Postado em 01/09/2000
O arquiteto Paulo Mendes da Rocha fala de seus sonhos e projetos
MARCOS DE SOUZA
Homenageado por sua trajetória profissional na 1ª Bienal Ibero-Americana de Arquitetura, realizada em Madri, há dois anos, laureado com o Grande Prêmio Latino-Americano da Fundação Mies van der Rohe, de Barcelona, este ano, e convidado a participar da exposição brasileira na Bienal de Veneza, que se encerra no final de outubro, o arquiteto Paulo Mendes Archias da Rocha nasceu em Vitória (ES), em 1928. Embora capixaba de nascimento – seu avô materno era fazendeiro de cacau no Espírito Santo –, Paulo Mendes é um dos arquitetos mais ligados à cidade de São Paulo, onde estudou e trabalha até hoje, produzindo coisas belas, como as recentes intervenções na Pinacoteca do Estado, ou no conjunto da Fiesp, onde cravou um museu de aço e vidro. Paulinho, como o chamam seus colegas, não deixa transparecer a idade e continua um menino irrequieto, combativo e sonhador, imaginando lugares para o convívio entre os homens: casas, cidades, continentes inteiros.
PROBLEMAS BRASILEIROS – Começamos nossa entrevista com Paulo Mendes da Rocha a partir da poltrona que nos foi oferecida, no despojado escritório do arquiteto, em um dos conjuntos comerciais do prédio do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), no centro de São Paulo.
PAULO MENDES DA ROCHA – A cadeira é feita com aço-mola, que não custa nada. Você compra no tamanho exato, manda dobrar e dá apenas um ponto de solda. A capa você faz onde quiser. É uma cadeira para custar R$ 150, R$ 200. Mas os fabricantes de móveis dizem que se você vender barato ninguém dará valor. Isso eu fiz em 1957. A primeira capa foi costurada pela mulher do serralheiro que dobrou o aço.
PB – Já é uma história antiga, mas reveladora de sua trajetória. Um móvel pensado para um operário, pessoa pobre...
PAULO – Ora, você não faz nada para uma pessoa pobre. A idéia do desenho industrial era que a indústria iria produzir na escala da população. Você só pode imaginar isso num mundo moderno – moderno tanto quanto ele ainda não conseguiu ser até hoje, moderno como expectativa, não como algo realizado, porque esse é o verdadeiro sentido de moderno, um mundo em que você produz para todos.
PB – Isso soa utópico...
PAULO – Utópico? Olhe, digamos que estivéssemos falando de medicina, e que a expectativa da medicina é a saúde. Você não iria perguntar saúde para quem. É para todos. Portanto, a produção industrial traz a excelência do desenho para o benefício de todos, porque o artesão é sempre uma pessoa rara. A idéia da indústria é a da beleza para todos. É a idéia da tecelagem, é a idéia do livro: você toma o pensamento de um camarada, Shakespeare, por exemplo, e imprime para todos. Assim, um menino no interior de Mato Grosso pode estar lendo Shakespeare em sua escolinha. Esse é o objetivo do homem. Então, não é uma utopia no sentido vulgar, ou é uma utopia no sentido objetivo, que é aquilo que almejamos. Não no abstrato, numa visão metafísica, mas aquilo que pretendemos conseguir na prática.
PB – Você acha que essa visão poderia ser extrapolada para a arquitetura, para a habitação, para a cidade? Basta olhar pela janela para ver que a cidade aí fora está muito decadente...
PAULO – A casa popular, por exemplo, só pode ser urbana, e sendo urbana ela tem um padrão técnico, independentemente de o padrão dela ser pobre ou rico. Ela não pode cair, tem de estar em um endereço onde possa ser servida de luz, água, telefone, transporte público, coleta de lixo, acessível à assistência social. Ora, um bom exemplo dessa casa é o edifício Copan, projetado por Oscar Niemeyer, no centro de São Paulo. Então, a condição de uma moradia adequada é dada tecnicamente, é condicionada pela cidade onde essa casa é construída. Então, como é que você poderia produzir um quilowatt de energia para pobre ou um quilowatt para rico? E a água? Faz sentido produzir água potável de segunda categoria para pobres? Até pode ser que a água que hoje chegue para todos esteja poluída, mas nenhum órgão público poderia eticamente produzir água potável para diferentes categorias sociais. O conceito de vida não admite essa divisão entre ricos e pobres.
PB – Paulo, nossa entrevista será publicada numa revista para leigos...
PAULO – Leigos, como assim, leigos? Não existe público leigo em arquitetura. Onde nascem as pessoas, onde elas vivem? Em casas. Então não são leigos em arquitetura. A idéia de leigo surge para quem tem uma visão elitizada do conhecimento e, de fato, conhece detalhes profundos que o outro não sabe. Ou, então, presume uma sabedoria a partir de um código que ele mesmo inventou, como é o caso de certas religiões e seitas. Mas, naquilo que diz respeito ao funcionamento de uma cidade, os habitantes de um lugar como São Paulo não podem ser chamados de leigos. Claro que eu mesmo, se tiver de calcular a estrutura de uma ponte, não saberei como fazer, mas todo mundo sabe o que uma ponte deve ter. Não há em São Paulo quem não tenha visto uma obra sendo construída, seja uma casa, um edifício, um viaduto. Todos já viram uma rua nova sendo construída, os caminhões levando terra de um lugar para outro, a compactação da terra, têm a consciência dessa fabricação. Nós dois não sabemos cozinhar, mas, quando entramos num restaurante, temos certeza de que aquele prato está bem-feito. E vamos comer, sem o medo de morrer envenenados. Essa confiança na técnica, na solidariedade que a cidade representa, permite a vida urbana. Quem embarca no metrô, sabe que vai chegar.
PB – Você tem uma característica pessoal, que é a de questionar seus interlocutores, provocá-los, fazer com que eles reflitam a respeito de suas afirmações. Como está acontecendo nesta entrevista. É uma marca sua, seja numa conferência, numa aula ou numa entrevista. De onde vem essa inquietude guerrilheira?
PAULO – Há gente que acha que deliro quando estou expondo uma idéia. Mas é exatamente o contrário. Trata-se de colocar os pés no chão. Acho que não devemos nos deixar envolver por falsas questões, pela colocação de discussões fora de seu contexto real. E freqüentemente somos envolvidos por falsas discussões. Veja o exemplo daquela proposta de edifício alto, o Maharishi Tower. É uma falsa questão propor que os edifícios evoluam no sentido de ser totalizantes – dentro de um prédio colocar-se uma cidade inteira. De pronto, é possível dizer que a idéia desse prédio é uma besteira, porque nega a cidade, nega sua complexidade, que é seu encanto fundamental. E cria uma uniformidade desastrosa, porque, sendo uma coisa só, pode falir de uma só vez. Nós não queremos resolver a cidade de uma só vez. Queremos que a feitura da cidade, que é inacabada eternamente – veja as obras que Londres está fazendo agora, seja considerada uma escritura, uma narrativa, uma reflexão sobre nossa existência, com a esperança de que seja eterna no universo. A cidade é a afirmação suprema de que esse é o lugar que precisamos para viver, e nós nos exprimimos em sua construção, na feitura de seus espaços públicos. Veja, por exemplo, a idéia de público e privado. Para nós, o conceito de privado não interessa. Nada mais privado do que a mente. Se você engendra um poema, e só é possível fazê-lo na mente, você quer editá-lo imediatamente, torná-lo público.
PB – Vamos aproveitar esse mote da poesia para falar de sua arquitetura. Quando a elabora, quando faz um projeto, você deve trabalhar com critérios técnicos e noções de beleza, que não são subjetivos. Mas o que é para Paulo Mendes da Rocha fazer uma boa arquitetura – o segredo está no domínio dos materiais, da técnica ou no campo da estética?
PAULO – Essas questões são cruciais. Nós, arquitetos e artistas, trabalhamos buscando confundir subjetividade e objetividade, invenção e técnica, arte e técnica. É impossível imaginar um poema de Allan Poe sem o domínio da língua, porque é preciso escrever aquilo. Portanto, acho que nosso raciocínio é técnico. A tendência de achar que a técnica é fria e distante da liberdade que a arte necessita é uma falsa questão. Nossa liberdade é dada pela técnica, porque, se eu não fizer, não adianta pensar. E, se a técnica faltar, preciso engendrar um novo desenvolvimento técnico que responda àquele desafio. É um momento de angústia, no qual arte e técnica se confundem. Se você imaginar uma sinfonia, são apenas sete notas musicais... É um código, através do qual se pode escrever aquilo que se canta. E que diabos seriam os critérios de beleza? São critérios não necessariamente dogmáticos, não estão escritos em nenhuma cartilha, mas estão inscritos na mentalidade humana de um modo histórico, que você tem de mobilizar ante a urgência das situações.
PB – Fala-se muito do gesto que o arquiteto faz quando define o traço fundamental daquilo que vai ser uma obra. E, por outro lado, existem aqueles que dizem que não, que as coisas se definem quando se consideram a legislação, o terreno, o uso que a obra terá, enfim, o resultado de uma série de decisões técnicas tomadas ao longo da elaboração do projeto. Quando você está desenvolvendo seu trabalho, o que o move primeiro: a preocupação com a fruição que possa ter aquele espaço ou com a intervenção urbana que ele possa representar, ou o projeto começa de uma discussão mais técnica?
PAULO – O bom seria que fosse uma totalidade de tudo isso. Não acredito muito que um projeto possa ser produzido de questões do momento, ali. Geralmente tudo isso são as leis, os programas, os interesses... São um verdadeiro contratempo dentro de uma dimensão mais de caráter histórico em relação aos altos ideais do homem, do gênero humano. É a chance de fazer aquilo que não se conseguiu fazer ainda, compreende? E você mobiliza todos os recursos possíveis: modos muitas vezes até de contornar a lei... Já fiz muitos projetos – e não cito porque não vejo muita graça em eventualmente contrariar a lei –, mas você pode pensar em algumas alternativas que transformam tudo, mesmo as leis.
PB – Mas existe um traço, ou uma vertente de criação, que seja mais forte no seu trabalho, no processo de projetar?
PAULO – Seria fundamentalmente a satisfação do que se possa imaginar como o desejo de todos, a melhor expressão da vontade do arquiteto, a antena que tenta captar todas essas emanações e atender ao mais amplo desejo.
PB – O arquiteto agiria, nesse caso, como a antena que tenta captar todas as emanações do coletivo.
PAULO – Bem, seria como ocorre com qualquer um de nós. Você anda, mas que eu saiba nunca diz, a não ser em casos extremos, "como vou andar, se há um problema mecânico para isso?" Pensa-se mais em "como vou andar, em meio a toda essa gente?" Então, andamos para os outros verem, falamos para outros ouvirem, supomos expectativas antes de fazer um discurso, ainda que seja para um pequeno grupo de amigos... O que nos mobiliza? Aquilo que achamos que devemos dizer, para que nos ouçam de maneira conseqüente.
PB – E quanto ao gosto? Lembro-me de um fato curioso: em um táxi, um dia destes, passei em frente ao Sesc Pompéia, e o motorista comentou como achava feio aquele prédio. Ao olhar a obra de concreto, bruta, parece que ele realmente achou tudo muito feio. A pergunta é: como o arquiteto trabalha a questão do gosto público? No seu trabalho, você procura satisfazer esse gosto?
PAULO – Hoje pode-se dizer que o gosto público, na sua genealogia, sofre muito com a enxurrada da propaganda: estabelecem-se padrões de gosto para vender produtos, e portanto corre-se o risco de uma degeneração. Mas é possível educar, em direções muito variadas, essa opinião pública. E justamente em algumas obras que são fortes nota-se uma idéia nítida de oposição ao gosto degenerado, para se retomar a essência do gosto. É uma provocação, se quiser chamar assim. É levar o que vulgarmente é tido como feio, para voltar ao caminho da construção do belo. Mas são momentos e variam também, porque nada deve ser estabelecido como dogma. Eu conto com alguém que faz aquilo, para termos um contraponto. Não estou sozinho. Portanto, quando você destaca uma obra de arte para analisar, como especialista ou crítico, mesmo que seja justo, não poderá deixar de vê-la no âmbito do que se faz no momento, na dimensão histórica de toda a experiência humana.
PB – É muito diferente a leitura que possa ser feita de uma obra de arquitetura por um crítico, formado, experiente, daquela que possa vir do homem que habita a cidade?
PAULO – Qualquer um, mesmo o mais desavisado, deveria ser seduzido plenamente por uma obra de arquitetura. Na prática, o que estabelece essa distinção, até nítida, entre o crítico especializado e o homem comum é que geralmente este último não tem acesso a esses recintos. A grande questão de um museu não é só como fazê-lo, mas é o seu desdobramento futuro, a sua ação efetiva enquanto lugar de eventos. Então, veja, o Mube (Museu Brasileiro da Escultura) particularmente é um museu que está constrangido por uma administração completamente tola e infeliz, que não sabe o que fazer com aquilo, e que não abre o lugar para a população. Só crítico entra lá, ou seja, pessoas da elite. Para conhecer a obra de arquitetura seria necessário freqüentar aqueles jardins, as exposições, os cursos, de uma maneira eminentemente pública e popular, coisa que os museus nem sempre fazem. Particularmente, o Mube não faz; ele está nas mãos de uma elite dos moradores do Jardim Europa, que não sabe o que fazer daquilo e não tem noção nem se aquilo é belo ou não. Acho que estão mais influenciados pelo que se diz do Mube do que o que eles mesmos sabem sobre aquilo. Não sei como se tolera aquela ocupação por um pequeno grupo que está amargurando a vida daquele espaço, que considero que podia ser belíssimo, não porque fui eu que fiz, mas na medida em que se iluminasse. Imagine aqueles recintos cheios de crianças do bairro, brincando naqueles jardins, com pessoas que as olhassem, por exemplo. E no entanto está gradeado, fechado, com uma segurança que nem se sabe bem para quê...
PB – Mas você tem outros exemplos: a Pinacoteca, com uma intervenção festejada, passou a ser domínio público, é um local bastante visitado. Também o Centro Cultural da Fiesp é muito freqüentado...
PAULO – A Fiesp é interessante... Nem sei por que circunstâncias da vida, acabei intervindo nesses locais já existentes. A questão é a mesma: o espaço e a sua transformação no tempo não podem ser vistos apenas perante a natureza, mas também perante aquilo que já é a segunda natureza de um lugar – ou a terceira, ou a centésima, se se imaginar aquilo que é Roma, por exemplo. Roma é uma cidade que tem várias outras, umas por cima das outras. Portanto, a idéia da transformação já está pressuposta quando se constrói algo. Não vejo por que tanta aflição sobre o que fazer, no caso dos galpões industriais de São Paulo, por exemplo. É claro, deviam ser transformados em escolas, habitação popular, por que não? Estão ali, junto às ferrovias. Mas há esse imobilismo e esse desejo de estigmatizar a pobreza, obrigá-la a se deslocar para a periferia, quando justamente ela é a força vital de uma nação. Nós, quando dizemos que São Paulo tem uma população de 20 milhões de habitantes, não são 20 milhões de paulistas que nasceram aqui; a cidade é um foco de atração, porque ela representa novos modos de vida mais esperançosos, mais passíveis de fazer-nos florescer enquanto indivíduos, numa sociedade que está amparada no âmbito da cidade, mais do que perdida nos descampados. A escola, a saúde, a universidade, a comunicação, o vestuário, a produção industrial...
PB – Vamos falar de suas obras; qual delas é a sua preferida?
PAULO – Fiz um pequeno ginásio para o Clube Atlético Paulistano em 1957, quando tinha 29 anos. Foi minha primeira obra de concepção mais solitária, porque era um concurso e eu podia fazer o que quisesse. Lembro que estava muito sossegado, e não fiz nada para ganhar coisa alguma. Era um espaço de grande liberdade: você se inscrevia, pagava uma pequena taxa, recebia os dados de planta, programa. Sabia quem seria o júri, gente ilustre como Rino Levi, Plínio Croce. Fiz então um ensaio que achei interessante, porque nunca tinha tentado algo assim. E fui surpreendido, porque ganhei o concurso. Pouco a pouco, vendo outros trabalhos, me convenci de que estava bem eu ganhar. Minha reflexão estava centrada na dimensão pública, do ponto de vista da convivência. Pensava em como um pequeno ginásio poderia se voltar efetivamente para a rua. Não desejava nada exclusivo para o clube, mas algo que tivesse visualização mais ampla, pudesse se confraternizar com a festa da rua, com o comércio ativo. Desde o princípio entendi que, mesmo voltado a atividades esportivas, deveria também funcionar como um pequeno teatro, abrigar espetáculos. Que tivesse recursos de grande versatilidade para espetáculos de modo geral. Calculei que tudo deveria se passar naquela esplanada, como uma praça que pudesse ter luzes acesas à noite. Que tivesse um portão para se promover uma travessia por dentro no eixo maior do ginásio, o recinto do clube para a rua. E não é que, com isso, ganhei o concurso?! Depois, fui à 6ª Bienal (de Artes, ainda não exclusiva de Arquitetura), e o projeto ganhou o grande prêmio internacional. No júri, estava Eduardo Reidy (arquiteto, projetista do MAM-RJ), a quem passei a freqüentar como amigo. Ele me telefonou depois, muito feliz porque não sabia quem era o autor daquele projeto. Por tudo isso, posso achar que foi, digamos, o projeto mais encantador. E me encantou porque é possível pensar que tive muita sorte também – porque tudo podia ter acontecido de outro modo, com outro júri que pensasse diferente... Nunca me considerei um arquiteto melhor que os outros. Tudo são oportunidades, e aproveitá-las exige que se pense (e se tenha coragem de dizer) coisas não tão esperadas no plano mesquinho da funcionalidade mecânica, como por onde se entra, por onde se sai... Tudo pode ser um pouco mais festivo e imprevisível. Mas sempre somos obrigados a mobilizar recursos nítidos da técnica, portanto aparentemente restritivos, para conseguir construir algo novo. O que de fato se almeja daquele que vai gozar daquela obra é que ele possa exercer a imprevisibilidade da vida. Essa é a contradição, digamos brilhante, estimulante, da arquitetura. Você faz com precisão algo cujo destino é amparar a imprevisibilidade da vida de cada um. Como quem trabalha no décimo andar de um prédio e ao descer, usando a máquina elevador, encontra a rua com os cafés, ou o subsolo que vai ao metrô, outra máquina, para fazer o que quiser...
PB – Paulo, até que ponto a decadência das cidades brasileiras é responsabilidade dos arquitetos?
PAULO – Talvez numa medida política. O que cabe ao arquiteto, primordialmente, não é ser arquiteto para receber prêmios e ser fotografado. O que cabe a qualquer classe trabalhadora é se unir para criar instrumentos políticos eficazes para suas ações, tais como sindicatos, institutos e outras associações. A UIA (União Internacional dos Arquitetos) já foi uma das entidades mais atuantes mundialmente em defesa da paz. A consciência que o conhecimento propicia, entre aqueles que se dedicam a matérias específicas, como são a arquitetura e o urbanismo, só pode estimular, em primeira instância, uma ação política. E se a cidade é uma expressão do conhecimento, uma invenção, um reflexo construído do raciocínio dos homens, então, ela não tem o destino de ser um desastre, pelo contrário, deveria ser um sucesso. Mas ocorre que quem domina a construção da cidade é hoje o mercado. E se você considerar a cidade como um produto, exclusivamente mercadoria – construir prédios para vender –, e alimentar a mentalidade medrosa, de preservação de valores pífios, mas que são postos como fundamentais pela classe dominante, então a cidade perde seu atributo principal, que é a democracia. Então criam-se novas cidades "no mato", ocupam-se terrenos vazios e fundam-se monstros incríveis, aglomerados de prédios, condomínios fechados, exclusivistas, que estimulam o abandono da cidade. Em São Paulo, pode-se tomar como paradigma a Avenida São Luís, toda feita de belíssimos apartamentos, mas que não durou nem 15 anos!!! Todos os moradores mudaram-se para bairros distantes, obrigando-se a constituir exércitos armados para proteger-se, com cães ferozes. Lá, se alguém estiver parado numa esquina, poderá ser interpelado, coisa que não aconteceria na cidade de verdade.
PB – Por que a elite brasileira decidiu "abandonar as cidades"?
PAULO – Pela mesma razão pela qual a elite alemã apoiou o nazismo. Por medo, medo de existir, medo de viver a vida. Porque na cidade as pessoas têm a oportunidade de conviver com a diferença, de encarar as contradições da sociedade. Num condomínio, a vida é asséptica, isolada das "impurezas" do mundo real. Mas é lá que vai ocorrer o pior desastre: você vai ver o que serão as próximas gerações criadas nesses condomínios fechados. Uma criança que não vai à escola a pé, que não pode se atrasar nem se perder, que deixa de viver essa aventura, não foi a escola nenhuma. A vida foi feita para ser vivida na sua plenitude. Os exemplos em São Paulo, que cito muitas vezes para que todos vejam com nitidez, são o Copan e o Conjunto Nacional, os dois melhores prédios da cidade. No caso do Conjunto Nacional, esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta, mais ainda, porque o edifício tem múltiplo uso: é comércio e também habitação; possui cinemas, teatros, e uma garagem que não perturba o quarteirão da Avenida Paulista, pois os automóveis saem por uma rua secundária. Enfim, tem virtudes singelas de que os 2,5 quilômetros restantes da avenida não puderam usufruir, apenas pela incapacidade de prever o que iria ocorrer ali. Com esses exemplos quero mostrar que a qualidade do ambiente construído não é só uma questão de virtude do arquiteto, mas de raciocínio da arquitetura como forma de conhecimento. E que as novas disposições espaciais verticais exigem também uma nova disposição horizontal.
PB – Isso significa que a malha viária teria de ser alterada em função da verticalização da cidade ?
PAULO – Claro. Nesses edifícios, os elevadores penetram no subsolo, às vezes muitos andares até as garagens de cinemas e teatros, permitindo conexões com o metrô e uma nova circulação na cidade. Seriam soluções excelentes, tecnicamente perfeitas...
PB – Mas isso esbarra em parte na própria legislação fundiária, na forma como os terrenos são ordenados, não?
PAULO – Mas perceba que isso é besteira, também é fruto de um imobilismo interesseiro. Porque se você compra um apartamento em qualquer prédio, possui apenas uma cota-parte do terreno, que é pura abstração, já que não se pode vendê-lo em separado do edifício. Você vê que a legislação urbana precisa ser completamente renovada, porque é caduca, as leis asseguram privilégios que reduzem a importância do direito como forma de conhecimento criativo. Hoje fala-se de direito sobre as transmissões via Internet e, com certeza, há de se falar de direito de fora da biosfera. Como é o direito do espaço, quem gera o direito sobre um satélite que transmite imagens?
PB – Você e o arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, estão presentes na Bienal de Veneza. E lá você está mostrando alguns projetos grandiosos, como aquele para a baía de Vitória. Que outras obras suas estão presentes nesse evento?
PAULO – Em 1987, fui contratado pelo Ministério das Relações Exteriores para, junto com a curadora Radah Abramo, montar a exposição no pavilhão do Brasil na 47ª Bienal de Veneza. Radah distinguiu artistas que pudessem representar uma visão abstrata das cores e das formas, com aquarelas de Renina Katz e com uma geometria nítida, construtivista, de Geraldo de Barros; como contraponto, arte indígena: com a geometria na tecelagem, e arte plumária, que é a cor, a composição pictórica dessa arte. Tratava-se de uma visão de caráter crítico quanto à dimensão errática e mesmo grosseira do colonizador, do processo de extermínio dos índios, da incompreensão desse encontro de civilizações. Então, foi desse modo não usual que conheci Veneza, já que ficando lá 20, 30 dias, pude refletir, não eruditamente, mas com presença corporal, sobre o que a cidade representava enquanto transformação de um território. Para mim, foi uma nova dimensão que surgiu dos valores da arquitetura. Pois a beleza de Veneza, com aqueles canais, é a de transformar uma laguna de lama e várzea em um espaço organizado em relação ao movimento das águas, das marés, em nome do desejo humano de colocar no coração da Europa as mercadorias que começavam a navegar. E de acordo com uma visão inclusive objetiva, material, da riqueza e dos desejos humanos. E fui surpreendido, agora, com esse convite para a bienal, junto com o Lelé, e me ocorreu outra vez essa questão – a da transformação do território como a parte fundamental da arquitetura, aquilo que ampara projetos que já existem em nossas mentes. E que afundariam na várzea sem essa reconfiguração do território – uma nova geografia, necessária para sustentar os edifícios, para caminhar sobre o que antes era mangue. Com isso, e sabendo que o pavilhão brasileiro em Veneza é pequenininho, eu distingui o que você mencionou: projetos que jogam com essa interface das águas e dos territórios, do que sustenta e do que flui, essa visão mecânica da construção e do estabelecimento de áreas habitáveis.
PB – Quantos projetos você levou para Veneza?
PAULO – São três, nenhum deles ainda construído. Um é da cidade-porto fluvial do Tietê (SP), por causa da navegação do rio. Aquilo que não era navegável por causa de sua geografia original foi transformado, pela mão da engenharia, num canal navegável. Entretanto, não serve para nada, porque em suas margens não existe nada, uma vez que toda aquela área era evitada pela incompatibilidade com a vida: inundações, etc. E o melhor a fazer era pegar todo esse sistema e criar uma cidade consistente, capaz de amparar a navegação do rio Tietê como o pólo fundamental dessa navegação – uma cidade primordial. Imaginei que, se ligássemos o sistema ferroviário do norte com o do sul, por onde São Paulo se desenvolveu, com ferrovias históricas, e que hoje são internacionais (veja-se o trem da Bolívia, indo ao Pacífico), íamos cruzar esse canal e modificar todo o sistema, associando-o à navegação fluvial, que sozinha não se realiza. Aí fundava-se o porto, que pelos meus estudos coincidiria na região entre Novo Horizonte e Lins. E esse istmo de ligação entre as duas ferrovias não tem mais do que 50, 60 quilômetros. É possível construir essa ferrovia em 30, 90 dias, cruzando uma ponte que atravesse esse canal, que possui a dimensão de 3 quilômetros. É fácil imaginar as luzes dos dois lados, a cidade dual – o porto de carga, o aeroporto de um lado, do outro a cidade, o porto da cidade, como a Praça XV do Rio de Janeiro, com o lugar das barcas... Então, levei esse projeto, com dois desenhos e uma pequena maquete. Também fiz um estudo, porque fui convidado para um seminário internacional na faculdade de arquitetura de Montevidéu. A baía de Montevidéu é muito interessante pelo que representa como porta para o oceano de toda a bacia do Prata, é o nosso Paraná-Uruguai, onde inclusive o Tietê navegável vai desaguar. Nessa proposta considerei também uma idéia muito interessante que aprendi com nossos engenheiros, a possibilidade efetiva de ligar a bacia Tocantins-Araguaia, através de um canal, com a bacia Paraná-Uruguai, estabelecendo uma navegação do Amazonas ao Prata, uma verdadeira segunda costa no hinterland do continente – uma coisa maravilhosa como futuro... e nós vamos fazer essas obras.
PB – Quem são esses engenheiros?
PAULO – São homens ilustres, do Departamento de Hidráulica da USP, da comissão interestadual da bacia Paraná-Uruguai – que inclusive meu pai teve o privilégio de dirigir, porque além de engenheiro era especialista em portos e navegação. Eu tinha informações sobre tudo isso, e elas me emocionaram, na direção dessas possibilidades de transformação, capazes de nos tirar do impacto da miséria e do imobilismo; e do crescimento desordenado das poucas cidades que temos, porque não se desenvolvem outras. É uma idéia de desequilibrar o sistema das cidades médias no sentido positivo de todas progredirem. Porque é aí que surge esse porto primordial onde vão se abrigar as agroindústrias, de grãos, da carne, para o transporte fluvial. São coisas muito interessantes a ser consideradas no plano da economia, do planejamento e da macroeconomia. Com uma dimensão regional, porque interessa ao sul de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, norte do Paraná, e não só a São Paulo. Então, a cidade fluvial articularia esse canal norte-sul com a bacia do Prata, cortando todo o continente até Montevidéu.
PB – E o projeto para a baía de Montevidéu?
PAULO – Eu imaginei transformar essa baía numa praça quadrada de águas, de modo que todo barco tivesse uma visão veneziana das luzes noturnas, e tudo o mais – essa distância de 2,5 quilômetros é "doméstica", dá para se ver todos os lados da cidade –, e incentivar portanto uma navegação muito fluente de vaporettos para transporte de passageiros. A baía é muito rasa, mas com apenas 2 metros de lâmina d’água navega-se qualquer barcaça de passageiros. Portanto, a cidade adquiriria uma dimensão monumental diante dos reflexos das luzes. E há uma pequena e delicada ilhota nessa baía que, também retificada nos seus contornos – à la Veneza – e aplainada, seria transformada em um território de uns 200 por 200 metros para conter um teatro, com uma cobertura metálica que se apoiaria em flutuantes externos. A cobertura desse teatro poderia se abrir em noites de lua. E imaginei que se pudesse ouvir do seio dessa baía, à noite, quem sabe Villa-Lobos com a sinfonia amazônica... E descrevo essa imaginação para dizer que não são fantasias fúteis, mas amparam uma energia necessária para se continuar. E não se pode raciocinar com tudo isso se já não se soubesse que se faz assim, que assim foi feita Veneza, com uma delimitação de canais por cravação de estacas.
PB – E Vitória?
PAULO – Outro projeto que levarei é esse que fiz para minha terra, Vitória, e que é um ensaio de urbanização de uma área, uma esplanada nova que se construiu à frente do mar. E imaginei, em vez de lotear o espaço para pequenos palacetes, para alguns programas funcionais que estavam lá previstos, construir tudo isso em dois edifícios verticais, dentro da água; a uma pequena distância desse cais que se configurasse um pequeno canal entre os edifícios e o cais, onde os vaporettos que transportam passageiros de Vila Velha pudessem atracar em um centro comercial rico. Imagine que esses edifícios podem ter uns conjuntos de andares para a capitania dos portos, dispostos de tal forma que se possa coincidir a cota de convivência da capitania dos portos com o castelo de proa dos navios. Esse edifício colocado no mar é muito simples de fazer, porque os terrenos ganhos do mar possuem inconsistência para suportar as fundações de qualquer prédio alto. E se se tem de fazer tubulão pneumático para as fundações, tanto faz que seja a poucos metros para dentro do mar ou em cima dessa lama aterrada recentemente. As estruturas dessa construção poderiam ser feitas nos estaleiros e montadas com equipamentos flutuantes, alterando a idéia tradicional de canteiro de obra de uma forma elegante, no que se refere à exibição da técnica, como se aquilo surgisse como um "navio definitivo". Então, pensei que seria interessante pôr esses três projetos, como um contraponto reflexivo, lá em Veneza. Como quem diz: aqui também o território não era muito propício e nós tivemos de transformá-lo de um jeito ou de outro.
PB – Última pergunta: no cenário público brasileiro, quem são seus heróis?
PAULO – Bem, são muitos, vou citar alguns. Nas artes, gosto bastante de Carmela Gross, de Tunga. E também de Arnaldo Antunes – na verdade gosto de todos os poetas. Particularmente, admiro o geógrafo Milton Santos e, parece redundante falar, mas gosto muito seriamente de Oscar Niemeyer.
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