Postado em 08/04/2014
Maestro genial
Radamés Gnattali explorou a diversidade musical brasileira, passando com facilidade da vertente erudita à popular
No mapa da música brasileira, a trajetória de Radamés Gnattali foi desenhada de Porto Alegre ao Rio de Janeiro. A capital do Rio Grande do Sul abrigou a família do músico. Filho de italiano com brasileira, nasceu em 27 de janeiro de 1906, da miscigenação cultural fundada na corrente de imigrantes que começaram a chegar ao país no século 19.
O pai, Alessandro Gnattali, era operário e, em 1896, trocou a Europa pela Região Sul do Brasil, onde exerceu a função de marceneiro. No entanto, o gosto pela música o levou ao piano, ao contrabaixo e à direção de orquestras. A mãe, Adélia, compartilhava a vocação. Era dona de casa, mas também se dedicava ao piano e ainda encontrava tempo para ensinar música aos filhos, que não por acaso foram batizados com nomes de personagens de óperas de Verdi: Radamés, Ernani e Aída.
Radamés começou a estudar na escola do bairro, em Porto Alegre, mas a primeira língua que aprendeu foi o italiano, não o português. Depois, ingressou no ginásio Anchieta, onde estudou até os 14 anos. Porém, os estudos formais não eram o seu forte. A gagueira que o perseguia o deixava mais introspectivo e nada à vontade nas avaliações orais. Por insistência do rapaz, que não queria frequentar as aulas e desejava se dedicar integralmente à música, o pai permitiu que ele começasse a ter aulas particulares em casa.
No mesmo período, participou do exame de admissão no Conservatório de Música de Porto Alegre, sendo aprovado já na turma do 5º ano de piano. Estudando compositores clássicos, como Bach, Chopin e Beethoven, expandiu suas fronteiras musicais praticando flauta, clarinete, violino e viola. O adjetivo “genial” é usado pelo pesquisador e apresentador do programa Olhar Brasileiro, da Rádio USP, Omar Jubran, para caracterizar essa pluralidade do instrumentista: “A principal importância dessa genialidade foi conciliar a música popular com a música clássica. Acho que esse domínio diferenciou Radamés dos contemporâneos”, opina. “Por exemplo, se o compararmos aos contemporâneos com os quais chegou a trabalhar, como Pixinguinha (1897-1973), Lamartine Babo (1904-1963) e Ary Barroso (1903-1964), ele se destacava como pianista, violinista e compunha na vertente erudita. Ao mesmo tempo, atuava como instrumentista, compositor e fazia arranjos na música popular com uma facilidade incrível.”
Primeiro concerto
Aos 18 anos, Gnattali encara a plateia carioca na Escola Nacional de Música, levado pelo professor Guilherme Halfeld Fontainha. Críticos musicais importantes acompanharam o concerto, entre eles a pianista brasileira Guiomar Novais (1895-1979).
Após a apresentação, o instrumentista volta para Porto Alegre e realiza os exames finais. Fica em definitivo no Rio de Janeiro em 1931, momento que reserva uma história inusitada. Gnattali pretende se candidatar à vaga de professor na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), motivo que determinou sua mudança para a então capital do país. Contudo, o esperado concurso não se concretizou. A vontade era tanta que o maestro chegou a escrever para o presidente Getúlio Vargas, que marcou uma reunião e, no encontro, deu sua palavra de que o concurso seria realizado, fato que nunca ocorreu. Na época, segundo Roberto Gnattali, o maestro disse que Vargas havia nomeado outra pessoa para o cargo tão almejado.
Vertente popular
A mudança para o Rio de Janeiro trouxe novas experiências para o artista, que passou a tocar nas rádios, como a Rádio Clube do Brasil, Cajuti, Rádio Nacional e Mayrink Veiga. “Era um presente para o público ter esses maestros, como o Radamés, no rádio e ter a chance de ouvir esses trabalhos, diferente de hoje. Naquele tempo, ouvíamos os músicos/cantores e também identificávamos o trabalho autoral dos maestros e solistas”, compara o músico, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e sobrinho de Radamés, Roberto Gnattali. “Quem se apresentava era conhecido por todos, motoristas de táxi, garçons, intelectuais, dentistas, advogados, médicos, pois os locutores falavam o tempo todo: arranjo do maestro x, com a participação do flautista y, então as pessoas iam aprendendo, era uma verdadeira aula de música brasileira pelo rádio”, relembra.
Em 1924, tocou piano na Rádio Clube do Brasil. Tempos depois, em 1930, como músico de orquestra. Em 1936, chega à Rádio Nacional como membro de orquestra de jazz, tango ou pianista. Lá permaneceu como músico versátil, o que o permitia improvisar durante a programação. Na época, não havia roteiro definido e, para cumprir tudo o que lhe pediam, Radamés trabalhava muito. Segundo Roberto, o maestro queria contribuir para melhorar o nível de audição do público compondo toda uma produção especialmente para a rádio. “Havia espaço para isso, pois, apesar de ser uma rádio mantida pelo governo Getúlio Vargas, nunca ouvi Radamés dizer que aconteciam intromissões na programação, pelo contrário”, relata. “Ele fazia muitos arranjos por semana e tocava piano. Tinha espaço para música europeia, americana, contemplava todos os gêneros e estilos de música. Havia muita liberdade para escolher repertório, bolar programas, foi uma época feliz e fecunda para a produção da rádio.”
Joia instrumental
Para homenagear o trabalho do mestre, instrumentistas se reuniram em 2006 para formar o Quarteto Radamés Gnattali. Membro do grupo, a violonista Carla Rincon afirma que o talento do maestro é preponderante na evolução da música instrumental brasileira. “Ele tem um charme jazzístico nas composições que se traduz numa influência incrível de melodias e ritmos do jazz. Tudo isso misturado com a riqueza rítmica do Brasil e a capacidade erudita de composição faziam dele um profissional requisitado, pela versatilidade e pela qualidade melódica”, destaca. Segundo Carla, o quarteto, que teve a oportunidade de gravar no mesmo estúdio usado por Radamés, vai lançar em 2014 a primeira e única integral de quartetos de cordas dele. “Começamos a analisar manuscritos e partituras desde 2011”, explica. “Fizemos a gravação no estúdio da Rádio MEC, no Rio de Janeiro, na mesma sala onde ele trabalhou e, lamentavelmente, foi a última gravação antes de a sala ser reformada.”
Para o sobrinho de Radamés, a marca do tio, que morreu em 13 de fevereiro de 1988, é a sua expressiva contribuição à música popular e erudita. São cerca de 330 obras para concerto e uma vasta história de parcerias na MPB, com Ary Barroso, Pixinguinha, Garoto (1915-1955), Tom Jobim (1927-1994), entre tantos outros. “Não é uma obra eventual, ele sempre trabalhou”, pontua Roberto. “Até ficar doente, ele continuou construindo sua obra. Nunca largou a labuta com a música popular e sempre de uma maneira muito intensa. Primeiro na Rádio Nacional por anos ininterruptos, depois quando acabou a rádio passou para a TV Globo e lá ficou trabalhando por 20 anos. Então, se juntarmos tudo há uma prestação de serviços para a MPB de 50 anos.”
Parte da obra e biografia do maestro Radamés pode ser consultada no site www.radamesgnattali.com.br, organizado por seu sobrinho Roberto e pela doutora em música Adriana Ballesté.
BOXE 01 - Biblioteca musical
Compondo para amigos ou para dar vazão a seu grande potencial criador, ¿Radamés Gnattali construiu o próprio acervo melódico
Pensar música, criar arranjos e produzir. Tais verbos indicam a conduta de constante produção que fazia parte da vida de Radamés Gnattali, que só parou de trabalhar em decorrência a problemas de saúde provocados por um derrame que o tirou de cena em 1988.Mas, desde muito jovem, foi mestre na arte musical. A seguir, importantes composições e arranjos de autoria do maestro.
Retratos (suíte): Composta entre 1956/1957, apresenta uma composição para bandolim solista, conjunto de choro e orquestra de cordas. Foi dedicada ao bandolinista Jacob do Bandolim (1918-1969).
Concerto carioca nº 1: Composta em 1950, feita para violão elétrico, orquestra, piano e percussão popular. Dedicada ao violonista Laurindo de Almeida (1917-1955).
Aquarela do Brasil: Gravação original de 1939, composta por Ary Barroso e com os arranjos feitos por Radamés, a música é uma espécie de hino brasileiro, que denominou o gênero conhecido como samba exaltação.
Concerto para violino e orquestra de cordas nº 4: O único feito para esse tipo de formação orquestral. Foi composto em 1967 e dedicado ao violinista Giancarlo Pareschi. Há influência do jazz, mas pouco a pouco se nota o nacionalismo intencional, calcado principalmente na temática nordestina, fonte de sua inspiração.
Fonte: Roberto Gnattali
BOXE 02 - Repertório em crescimento
Apresentação de duo de violão e violoncelo leva à plateia um pouco da obra de grandes compositores espanhóis e brasileiros, entre eles Radamés GnaTtali
O violão do gaúcho Daniel Murray (foto) e o violoncelo da coreana radicada no Brasil Ji Yon Shim se encontraram no projeto Série de Concertos, promovido pelo Sesc Vila Mariana no dia 15 de março. Com grande experiência nacional e internacional, o duo visou com o recital apresentar uma gama artístico-cultural diversa ao universo da escuta erudita. “É importante fomentar um nicho específico de músicos e produtores onde possamos contextualizar o nosso público através de mediação pautada e explicativa”, diz o técnico de programação do núcleo de música do Vila Mariana, Silas Storion. “Com isso, o projeto se insere em nossa programação de maneira lúdica e, aos poucos, buscamos uma formação de plateia que aprecie a música erudita e consiga entendê-la através de suas histórias, comentadas em cena pelos músicos e intérpretes. Adquirimos 23 arranjos de Radamés Gnattali, do acervo da Rádio Nacional (MIS-RJ) e, desse total, selecionaremos 12 arranjos para serem trabalhados pela ‘Big Band’, grupo de repertório da unidade Vila Mariana que faz parte do nosso Centro de Música”, completa Storion.
No concerto, esteve presente o lado erudito do instrumentista e compositor Radamés Gnattali. “Temos trabalhado juntos buscando sempre ampliar nosso repertório tanto como solistas quanto como cameristas. Em meio a pesquisas de repertório vamos guardando coisas que gostaríamos de tocar e dessa maneira fomos montando diversos repertórios. Quando surgiu a oportunidade de nos juntarmos para tocar, já tínhamos bastante material para essa formação de duo violão e violoncelo com partituras que tínhamos adquirido além de adaptações nossas de peças que gostaríamos de tocar juntos”, explica Murray. “No repertório desse recital contemplamos compositores brasileiros e espanhóis: Falla, Albeniz, Bellinati, Gnattali além de algumas composições minhas para violão e violoncelo. A Sonata do Radamés, além de ser uma importante obra original para essa formação no programa, nos surpreende a cada vez que tocamos. É original, atual e certamente uma de suas melhores obras.”