificamente. É aquele que trabalha, tem de estar de terno preto, óculos, enfim, toda aquela imagem. E o Tora-san não gosta de trabalhar, não tem emprego fixo nem dinheiro. E não se importa. Ele está bem assim. A felicidade dele é ficar apaixonado por mulheres bonitas. Ele representa o que o japonês gostaria de ser mas não consegue.

Com os donos das empresas assistindo?
É justamente isso que eu quero, que os chefes que têm feito uma série de demissões assistam aos meus filmes, pensem no que eles têm feito, fiquem tristes e se dêem conta da situação. O ser humano, na verdade, é algo muito triste. Perceber isso também é triste, mas teria de ser feito. Por exemplo, no Japão, a cada ano, a taxa de suicídio sobe. No ano passado, 30 mil pessoas se suicidaram, tanto do lado que foi demitido como do lado de quem demitiu. Setenta por cento dos suicidas são homens na casa dos cinqüenta anos. Dá para imaginar que são pessoas que viveram dentro desse esquema empresarial e não agüentaram a pressão.

A sua filmografia é muito elogiada pela crítica, dentro e fora do Japão. Se essa temática parece tão própria do Japão, como ela pode transcender para a realidade de outros países e outras culturas? O cinema permite isso?
Não acredito que eu seria o tipo de diretor valorizado no exterior, como o Kurosawa ou, da minha geração, o Oshima. As minhas obras não entram nesse debate. Não produzo filmes para serem valorizados no exterior. Não há nenhuma intenção nesse sentido. Pelo contrário, faço filmes para os japoneses, e se eles se emocionam com certeza os estrangeiros também irão se emocionar, da mesma forma que o filme Central do Brasil emocionou tanta gente no Japão, até a mim, apesar dos costumes diferentes. O cinema é isso. Trata-se de uma arte que possibilita uma linguagem comum, passar a emoção de uma maneira universal.

Como o senhor vê a transformação, se é que ela existe, dos valores da sociedade japonesa, principalmente depois de uma abertura maior ao Ocidente em relação aos costumes? Como o senhor lida com isso nos seus filmes?
Mais do que uma transformação dos valores, eu acho que, na verdade, é uma adoção de valores americanos, do estilo americano, valores da concorrência. Acredito que os japoneses devem estar totalmente perplexos diante dessa situação, dessa sociedade de concorrência. É bem possível que os japoneses não tenham o temperamento para acompanhar esse ritmo. Eu acho que teria de pensar melhor qual estilo de vida é mais adaptável para o japonês. Teria de haver mais reivindicação. Por exemplo, uma situação pior é o que as crianças estão vivendo hoje. Desde cedo elas têm de fazer vestibular, o vestibulinho, até para entrar na escola primária. Isso é terrível porque uma criança ou mesmo um adolescente de quinze ou dezesseis anos teria de viver num ambiente mais repleto de amor, e não é nada disso que acontece. Dá até medo de pensar em como essas crianças vão ser depois que crescerem.

Como o senhor transpõe isso para a tela?
O Tora-san é uma pessoa totalmente diferente. Ele não tem nada a ver com a sociedade de concorrência. Ele está fora disso. Ele não pensa em ir para a universidade, em ter um bom emprego, não está nem aí. Ele não tem dinheiro, não tem posição, cargo, não tem bens. Nem pensa no que quer. Ele nem quer.

Esse conflito aparece entre as gerações?
Quando você assiste à série do Tora-san, você pode perceber que existe sempre aquele conflito entre o sobrinho e a irmã dele. Essa antagonia, esse contraste entre o meio urbano e o campo, eu também usei no filme Meus Filhos, no qual o pai volta para a região onde morava no interior. Ele já tinha vivido muito em Tóquio contra a vontade, mais para ajudar a economia da família. Esse é o fenômeno dekasegui, que também existe no Brasil, aquela história do pau-de-arara, bóia-fria. Só que, ao contrário, ele vai do campo para a cidade, trabalha alguns anos e volta para o campo depois de envelhecer. O filme conta a história desse senhor que já voltou mas tem um passado, depois fala da relação dele com o filho, que também é meio complicada. O Tora-san, por exemplo, só para completar a importância da relação entre o meio urbano e rural, tinha muito respeito pelos agricultores. É um personagem tipicamente urbano, de uma sociedade de consumo, mas que tinha esse respeito pelo homem do campo porque ele não possuía o know-how de produzir e de ser autônomo na produção. Os agricultores têm esse conhecimento, essa experiência. Eu acho que hoje os jovens erram quando tentam viver só fazendo trabalhos fáceis: trabalham só no computador sem ter uma profissão em que realmente trabalhem a questão da mão-de-obra no sentido clássico do trabalho.

E quanto ao papel da mulher na sociedade? É um papel que vem mudando?
Nunca fiz um filme que retratasse a elevação profissional da mulher porque, na verdade, não existe isso no Japão. A posição da mulher não cresceu muito se comparada aos outros países. O Japão ainda tem uma sociedade muito patriarcal, muito machista, tanto que no poder executivo só existe uma mulher. Mesmo nos cargos, públicos ou privados, você não vê mulheres. É muito raro. As mulheres não ocupam posições importantes, posições-chaves na sociedade. Nada mudou. Até por isso, eu penso que o Japão é um país que não funciona.

Fale um pouco sobre a sua infância na China e de como isso influenciou a sua carreira.
Minha infância foi na Manchúria, na época uma colônia japonesa. Os japoneses usufruíam da situação, eram os colonizadores, e tinham mão-de-obra chinesa barata. Era uma vida boa. Porém, ao perder a guerra, a situação se inverteu totalmente e a minha família teve que voltar para o Japão como refugiada. Meu pai não tinha trabalho e nós vivemos situações muito difíceis. Toda essa experiência me fez entender o verdadeiro valor humano, eu pude distinguir quem tem uma dignidade humana de quem não tem. Mesmo se a pessoa tem uma aparência que impressiona, na verdade, olhando de perto talvez ela não seja tão formidável. Toda essa experiência me fez compreender isso e eu até utilizo muito esse olhar para fazer meus filmes.

Que corrente cinematográfica mais o influenciou?
O tipo de cinema que mais me influenciou foi o neorealismo italiano. Esse estilo me impressionou e emocionou muito. Aquelas câmeras que fixavam a vida do povo italiano pobre, as guerras etc., porém com um olhar tenro. Isso me influencia até hoje.
Como está a situação cinematográfica no Japão atualmente?
Na época em que o Kurosawa cresceu, a produção cinematográfica japonesa era muito rica. Hoje não, é muito pobre. É realmente difícil alguém ser um grande diretor nessa conjuntura. Na verdade, um bom trabalho não depende só do carisma e do talento do diretor, uma coisa crucial é a equipe. Mesmo sendo o Kurosawa, sem uma equipe competente e rica não seria possível fazer uma grande produção.

Quais são as perspectivas para o cinema japonês?
Agora a situação está muito enfraquecida na produção cinematográfica japonesa. Mas eu acredito que bons momentos virão, até porque as coisas são como uma onda. A conjuntura melhora, depois piora e depois melhora de novo. Vamos esperar que melhore.

Dentre os seus filmes, há algum que seja o preferido?
Com certeza, a série É Triste Ser Homem. Eu poderia dizer que essa é a obra da minha vida. Considero essa série uma única obra, que se fosse ser exibida duraria umas sessenta horas. Seria muito legal se eu pudesse ter feito só essa série.

No cinema brasileiro, há algum diretor de que você goste mais?
Na verdade, eu não tive a oportunidade de assistir a uma mostra de cinema brasileiro que aconteceu no Japão, porque estava filmando. Mas eu vi Central do Brasil e achei maravilhoso. Também gosto muito do Nelson Pereira dos Santos.

O que chamou mais a sua atenção em Central do Brasil e em Nelson Pereira dos Santos?
Central do Brasil é bem contrastante em relação aos filmes do Nelson Pereira dos Santos. Ele é um filme humano, transmite a mensagem da humanidade, é tenro, carinhoso. Já os filmes do Nelson são muito diferentes, são mais duros, contam a história do Brasil de um lado mais sofrido. Por exemplo, a amargura da época da ditadura, essa experiência terrível da história dos brasileiros. No Japão, esse tipo de filme é muito raro, filmes que marcam forte pelo sofrimento.

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