Postado em 01/09/2000
Longe da igualdade de direitos, brasileiras sofrem discriminação
A seleção feminina de futebol do Brasil fez sucesso nos Estados Unidos, numa competição em que se sagrou vice-campeã. A notícia saiu no "Washington Post", em reportagem citada pelo jornalista Elio Gaspari, da "Folha de S. Paulo". Entretanto, diz o jornalista, esse sucesso não comoveu os brasileiros. Paralelamente, o Flamengo desmanchou seu time feminino, despedindo moças que ganhavam entre US$ 75 e US$ 300 por mês. "Não é reflexo de desatenção esportiva. Tem a ver com a forma como a sociedade olha as mulheres", escreve Gaspari.
Ele tem razão. Mulher continua cidadã de segunda classe em boa parte do mundo, como revela o humor negro da piada sobre o avanço da mulher muçulmana, depois de conflitos como os da Bósnia-Herzegovina, em que morreram cerca de 250 mil pessoas. Antes da guerra, a mulher caminhava dois passos atrás do marido. Agora segue um metro à frente dele. Razão: por lá ainda há muitas minas enterradas.
As brasileiras não vivem no melhor dos mundos, mas já foi pior aqui e ainda é péssimo em muitos outros países. Hoje, as brasileiras estudam mais que suas mães e avós. Nestes anos de Plano Real também "trabalham fora" mais que em qualquer outro tempo, mesmo porque nunca tantos pais e maridos perderam o emprego. Nem por isso a renda familiar subiu, pois continua em vigor uma lei não escrita segundo a qual salário de mulher não precisa ser igual ao do homem, nem se os dois tiverem o mesmo cargo e exercerem a mesma função.
No Brasil, o rendimento das mulheres cresceu 100% mais que o dos homens, entre 1993 e 1999. O salário feminino subiu 43,3% e o masculino, 19,4%, na média. Os homens continuam ganhando mais, mas a diferença já foi maior: enquanto o homem recebia R$ 100, a remuneração da mulher era de R$ 49,40 em 1993 e passou a R$ 60,70 no ano passado. E cada vez mais mulheres tornam-se chefes de família: eram 20% dez anos atrás e agora são 26%.
As mulheres estão estudando mais que os homens: 30% delas concluem o ensino médio e só 20% dos homens conseguem isso. Dos 10 aos 14 anos, 7% dos rapazes não sabem ler ou escrever, mas só 4% das moças são analfabetas. De janeiro a maio deste ano, o Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) recebeu 70% mais inscrições de mulheres que de homens. Foram 445 mil mulheres e 260 mil homens que se filiaram à Previdência Social no período.
Por dados como esses, parece lógico concluir que foi principalmente por causa do esforço feminino que a posição do Brasil melhorou no mais recente Relatório do Desenvolvimento Humano, estudo da ONU que mede, desde 1990, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), considerado mais perfeito que o Produto Interno Bruto per capita para classificar países. Entre 174 nações analisadas, o Brasil ficou em 74º lugar no IDH, cinco pontos à frente da posição anterior (79º). A situação geral do país melhorou (apesar de ainda estar indo de mal a menos mal, como já disse o presidente Fernando Henrique Cardoso). No Índice de Desenvolvimento Ajustado ao Gênero (IDG), que destaca a posição da mulher no que se refere ao desenvolvimento humano, está na 66ª classificação.
Trabalho discriminado
Os dados acima citados, que mostram a redução das distorções entre homem e mulher, foram extraídos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada em julho. Mas o retrato da mulher tem sido pintado também por outros importantes estudos e levantamentos realizados no Brasil. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao governo federal, em análise conjuntural do mercado de trabalho, revela, mais uma vez, a discriminação por gênero no preenchimento das novas vagas, surgidas neste ano de retomada da atividade econômica.
Nas grandes regiões metropolitanas (São Paulo, Salvador, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e Brasília), só nas dez atividades consideradas mais "femininas" – como as ligadas a vestuário, calçados, beleza e indústria têxtil – as mulheres estão à frente dos homens, ocupando 80% das vagas. Mas quando o assunto se torna mais "sério" – setor eletroeletrônico, metalurgia, construção civil –, a situação se inverte e cabe a elas apenas 20% dos empregos. O salário também é sempre, ou quase sempre, menor: só em 5% dos casos a mulher ganha um pouco mais (10%) que o homem. No geral, ela recebe 37,5% menos que os colegas. Se for negra, perde um pouco mais e ganha 40% menos que o homem. O dado usado no estudo é do IBGE (Pnad de 1998): por 40 horas de trabalho, o branco recebe R$ 727, a branca, R$ 573, o negro, R$ 337 e a negra, R$ 289.
Os técnicos do Ipea indicam que as diferenças salariais por gênero são maiores à medida que as vagas exigem maior nível educacional. E isso é estranho porque os dados sociais confirmam que há mais mulheres nas escolas e que elas também atingem graus mais avançados de escolaridade. Mesmo assim, nas fábricas de aparelhos eletroeletrônicos, homem que se formou em faculdade constitui 8% do total, mas a mulher não passa de 3% nas mesmas funções.
Um estudo do economista Marcelo Ikeda, do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, apresenta as justificativas do mercado para essas diferenças: a mais costumeira, diz ele, é que as mulheres se concentram no mercado informal, em especial em serviços domésticos, cujo trabalho é tipicamente precário.
Ikeda comparou dados da indústria, do comércio, dos serviços e da administração pública e verificou que eles ocupam 70% da força feminina de trabalho. Só na administração pública elas superam os homens em número, e a qualidade de seu emprego também é claramente superior à dos demais setores. Mas nem pela escolaridade maior nem pela qualidade do emprego, entretanto, elas ganham mais, assinala o estudo, mesmo que se trate de um setor específico e dentro da mesma faixa de escolaridade. Explicação dada: o tamanho do estabelecimento empregador (as mulheres se concentram nos menores).
Com a privatização, assinala Ikeda, podem melhorar as condições de trabalho da mulher. Também a informática pode provocar isso, desde que a discriminação por gênero não retarde o preparo de meninas e moças para o uso dessa ferramenta, tida como fundamental no trabalho do próximo século.
De qualquer forma, se o país quiser crescer, terá de prestar mais atenção às mulheres. Desenvolvimento, ensina Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, resulta do processo de expansão das liberdades – políticas, econômicas, institucionais e sociais – de que as pessoas desfrutam ou deveriam desfrutar. Sen, que ajudou a montar o IDH, esteve no Brasil em meados do ano e, em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo", incluiu, entre os vetores do desenvolvimento, "a igualdade entre homens e mulheres, pois dar poder às mulheres é o fator mais importante na direção do poder econômico".
Apartheid digital
Para entrar no mercado de trabalho, é fundamental ter acesso ao estudo e à formação, sabe-se desde os tempos da Revolução Industrial. O princípio que permeia o estudo das Nações Unidas sobre o IDH é que o desenvolvimento humano é, em última instância, "um processo de expansão das escolhas das pessoas". Por isso, destacar a oportunidade de participação da mulher no desenvolvimento é fundamental quando se planejam políticas públicas.
Para um país, relegar a mulher a um segundo plano, por meio da discriminação sexual na educação e no trabalho, é política tão equivocada como a de um empresário que proibisse o trabalho a metade de seus funcionários e impedisse que se aperfeiçoassem profissionalmente. Apesar disso, é algo que acontece em todo o mundo. Ruth Cardoso, presidente da Ação Solidária, alertou em palestra na sede da ONU para a despreocupação existente em muitos países, e o Brasil entre eles, com o treinamento de meninas, moças e mulheres para o manuseio de computadores, equipamentos eletrônicos e o uso da Internet.
Manter as mulheres longe dos PCs e da Internet é condená-las irrevogavelmente ao que ativistas sociais estão chamando de apartheid digital. O risco da exclusão digital – referindo-se aos jovens, especialmente — foi tema de um recente seminário na Câmara Americana de Comércio, em São Paulo. Os números citados por Vanda Scartezini, secretária de Política e Automação do Ministério de Ciência e Tecnologia, impressionam, como tudo o que se refere a esta Nova Economia: até dezembro, o Brasil terá instalados 11 milhões de computadores, o que coloca o país no 13º posto entre os maiores parques de PCs mundiais (há cinco anos, funcionavam aqui 2,3 milhões de PCs). Telefones, sem o que não há Internet, são 35 milhões fixos, e os celulares, que farão as novas interligações, crescem de forma impressionante. Internautas diretos já são 4,8 milhões, que, com os internetvizinhos ou os que usam o PC da escola, chegam a 7,6 milhões. Isso significa, segundo um levantamento da ONU, 4% da população brasileira. Muito para quem chegou recentemente ao sistema, mas pouco em relação ao campeão, os Estados Unidos (135,7 milhões, uns 50% da população). E menos que na Argentina (5%) ou na Itália (20%).
Márcio Pochmann é um dos mais citados economistas quando se fala em trabalho e emprego. Pesquisador do Centro de Estudos Sociais e de Economia do Trabalho da Unicamp, ele criou a expressão "senzalaponto com.br" como alerta para os tempos que estão aí.
"A evolução dos postos de trabalho é reveladora do estágio em que se encontra um determinado país. Assim, as empresas pontocom, detentoras das novas tecnologias de informação, e os chamados serviços de produção (engenharia, propaganda, desenho industrial, comércio internacional, etc.) são responsáveis pela geração de ocupações mais identificadas com as modernas formas de trabalho criativo (elaboração e concepção), sendo, cada vez mais, expressão do desenvolvimento nas economias avançadas", afirmou ele.
Isso ainda não chegou 100% ao Brasil, acrescenta: a relação ocupação técnica e científica e serviço feito em casa (informal, doméstico, autônomo, etc.) ainda é de um para um. A crise dos anos 90 destruiu 3,2 milhões de postos de trabalho com registro em carteira e aumentou em 1,3 milhão de vagas o trabalho informal (que é um dos cinco maiores empregadores no país). Dobrou a quantidade, piorou a qualidade, assinala o professor, para quem "possivelmente isso seja herança dos tempos em que a senzala predominava". Essa regressão ocupacional, acrescenta ele, é fruto da falta de um novo patamar produtivo, vinculado ao que hoje seria identificado como o avanço das tecnologias de informação e comunicação e dos serviços de produção.
No mundo
José Carlos Libânio, pesquisador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), foi encarregado de enviar à ONU os dados do Brasil. Segundo ele, a alavanca do país na classificação mais recente foi a educação. Como no período foi a participação feminina na educação que deu o maior salto, pode-se dizer que a melhora no ranking foi proporcionada principalmente pelo esforço das mulheres. Também subiram a renda média dos brasileiros, de PPC 6.480 para PPC 6.625 (PPC é a sigla da moeda unificada para o estudo, o Poder de Compra, equivalente ao dólar norte-americano de 1993), e a expectativa de vida (66,8 para 67 anos), mas foi o maior acesso ao conhecimento que contribuiu mais pesadamente para a melhor performance do IDH do Brasil, está dito no relatório da ONU. O indicador de alfabetização de adultos aumentou de 84% para 84,5%, e o de matrículas combinadas nos três níveis de ensino, de 80% para 84%.
Governos (federal, estaduais e municipais) e o setor privado, engajado em projetos de educação, deram respaldo, também assinala o estudo, ao "esforço das pessoas em freqüentar desde cursos públicos de alfabetização até faculdades particulares e, não menos importante, das famílias que mantêm seus filhos em escolas públicas e privadas".
Quando se analisa a situação educacional dos brasileiros, é importante comparar tanto o Brasil com outros países quanto com ele mesmo, ao longo do tempo. E se, no mundo globalizado, as estatísticas educacionais do Brasil ainda o colocam em uma posição competitiva desvantajosa, dados oficiais mostram um avanço significativo quando comparamos a atual situação do país com a que vinha se verificando apenas alguns anos atrás.
No ranking geral, o Brasil é considerado de desenvolvimento humano médio. Está abaixo de países como a Coréia do Sul e o Chile. Em situação pior que a do Brasil, não se encontra nenhum europeu, mas diversos latino-americanos e muitíssimos africanos. No entanto, o país ganha alguns pontos em relação aos citados mais bem colocados, como por exemplo o Chile, considerado de alto desenvolvimento, quando se analisam dados sobre a educação das mulheres.
A educação, não há dúvida, é o meio mais rápido e eficaz para a mulher participar da melhoria de condições do país, insiste o estudo da ONU. Entre 1992 e 1998, nas nações em desenvolvimento, o índice de alfabetização de mulheres adultas aumentou de 72% para 80% do indicador masculino. Estão alfabetizadas no Brasil 84% das mulheres, segundo a ONU.
Geralmente, porém, a mulher precisa estudar mais para se desenvolver. Além disso, mesmo nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as 29 nações mais ricas do mundo, as mulheres passam dois terços de seu tempo em atividades não consideradas de mercado. É quase o dobro do que os homens dedicam a essas tarefas. As mulheres são relegadas a atividades sem remuneração ou com salários simbólicos. No Oriente Médio e no golfo Pérsico, 1,2 milhão de mulheres são empregadas domésticas sem direitos trabalhistas. Afazeres domésticos também são mais pesados para meninas que para meninos: em muitos países, é comum fazer as garotas tirarem mais tempo dos estudos para buscar água ou cuidar da casa e desempenhar outras tarefas domésticas que os meninos. Nos países em desenvolvimento, existem cerca de 250 milhões de crianças trabalhadoras – 140 milhões de garotos e 110 milhões de garotas. Muitas dessas ocupações, aliás, são exercidas nas ruas. No mundo todo perto de 100 milhões de crianças – meninos e meninas – trabalham assim.
A discriminação mantém-se difundida em quase todos os países. A necessidade de promover a igualdade de salários, emprego e participação política pode ser formalmente reconhecida, mas, sem o cumprimento efetivo das leis, as desigualdades se conservam nessas áreas para as mulheres, minorias étnicas, povos indígenas e tribais. Por toda parte – em democracias ou em ditaduras, nas regiões industrializadas ou em desenvolvimento – as minorias enfrentam discriminação de direitos.
É por isso que os resultados do desenvolvimento humano também estão misturados. Em algumas áreas, os dados são impressionantes. Embora a taxa de alfabetização adulta feminina tenha melhorado nos países em desenvolvimento, em algumas nações industrializadas uma em cada cinco pessoas ainda é funcionalmente analfabeta. É o caso dos Estados Unidos. Lá, nos anos 60, a proporção de pessoas que concluíram quatro anos do liceu era de 43% para os brancos e 20% para os afro-americanos – uma diferença de 23 pontos percentuais. Por volta de 1998, o hiato caiu para seis pontos, com taxa de conclusão de 82% para brancos e 76% para afro-americanos.
O tratamento desigual baseado na orientação sexual continua em todo o mundo. Os direitos civis e políticos das minorias sexuais são violados em países onde lhes é negado o direito de se organizarem em grupos de defesa. Os direitos econômicos e sociais são afrontados onde, por exemplo, essas minorias são discriminadas no local de trabalho e no acesso à habitação.
No mundo em desenvolvimento, cerca de 1 bilhão de adultos são analfabetos, metade do que havia em 1970. Nesses países, a taxa líquida de matrícula nos dois primeiros graus subiu 50%. Mesmo assim, 90 milhões de crianças ainda continuam fora da escola primária, e 232 milhões de jovens não podem cursar a escola secundária.
Violência
O estudo da ONU considera também os efeitos da educação na vida das mulheres. A violência doméstica não está relacionada a anos de casamento, à idade da mulher, à organização de sua vida ou à educação do marido – mas, sim, à educação da mulher. É o que o estudo conclui, a partir do que se observou na Índia. Lá, se uma mulher tem mais que o ensino secundário, a incidência da violência doméstica cai abaixo de 60%. Não só a educação dá poder à mulher, como também modifica as dinâmicas das famílias e, por isso, altera normas tradicionais.
Outro dado: em todo o mundo, a média indica que uma em cada três mulheres sofreu violência em algum tipo de relação. A Comissão de Direitos Humanos do Paquistão informou que, em 1999, mais de mil mulheres foram vítimas de crimes de honra. Em pesquisas por amostragem nos últimos anos da década de 90, crianças e adolescentes relataram ter sofrido abuso sexual. Cerca de 20% das meninas que deram essa informação viviam na Suíça, 17% na Noruega e mais de 14% na Nova Zelândia.
Nas estatísticas do Relatório do Desenvolvimento Humano, os abusos sexuais e a exploração das minorias são relatados em diversos capítulos. Por exemplo, informa-se que o tráfico de mulheres e adolescentes para prostituição aumentou com a globalização, calculando-se em 500 mil o número de casos em países da Europa Oriental e da Comunidade dos Estados Independentes (CEI). Em todo o mundo, cerca de 1,2 milhão de mulheres e jovens menores de 18 anos são traficadas para prostituição a cada ano. Na Ásia, as estimativas indicam que cerca de 250 mil pessoas (incluindo rapazes e crianças) são objeto desse tráfico.
Em países pouco desenvolvidos, como o Brasil, a situação das mulheres pode, portanto, ser entendida como reflexo de seu atraso. E as conquistas femininas revelam-se igualmente um excelente indicador de crescimento econômico, político e social. Como afirmou Amartya Sen, somente a expansão das liberdades e seu usufruto podem levar o país a uma situação melhor diante do mundo globalizado.
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