Postado em 13/01/2014
O arquiteto analisa o planejamento urbano da cidade de São Paulo levando em conta a mobilidade, o pequeno comércio e o zoneamento
Urbanista, arquiteto, administrador público, político e ensaísta. Italiano de nascimento, Jorge Wilheim é autor de livros sobre a cidade de São Paulo, como São Paulo Metrópole 65 (Editora Difusão Europeia do Livro, 1965) e São Paulo: Uma Interpretação (Editora Senac, 2011). Entre outros projetos pelo Brasil, participou da construção do Edifício Jockey Club de São Paulo, concebeu e coordenou o projeto do Parque Anhembi, elaborou o projeto de reurbanização do Pátio do Colégio, participou da reurbanização do vale do Anhangabaú. A participação na cena política se iniciou em 1975, como secretário estadual de Economia e Planejamento. Entre 2001 e 2004, após experiência no exterior, retornou à vida pública na administração da prefeita Marta Suplicy, à frente da Secretaria de Planejamento (Sempla) e coordenando a elaboração do plano diretor estratégico de 2002. Nesta entrevista concedida à Revista E, Wilheim fala dos principais problemas da cidade de São Paulo e de soluções possíveis. “Se a pessoa circular a 14 quilômetros por hora e ainda tiver que pagar uma fortuna para estacionar ou não encontrar onde parar o carro, ele vai começar a ser um empecilho na vida, e não uma ajuda”, diz. A seguir, trechos.
Nós vivemos um momento crucial da história de São Paulo, em que, pensando na mobilidade e na violência do trânsito, as pessoas estão cansadas da cidade. É possível fazer uma mudança positiva para a metrópole voltar a ser agradável?
O momento crucial da cidade, hoje, é que em vez de uma mobilidade temos uma imobilidade. Existe uma perplexidade sobre o que fazer com o automóvel, e alguma surpresa pelo fato de que a população está se expressando de uma forma diferente do esperado, com consistência e fazendo críticas. Ao mesmo tempo, é um momento do século 21, em que muita coisa nova está acontecendo, não só em São Paulo, claro, mas no mundo inteiro.
Vivemos em um mundo que encolheu e ficou pequeno, por causa da rapidez, da simultaneidade da informação, e que nos deixa perplexos com diversas rupturas que há uma ou duas décadas têm ocorrido na vida de todos, inclusive na dos paulistanos. Se isso tem solução, se teremos uma vida mais pacata, menos violenta, mais humana, eu, como sou otimista, diria que sim. Existem condições, processos que podem ser iniciados e que levariam a uma vida de mais qualidade.
O carro ainda confere um status muito grande para o brasileiro e para o paulistano. Como é o caso da maioria das cidades brasileiras, São Paulo foi planejada para o uso do automóvel. Você acha que, culturalmente, o paulistano está preparado para deixar o carro em casa e usar o transporte público, a bicicleta ou andar a pé?
Claro que não. Ninguém está preparado. O dramaturgo italiano, Luigi Pirandello, na década de 1930, dizia que o automóvel é uma invenção do diabo. Se é uma invenção do diabo, qual é a estratégia dele? O que ele pretende e como age? Pretende trazer o inferno para a superfície da terra. E qual a estratégia? É a sedução. Ele nos seduz.
O automóvel, além de ser um objeto bonito e sensual, é um instrumento que nos permite a liberdade de ir e circular por onde quisermos, quando quisermos, com quem quisermos, ou até de ficarmos parados ouvindo música ou namorando dentro dele. Além disso, ele traz em si o significado do conforto e de certo status social.
A sociedade de São Paulo se divide em duas: aqueles que usam ônibus e aqueles que não usam, deslocando-se a pé ou de automóvel. Eu mesmo não estou habituado a usar o ônibus, em parte, porque a distância entre minha casa e o trabalho é de 12 metros. Uso pouco o automóvel, mas não saberia usar ônibus, pois faz tempo que não tomo um. Já meus filhos, sim, eles usam confortavelmente o ônibus, mas eles também usam o carro.
Dentro da cultura, cada um cria ou inventa um modo de ser, um estilo e um sistema da própria vida. Ninguém vai abandonar o automóvel por abandonar, isso só vai acontecer se ele não servir mais para circular. Se a pessoa circular a 14 quilômetros por hora e ainda tiver que pagar uma fortuna para estacionar ou não encontrar onde parar o carro, ele vai começar a ser um empecilho na vida, e não uma ajuda. Não se trata de uma decisão de abandonar o carro, mas de ser forçado a fazê-lo.
O crescimento da frota de veículos em São Paulo não encontra correspondência no sistema viário, que não possui elasticidade. Ou seja, não se alargam as vias fácil e rapidamente, de maneira que os carros não têm como circular. Ninguém está preparado para essa situação e ninguém toma uma decisão antes da hora. O homem é capaz de planejar, mas não quer dizer que ele planeje. Ele só muda algo quando não tem como não mudar.
O prefeito de Bogotá adotou uma medida diante do caos da cidade, na Colômbia, eliminando a maior parte das áreas para estacionar automóveis nas ruas da cidade. Aboliu inclusive as vagas exploradas pelo Estado (o equivalente da zona azul, em São Paulo). Você acha que uma medida como essa funcionaria em São Paulo?
Aquele estacionamento no meio fio nas vias coletoras, realmente, não vai poder continuar a existir, porque, se o uso da via coletora é para circular, não se podem perder duas de quatro faixas, por exemplo. Elas devem ser utilizadas de maneira que não seja possível estacionar, apenas parar para embarque e desembarque.
O problema do estacionamento vai causar uma crise daqui a muito pouco tempo, pois essas vagas, com zona azul ou sem, não vão existir. Quando o motorista for buscar onde estacionar em travessas vai encontrar casas e prédios com saídas de garagem, portanto em um quarteirão vão caber de 10 a 14 carros no máximo.
Haverá uma carência de estacionamento muito grande. Isso vai gerar um bom negócio, que são os prédios de estacionamento com garagens nos andares superiores ou no subsolo – nunca no térreo, que deve ter um uso social e não pode ser o depósito de carros parados. Pode ser comercial, loja, galeria, qualquer coisa, menos estacionamento. Os edifícios de estacionamento surgirão a partir dessa demanda que vai acontecer, mas vai ser um empecilho a mais, inclusive um encarecimento do uso do automóvel.
Você acha factível uma medida como a de Bogotá em São Paulo?
É uma solução natural. Não necessariamente como forma de as pessoas não usarem o automóvel, mas como necessidade para circulação. Vai ter que liberar as vias coletoras.
Como se explica o processo de gentrificação em São Paulo?
O termo gentrificação é usado mais para quando as mudanças nas cidades expulsam os mais pobres e atendem a demanda dos mais ricos. Qualquer melhora que se faça na cidade é para quem possa pagar. Então a expulsão dos que não podem pagar acontece. É difícil evitar. Qual é a solução? Não melhorar, não fazer benefícios, não arrumar prédios velhos, deixá-los abandonados? Não, isso não é solução e se liga ao problema da substituição de tudo por prédios, eliminando o lugar para do pequeno comércio.
O que significa isso? Em primeiro lugar, esses temas são o resultado da síndrome básica do subdesenvolvimento latino-americano, que é o distanciamento entre os mais ricos e os mais pobres. Isso está na base de tudo, porque se tivéssemos uma sociedade menos heterogênea, mais homogênea, duas coisas aconteceriam: primeiro, não haveria tanta expulsão por diferença. E, segundo, aconteceria o que acontece de esplêndido em cidades como Paris ou Londres. Nelas, em qualquer lugar, periférico ou não, existe o pequeno comércio, com atividades e serviços, porque em qualquer bairro o nível de demanda é similar, o que garante a vida desse comércio.
Como podemos agir no Brasil para melhorar a situação de nossas cidades?
Há um aspecto interessante sobre o qual podemos agir, a curto prazo. E, aliás, trato do assunto no livro que estou começando a escrever. Estamos acostumados a fazer zoneamento e, portanto, a permitir o uso do solo sempre olhando plantas, vistas de cima, decidindo o que se pode ou não fazer em cada lote. Temos que aprender a fazer zoneamento por “layers”, por fatias horizontais e não verticais. O que acontece no nível da calçada, dentro dos lotes, interessa vitalmente à cidade. Não se pode deixar que o espaço seja usado como estacionamento, porque ocupar esse local ao lado da calçada com carros no momento em que eles não funcionam faz com que o espaço perca sua função social.
Outra observação é sobre os prédios e condomínios. Isso me leva a pensar na relação entre a calçada e os prédios fechados. Quando fizemos o plano de retorno em 2002, no mandato da Marta Suplicy como prefeita, um dos artigos proibia a construção de muros, fechando os lotes. Não o fechamento de grade, mas a vedação. Proibia as muralhas, proibia tudo aquilo que impedia o transeunte de alargar o seu horizonte para o jardim do recuo e não conseguir passar, quer dizer, foi outra das coisas que tivemos que negociar.
Construir um muro e impedir a vista é uma agressão, é de um egoísmo inadmissível em relação ao resto da população que passa em frente ao local. Isto pode ser simplesmente proibido, não se trata de alargar a calçada. Pode pôr grade, ter vegetação, pôr vidro para se defender da invasão. Isso é importante porque a tendência de mercado, por razões não apenas mercadológicas, mas também objetivas, como o problema de segurança, tem tentado se fechar sem pensar no que acontece do outro lado do fechamento, onde está a rua. Os espaços públicos têm sido realmente abandonados nesse conceito, como terra de ninguém, que não interessa.
Ao observar São Paulo, nota-se que são permitidos grandes supermercados dentro da cidade, o que não ocorre em outras grandes capitais do mundo, como Paris e Nova York. Nesses locais, os grandes supermercados são afastados do centro, o que é uma maneira de privilegiar o pequeno comércio, a circulação, o pedestre e a segurança. O que você tem a dizer sobre isso?
Nesses locais existem dois tipos de comércio grande: a loja de departamentos e o mall (o nosso shopping center), que não devem ser confundidos. O mall era sempre colocado fora da cidade, porque exigia uma dimensão muito grande, e não se encontravam grandes lotes dentro dos municípios que já estavam estruturados, como é o caso de Nova York. Os seus malls estão fora da cidade, e o acesso a eles pede o uso do automóvel. Geralmente se vai ao mall para fazer grandes compras. São atacadistas, digamos, a nível doméstico.
No Brasil, as coisas se confundiram, pois o enriquecimento e a globalização apareceram tardiamente, e surgiu uma demanda confusa que levou à criação simultânea da loja departamental e do shopping center.
Com relação ao pequeno comércio, sim, é claro que a presença do shopping center nas cidades afeta o pequeno comércio, pois ele não consegue competir com as vantagens de escala do comércio colocado dentro do shopping. Além disso, o shopping se transformou em um ponto de encontro, uma referência dentro do bairro ou até fora dele, com gente que vem de longe para passar o dia nele. É possível comer lá, ir ao cinema, ou se abrigar da chuva, e aparentemente é mais seguro. Ele faz uma concorrência muito grande ao pequeno comércio.
Em relação aos problemas gerados pela divisão da cidade por zonas (industriais, comerciais e residenciais), não está na hora de a cidade se repensar?
Sim, mas a cidade tem se repensado. Esse zoneamento é resultado de um urbanismo da primeira metade do século 20. Hoje esse tipo de zoneamento está sendo alterado e, no caso de São Paulo, foi alterado pelos fatos. As alterações em São Paulo já estão ocorrendo, e vão continuar ocorrendo. Cidade boa é sempre uma cidade que mistura os usos. Eu me lembro de perguntar certa vez a uma pessoa: “Você não gostaria de sair da sua casa, ir até a esquina na padaria comprar pãozinho ou pegar um filme na locadora e voltar para casa a pé?” E ela disse: “Ah, não, para isso prefiro pegar um automóvel e ir ao shopping”. Acho que é uma pobreza de vida pensar dessa maneira. Cidade boa é a cidade em que você pode passear.
Para isso, também, o lugar onde você anda tem que ser agradável. A pavimentação deve ser de boa qualidade, a calçada não pode ser esburacada nem ter declividade, não pode ter saliente a raiz de uma árvore mal plantada, nem pode ter objetos e sujeira. A paisagem urbana desse espaço da rua, portanto, a calçada, tem que ser bonita, agradável, diversa, e despertar curiosidade. Se tiver comércio, tem que ter vitrines divertidas, variadas, emocionantes. Tem que ser possível sentar e ficar olhando as pessoas que passam, porque isso também é um espetáculo.
“O momento crucial da cidade, hoje, é que em vez de uma mobilidade temos uma imobilidade”
“A sociedade de São Paulo se divide em duas: aqueles que usam ônibus e aqueles que não usam, deslocando-se a pé, ou de automóvel”
“Não se trata de uma decisão de abandonar o carro, mas de ser forçado a fazê-lo”
“O que acontece no nível da calçada, dentro dos lotes, interessa vitalmente à cidade”