Postado em 13/01/2014
Por sua capacidade inigualável de arquivar informações, os meios eletrônicos são vistos por alguns como uma ameaça à privacidade dos usuários. O debate se acirrou quando segredos de Estado vieram à tona devido à espionagem digital. O jornalista e sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho e o ativista dos direitos fundamentais na internet Paulo Rená analisam o assunto.
A VIDA É BETA
por Paulo Rená
O presidente dos Estados Unidos da América monitora tudo o que você faz na internet. Há alguns meses, essa afirmação não seria vista como mais do que uma teoria da conspiração fantasiosa. Mas, a partir das denúncias de Edward Snowden, um ex-técnico da CIA, o mundo vem conhecendo, com cada vez mais detalhes concretos, o modo pelo qual a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês), a pretexto de combater o terrorismo, construiu uma verdadeira máquina de vigilância digital mundial, sob o comando do presidente Barack Obama. Mais do que uma desconfiança paranoica, hoje existem provas reais de que os EUA espionaram secretamente os e-mails da presidente Dilma Rousseff, as ligações da chanceler alemã Angela Merkel e até os planos de renúncia do Papa Bento XVI.
E como ficam as pessoas comuns? Quem não lida com segredos de Estado e política internacional tem motivos de verdade para se preocupar? O uso diário da tecnologia, para estudos, trabalho ou mesmo lazer, representa algum risco para a intimidade? Afinal, ainda existe privacidade no mundo digital?
Em primeiro lugar, é importante ter em mente que não se trata apenas da internet. Além dos computadores conectados na rede, também é necessário pensar sobre cartões de crédito, telefones celulares, tocadores de mp3, videogames acionados por movimento e até mesmo os novos modelos de carros e televisões inteligentes: enfim, todos os dispositivos pessoais que guardem informações digitalizadas. Somem-se a esse conjunto as câmeras de vigilância, catracas eletrônicas, identificação biométrica e registros ligados ao CPF. Há um número crescente de recursos disponíveis para construir um mapa completo sobre a vida de qualquer pessoa.
Quem puder reunir e analisar esse conjunto de dados, facilmente saberá com quem essa pessoa conversa e a que horas, os livros comprados, as músicas ouvidas, com o que ela se diverte em casa, lugares visitados, remédios usados, programas a que assiste. E aqui surge um ponto crítico: de um lado, um sujeito comum pode achar que seus hábitos individuais não sejam do interesse de ninguém; ao mesmo tempo, mesmo que quisesse se preservar da curiosidade alheia, ele praticamente não detém meios para saber a extensão do seu rastro digital e, pior, não teria sequer como saber quem o está vigiando.
Essa situação afeta diretamente a privacidade, a qual deve ser entendida como o direito que cada pessoa tem de traçar, sobre a sua própria vida, a linha que separa a porção compartilhada e a parte reservada. Ela constitui uma escolha livre e individual, de acordo com suas próprias convicções e forma de ver o mundo. Uma garantia de que é possível ter uma vida privada.
Nesse conceito amplo, a privacidade vai muito além do ditado “quem não deve não teme”. Não se trata de um temor contra a revelação de segredos, de um medo de que aspectos obscuros sejam conhecidos. Pensar assim levaria à conclusão de que seria necessário ter feito algo errado para ter direito à privacidade, um contrassenso cruel no qual justamente as pessoas que se portam corretamente seriam punidas com uma reduzida proteção sobre a própria vida.
A privacidade não é uma defesa para criminosos, nem uma cobertura para condutas erradas. É uma garantia de liberdade, para preservar a individualidade das pessoas, nos termos em que elas mesmas quiserem. Do conforto do lar ao ambiente de trabalho, o que importa é ter a opção sobre abrir ou fechar a porta do quarto, sobre revelar ou não o valor do seu contracheque, sem nenhuma imposição sobre essa escolha, e com a segurança de que não haverá desrespeito.
Essa lógica vem sendo abandonada no mundo digital. Chegou-se ao absurdo de um monitoramento governamental indiscriminado, inclusive sobre pessoas e países sabidamente inocentes, simplesmente porque a tecnologia facilita esse acesso às vidas privadas. Mas já antes desse imbróglio internacional, ainda no âmbito interpessoal, há muito tempo, anuncia-se que a internet teria matado a privacidade. A vastidão de uma memória eletrônica coletiva, com o passado mais remoto prontamente acessível por qualquer ferramenta de busca, seria a própria destruição da vida privada.
Muito simplificadamente, o termo digital se refere aos dois dígitos 0 e 1, a base binária simples que permitiu os mais complexos desenvolvimentos na área da tecnologia da informação e comunicação. Em vez de cartões perfurados, válvulas e telégrafos, hoje os seres humanos podem contar com níveis sobre-humanos de armazenamento, processamento e comunicação de informações digitalizadas. São essas as três melhorias fundamentais que, combinadas, formam a base da internet, para a qual convergem todas as fronteiras do que se pode chamar de mundo digital.
Efetivamente, em comparação com papel, filmes, discos e todos os meios analógicos, é infinitamente mais prático encontrar informações antigas se elas estiverem disponíveis em meios digitais, e isso vale para tanto para obras culturais e notícias públicas, quanto para acontecimentos privados. A tecnologia do cartão de crédito registra com precisão cada compra feita, diferentemente do dinheiro em cédulas e moeda. Mas, em muitos aspectos, para as pessoas comuns, tudo o que está posto na internet foi lá colocado por elas mesmas, e esse fator é crucial.
A questão está, novamente, no poder sobre a própria vida e na noção de que exercer essa liberdade de opção não pode significar uma restrição de privacidade. Na verdade, sempre que uma foto é divulgada em uma rede social, há um elemento de escolha, uma vontade individual que seleciona o que se admite compartilhar. Por mais constrangedora que seja a imagem, talvez para aquela pessoa, naquele momento, a graça e o valor humorístico tenha tido um peso maior que a vergonha de se expor. Mas isso não significa, jamais, que a pessoa se dispa de todo e qualquer pudor sobre si, nem mesmo que a circulação dessa foto possa extrapolar livremente o âmbito no qual ela foi divulgada. A privacidade, considerada como uma garantia séria, exige sempre o respeito à escolha individual, nos limites em que foi efetuada.
E se o caso é de escolher, não faz sentido imaginar que a privacidade teria contornos previamente definidos, em abstrato, para todo mundo. Cada um tem o direito de definir a própria vida privada, em fronteiras que podem ser completamente diferentes das de outras pessoas. Retomando o exemplo doméstico, cada um fecha a porta do próprio quarto se e quando quiser. No trabalho, cada empregado decide se quer ou não revelar o quanto ganha mensalmente. E entre amigos, cada um conta as histórias engraçadas que escolher contar.
O compartilhamento de informações pessoais, claro, quase nunca acontece de forma tão pensada. Todo dia, o hábito de se conectar, manifestar opiniões e publicar acontecimentos privados cresce com a mesma velocidade com que a internet fascina a cada novidade. Nesse novo mundo, o cotidiano virtual vai tomando uma forma tal que para muita gente faz até pouco sentido pensar em uma separação do que acontece no contexto presencial. A vida é entendida como uma coisa só, tudo junto e misturado. E assim se podem compreender melhor dois aspectos normalmente pouco visíveis.
Primeiro, que em rodas de conversa, nas mesas dos bares, dentro de casa, nos carros, ônibus e trens, entre conhecidos ou desconhecidos, muita informação privada circula oralmente, e as redes sociais não são muito mais do que um novo espaço para interação, ainda que funcionem com amplitude e dinâmica bem maiores. Por consequência, e esse é o segundo aspecto, não subsiste a expectativa de que as leis em vigor não se apliquem ao que ocorre no mundo digital.
A realidade não segue apenas a lógica do direito. Apenas poucas violações de privacidade valerão o esforço de tempo e dinheiro inerente a uma busca por punição criminal. Mais ainda, no caso da vigilância pelos EUA, a solução por ser encontrada envolverá mais questões de poder político do que propriamente de direito. Contudo, em meio à complexidade social, que envolve política, economia, religião, ciência, entretenimento e mesmo a conveniência, o ser humano demonstra uma necessidade de definir seus limites de certo e errado em termos do que é lícito e o que é ilícito.
As leis em cada país mudam, as regras de cada grupo de convívio variam, os valores pessoais são diversos, e o desenvolvimento da tecnologia vai continuar desafiando todas as noções estabelecidas. Mas houve compromisso firmado, na Declaração de Direitos Humanos, de que “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação”. A humanidade se impôs esse princípio, escrito com todas as letras, exatamente por perceber que ele não era cumprido. Assim, é justamente quando ocorre o seu descumprimento que ele deve ser lembrado e cobrado. O mundo digital é apenas mais uma oportunidade para que se fortaleça a garantia da privacidade.
“(...) há muito tempo anuncia-se que a Internet teria matado a privacidade. A vastidão de uma memória eletrônica coletiva, com o passado mais remoto prontamente acessível por qualquer ferramenta de busca, seria a própria destruição da vida privada”
Paulo Rená é mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, ativista dos direitos fundamentais na internet, fundador do Partido Pirata do Brasil e gestor do projeto de elaboração do Marco Civil da Internet no Brasil
O FASCINANTE, MAS PERIGOSO MUNDO DA INTERNET
por Laurindo Lalo Leal Filho
Ao romper os limites estabelecidos há décadas pela comunicação tradicional, a internet criou promissores espaços de socialização e convivência, ainda que virtuais. Mas também áreas cinzentas em que circulam riscos reais e temores fundamentados.
Sem a internet, a possibilidade de tornar pública a vida pessoal, estimulada pela cultura do espetáculo e das “celebridades instantâneas”, passava pelo estreito filtro dos controladores da mídia.
Consciente desses limites, mas com uma aguda percepção do futuro, Andy Warhol, já na década de 1960, dizia que “um dia, todos terão direito a 15 minutos de fama”. Faltavam na época os instrumentos para tornar realidade a profecia do artista, ícone da pop-art. A internet, na virada do século 20 para o 21, resolveu o problema.
Hoje, todos que têm acesso à rede mundial de computadores podem ser produtores de informação em geral, e aqueles que desejarem, de seus próprios feitos, sucessos ou desventuras. Dependendo da repercussão podem se tornar, em instantes, celebridades midiáticas, como mostram inúmeros exemplos.
Um dos mais recentes, de acesso globalizado, é o da jovem que ao se demitir do trabalho fez uma despedida irônica da empresa, postando na rede um vídeo onde canta e dança numa sala de redação vazia. Da letra depreende-se que o seu trabalho era o de colocar na internet determinados vídeos em busca do maior número de acessos possível.
Se na rotina diária ela talvez não tenha conseguido atender às exigências dos chefes, apesar das exaustivas jornadas de trabalho, o vídeo de despedida alcança grande sucesso, tornando-a uma nova “celebridade instantânea”. Sem dúvida, um caso emblemático de metalinguagem com certo sabor de vingança.
Nesse caso, há um componente social relacionado ao mundo do trabalho e a rede serviu para expor uma de suas contradições, o que é quase uma exceção à regra. No geral, os que buscam a exposição midiática o fazem motivados pela busca de recompensas psicológicas ou materiais: o reconhecimento público do indivíduo saindo da multidão ou, além disso, a possibilidade de acesso a outros patamares do mercado, especialmente quando a pretensão é se tornar uma celebridade um pouco mais perene.
Quando se trata de uma busca rumo a um sonhado estrelato, repete-se na internet algo que já se tornou comum nas mídias tradicionais. No princípio, ainda desconhecido, o pretendente faz de tudo para aparecer. Apela para assessores de imagem e de comunicação, assedia jornalistas, busca de todas as formas estar presente em locais onde possa ver e ser visto. Adquirida alguma notoriedade, passa a fazer-se de rogado, impondo exigências para dar entrevistas ou participar de eventos.
Até aí estamos no mundo do espetáculo e daqueles que pretendem nele entrar, na maioria das vezes conscientes dos riscos a que serão submetidos. As coisas se complicam quando passamos a perceber como esse mundo torna-se um modelo de identificação, atraindo principalmente os mais jovens. Há pesquisas, anteriores à internet, mostrando como “heróis” da TV ou cantores “pop-stars” são referências de vida para crianças e adolescentes.
A internet trouxe a sensação de que chegar a esse mundo estava mais fácil, estimulando a exibição na rede de atos e fatos que antes eram restritos à esfera privada, sem falar das exibições dos dotes físicos ou artísticos. “Se os ‘famosos’ contam e mostram tudo, por que eu não posso fazer o mesmo?” é o sentimento que parece impulsionar o salto para a vida em público, devassada.
Claro que esse não é o único motivo, embora seja um dos mais evidentes. Há outros menos visíveis, mas nem por isso menos importantes, como a necessidade da ampliação das “amizades” comuns nas chamadas redes sociais. Aí o perigo aumenta, como mostram relatos muitas vezes trágicos desse tipo de contato. Mas não se pode negar o lado positivo do reencontro virtual de velhos amigos, separados pelo tempo e pela distância, refazendo laços e facilitando reaproximações.
São pratos de uma mesma balança onde já é possível perceber que o positivo tem mais consistência, embora o negativo siga assustando. Nada mais natural tratando-se de um fenômeno recentíssimo, de acesso massivo, cuja utilização ainda carece de reflexões mais cuidadosas e ponderadas. Talvez por ser um instrumento dominado com muito mais facilidade pelas novas gerações, o uso seguro da internet ainda necessite algum tempo para se consolidar. Talvez até o momento em que essas gerações pioneiras de internautas estejam mais maduras.
Não que se deva contar apenas com o tempo para reduzir a carga negativa do papel das redes sociais em particular e da internet como um todo. Há dois caminhos práticos e atuais para enfrentar os seus riscos e armadilhas: educação e legislação.
Educação aqui é em sentido amplo: em casa, na escola, através da mídia, da própria internet, enfim mostrar por todos os meios como o uso cuidadoso da web pode reduzir os riscos de surpresas desagradáveis. A começar pela conscientização dos perigos envolvidos na exposição da vida íntima, ressaltando o uso criminoso que pessoas mal-intencionadas possam fazer dela.
Mas isso não basta. Assim como pais e educadores ainda têm dificuldade em lidar com um conteúdo tão novo, os legisladores igualmente passam apuros, embora tenhamos avançado bastante nos últimos anos no Brasil rumo à aprovação do marco civil da internet. Capaz de garantir a neutralidade da rede, ou seja, permitir que seu uso seja igual para todos e não beneficiando simplesmente a quem pode pagar mais, como desejam as empresas de telefonia. Ao mesmo tempo especializando os nossos operadores do direito (juízes, promotores, advogados) e a Justiça em geral para capacitá-los a dar respostas rápidas e adequadas aos crimes cometidos na rede, de acordo com as legislações já existentes no país.
Em âmbito global, seguir acompanhando e estimulando o debate iniciado pela presidente Dilma Rousseff em seu recente discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, quando propôs a criação de uma governança global da internet sob controle da ONU. “Este é o momento de criarmos as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestrutura de outros países. A ONU deve desempenhar um papel de liderança no esforço de regular o comportamento dos Estados frente a essas tecnologias e à importância da internet, dessa rede social, para a construção da democracia no mundo”, discursou a presidente.
Aqui não se trata mais dos perigos individuais oferecidos pela internet, e sim de questões que afetam a segurança dos Estados nacionais e, em decorrência, de todos nós, seus cidadãos. A revelação da espionagem feita pelos Estados Unidos no Brasil, seguido pelo Canadá, mostra outra vez a dupla face das comunicações eletrônicas digitalizadas: de um lado, o uso para a bisbilhotagem criminosa; de outro, a revelação, graças à própria internet, dessas práticas condenáveis.
É por aí que caminhamos nesse mundo novo. Como tudo que ainda é recente, precisa ser visto com cuidado, evitando suas armadilhas, mas desfrutando de suas virtudes.
“A revelação da espionagem feita pelos Estados Unidos no Brasil (...) mostra outra vez a dupla face das comunicações eletrônicas digitalizadas: de um lado, o uso para a bisbilhotagem criminosa; de outro, a revelação, graças à própria internet, dessas práticas condenáveis”
Laurindo Lalo Leal Filho é jornalista e sociólogo, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), diretor e apresentador do programa VerTV da TV Brasil. É autor, entre outros, de A Melhor TV do Mundo, o Modelo Britânico de Televisão (Summus, 1997)