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Criança
Dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente

Postado em 01/10/2000

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Promulgado há dez anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente é reconhecido como um dos diplomas legais mais avançados do mundo. Porém, muitas medidas previstas na teoria não são aplicadas na prática. Explicar por quê é um grande desafio para todos nós

Os ventos progressistas que enterraram o período militar em 1985 foram traduzidos em vários preceitos legais com o intuito de restaurar a ordem democrática no país. Seguindo a Constituição Federal de 1988, vários documentos foram promulgados na esteira da consumação dos direitos e garantias fundamentais consagrados pela Carta. Um dos primeiros textos a serem debatidos versou sobre a situação anacrônica das crianças e dos adolescentes, cujos interesses haviam sido bloqueados durante os anos precedentes. Vivia-se, então, sob a égide de um regulamento envelhecido e próprio dos regimes ditatoriais, o Código do Menor. Na ocasião, era urgente adequar as normas e, por conseqüência, toda a concepção que envolvia a condição dos jovens. Em 1990 foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que dez anos depois ainda provoca controvérsias e discussões. Considerado o diploma legal mais avançado do mundo, o ECA encontra ainda resistência entre diversos setores sociais e, quando está na pauta de discussão, recebe uma crítica recorrente: a de ser uma lei avançada, mas que não é cumprida.

Uma nova filosofia
"Antes de mais nada, é preciso lembrar quais diretrizes embasaram a criação do ECA", explica Antonio Sérgio Gonçalves, presidente do Conselho Municipal de Defesa da Criança e do Adolescente de São Paulo. "Ele representou um enorme avanço em relação ao Código do Menor, justamente porque trocou a doutrina da situação irregular pela doutrina da proteção integral. Isso significa que a criança e o adolescente passaram a deter uma condição de sujeito de direito em desenvolvimento." Além disso, o estatuto consagra o princípio da absoluta prioridade, estabelecendo a "preferência de crianças e adolescentes na formulação e execução de políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos", como informa o relatório Dez Anos de ECA: O Cumprimento É a Solução, publicado pela Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de São Paulo (OAB/SP). Outro princípio estipulado pelo ECA é a co-responsabilidade entre os órgãos públicos, a sociedade e a família pelo zelo à criança e ao adolescente, por meio da democracia participativa. Essa medida prevê, também, a descentralização político-administrativa e a municipalização.

O fosso real
No entanto, a realização das medidas estipuladas na prática do cotidiano muitas vezes não acontece. É o chamado fosso legal. Por que isso ocorre? "O ECA é um instrumento que pretende concretizar os direitos fundamentais da criança e do adolescente. Ou seja, visa que aquilo que está prescrito no próprio estatuto e na Constituição Federal seja cumprido", analisa Paulo Garrido de Paula, procurador de justiça que participou da redação do estatuto. "Ocorre que as políticas sociais básicas, como saúde e educação, são deficitárias, portanto, não conseguem suprir as necessidades da população e, em conseqüência, desobedecem a letra da lei. O ECA, em sua essência, é um instrumento de transposição da marginalidade para a cidadania, que salvaguarda tanto os direitos individuais como os difusos (coletivos)." Já para o advogado Roberto Vômero Mônaco, coordenador da Subcomissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/SP, "os governantes, que deveriam responder pela concretização das leis, esquivam-se de suas responsabilidades. Não se pode mais tolerar certas atitudes em troca de barganha política".

Interesse coletivo
O ECA prevê a criação de dois órgãos para dar curso ao processo de descentralização administrativa. São o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (em âmbito federal, estadual e municipal) e o Conselho Tutelar (na esfera municipal). Grosso modo, o Conselho Tutelar, cujos membros são eleitos pela comunidade, é incumbido de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes. Os conselheiros tutelares têm a função de garantir os direitos, assessorar o poder executivo na proposta orçamentária e fiscalizar as entidades de atendimento governamentais e não-governamentais. "No entanto, como o Brasil não tem tradição em democracia participativa, em que os representantes da sociedade interferem de forma direta, sem intermediários (democracia representativa), os poderes legislativo e judiciário negam os meios para o funcionamento dos conselhos. Assim, a efetividade dos órgãos torna-se muito baixa", explica Roberto Mônaco.
Fica visível que está ausente do processo a famigerada vontade política, força intangível responsável pela execução das normas previstas. Mas será que sobre esse motivo subjetivo paira toda a culpa pela ineficiência do processo? A pesquisadora Bernadete Baccini, que já foi conselheira tutelar em Bauru, apresentou em sua tese de mestrado Conselho Tutelar: Uma Questão de Gênero? algumas considerações contrárias ao senso comum. Ela aponta na dinâmica teórica do ECA algumas incongruências objetivas que não se atinam tão-somente com a "falta de vontade política". "Notadamente nas cidades pequenas, as atribuições dos conselheiros tutelares (controle social, fiscalização e assessoria) propostas pelo ECA se resumem no assistencialismo pontual, demonstrando na prática um continuísmo da política do bem-estar do menor, vigente até a promulgação do estatuto. Há um desvio da função dos conselheiros. Além disso, não existe um curso de formação específica para eles." Outra crítica de Bernadete é o fato de ser o próprio município, por meio de lei local, que estabelece algumas das especificidades de cada Conselho. "A maioria dos conselhos é eleita por colégios eleitorais formados por representantes de entidades que posteriormente serão fiscalizadas pelo próprio conselho. Nesse caso, o conceito de democracia direta é cerceado, além do que os conselhos ficam sem poder de representatividade para atuar junto às entidades de atendimento à população infanto-juvenil." A pesquisadora conclui: "É inegável o avanço proposto no ECA. Mas depois de dez anos, é preciso rediscutir os modelos institucionais propostos para garantir suas medidas, avaliar o que nessa estrutura atende ou não as necessidades de crianças e adolescentes. Porém, a unanimidade à sua volta freia um pouco as propostas de debates".
A falta de vontade política estampa um dos lados da moeda, cuja outra face traz o torpe desrespeito público diante das normas do ECA. Essa transgressão é mais evidente no tocante às medidas socioeducativas impostas a crianças e adolescentes infratores. As medidas socioeducativas são outra conquista presente no estatuto, pois não têm essência punitiva, mas interferem em seu processo de desenvolvimento. No entanto, o que se vê é a negativa da vigência das normas. Um triste exemplo desse fato está no desacordo com a lei da estrutura do sistema de justiça e da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem/SP). As opiniões são incisivas: "É uma violência confinar adolescentes em sistemas prisionais, colocando-os sentados no chão por várias horas sem atividades que os auxiliem a lidar com as alternâncias do processo da definição da sua identidade como pessoa", informa o relatório da OAB.
No entanto, é justamente na possibilidade de combater uma situação de extrema irregularidade que reside o espírito do ECA. Contemplando a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, o diploma estabelece meios de garantias como as cláusulas sociais constantes de contratos públicos que restringem o trabalho infantil ou a ação compulsória do Ministério Público diante de uma situação de ameaça. O procurador de justiça Garrido de Paula resume as conquistas do ECA: "A força que o estatuto detém está na sua própria constituição. É um projeto de sociedade que depende da mobilização social. E esse projeto vai ser conquistado ao longo do tempo".


Direito legal - Os dez anos do ECA são comemorados em Itaquera

Em parceria com a Ação Educativa - Assessoria, Pesquisa e Informação, o Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Instituto de Desenvolvimento e Ação Comunitária (Idaco), o Sesc Itaquera realizou o projeto Exploração Infantil: Educação Através das Imagens. O projeto tem o intuito de comemorar os dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, que entrou em vigor em 1990 em cumprimento a um dispositivo constitucional. No evento, foram realizadas diversas atividades que tinham como objetivo o fortalecimento dos valores sociais que redefinissem o lugar da infância e da adolescência na sociedade, além de favorecer a incorporação de novos agentes sociais na luta pela erradicação do trabalho infantil. As abordagens foram feitas por meio de diferentes atividades: debates, palestras, exposições fotográficas, exibição de vídeo e slides, oficinas de monitores para estudantes do ensino médio e universitários e oficinas para professores. Um dos destaques da programação foi a exposição fotográfica Imagens do Trabalho Infantil, de Iolanda Huzak, cujas fotos ilustram esta matéria.


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