Postado em 01/09/2000
A coordenadora do Projeto Guri, programa que forma orquestras com jovens carentes, fala à Revista E, logo após receber o Prêmio Multicultural Estadão
Para atender crianças carentes e oferecer-lhes contato com a arte e a cultura, foi criado há cinco anos um projeto audacioso. O Projeto Guri atende sete mil crianças e adolescentes de todo o estado de São Paulo, oferecendo aulas de música até a formação de uma orquestra composta unicamente por alunos. Para explicar o projeto, suas origens e dificuldades, a coordenadora do Guri, Beth Parro, concedeu a seguinte entrevista para a Revista E:
Qual o principal objetivo do Projeto Guri?
O objetivo do projeto é ensinar música às crianças carentes, dando-lhes uma oportunidade de inserção no meio cultural. O Guri começou em 1995 e hoje conta com 32 pólos na capital e no interior. Em cada pólo, forma-se uma orquestra que atende em média trezentas crianças e adolescentes. Atualmente, temos em torno de sete mil crianças e adolescentes. O objetivo do Guri é este: dar oportunidade para quem gostaria, mas não tem condições, não tem poder aquisitivo.
Qual a abrangência desses pólos?
Temos, por exemplo, um pólo em Pontal do Paranapanema, que fica a doze horas de viagem de ônibus, onde atendemos em torno de 520 crianças. É um dos maiores pólos.
Qual a idade das crianças atendidas?
De 8 a 18 anos. Com exceção da Febem, onde estendemos o atendimento até os 21 anos.
Pode-se dizer que o Guri é um centro de formação musical para crianças carentes?
O objetivo maior do projeto não é o de formar músicos. Queremos tirar crianças da rua, ou seja, atuar socialmente, preenchendo o tempo ocioso delas e, ao mesmo tempo, trazendo-as para o mundo da arte. É claro que nunca deixamos a qualidade de lado, para isso contamos com excelentes profissionais dentro do Guri.
Como funciona a infra-estrutura de cada pólo?
Os pólos são totalmente mantidos pelo governo do estado de São Paulo. Compramos os instrumentos para uma orquestra completa, às vezes até mais: do violão ao violino. A parte de recursos humanos também fica por conta do estado, que paga todos os professores.
E quanto ao custo total? Como é feito o orçamento?
A manutenção está em torno de 4,5 mil reais por pólo. Ou seja, no total, são investidos cerca de cem mil reais por mês e por ano deve chegar a um milhão de reais. Hoje, o Guri já tem um orçamento próprio dentro da Secretaria. Quando realizamos o projeto em parceria com a prefeitura da cidade, o município cede a infra-estrutura física para atender as crianças. Nós entramos com os técnicos e com a metodologia própria, desenvolvida por João Maurício de Lima, regente da Universidade de Música do Estado de São Paulo. O governo gosta do projeto e acha que vale a pena investir.
Como ocorre a criação dos pólos?
Há uma equipe que estuda o local: a realidade das pessoas, as crianças, a demanda e etc. A partir disso, buscamos o espaço físico que, para ser confortável, deve ter no mínimo cinco salas. Pode ser uma escola, uma oficina ou uma casa. Mas é necessário que tenha no mínimo cinco salas com paredes de tijolo, para que o som não vaze e se tenha uma acústica mínima. Abre-se uma grade horária para calcular os instrumentos, número de alunos e etc. Levamos isso para a comunidade e divulgamos as atividades. Às vezes, em quinze dias já temos uma lista com 200 crianças. As primeiras a chegar preenchem as vagas e as outras ficam na lista de espera.
Quais são os critérios para a entrada no projeto?
O primeiro ponto é que a criança esteja na escola; o segundo é que se ela faltar duas vezes seguidas sem justificar, quem estiver aguardando entra na vaga dela. Em cada pólo, temos em torno de 45 instrumentos para atender 300 crianças em aulas coletivas, portanto, precisamos fazer um sistema de rodízio; como temos diversos horários, um mesmo instrumento é usado por várias crianças. Desses grupos, chamados celeiros, escolhemos os melhores alunos para formar uma orquestra e um coral, composto geralmente por 60 vozes. Quando passam para a orquestra propriamente dita, as crianças têm um ritmo mais puxado. Embora seja um curso totalmente gratuito, ele oferece a mesma qualidade dos grandes conservatórios e por isso há regras a serem cumpridas.
De todas as crianças do grupo, apenas algumas vão para a orquestra. Aquelas que não são escolhidas sofrem algum tipo de frustração?
Ficam frustradas, mas é assim que funciona. Não é possível pegar crianças que não têm condições e colocá-las em uma orquestra. Devemos pensar que elas ainda não estão na orquestra, mas estão se preparando para isso. É um incentivo, um desafio saudável. Quem entra na orquestra já passou pelo maior sacrifício e não quer sair. E com razão. Tem um menino que entrou em 1995 e está até hoje! Como tirá-lo? Por isso precisamos ampliar os pólos.
Quantos tipos de instrumento são oferecidos?
São quatro famílias de instrumentos: corda, sopro, percussão e metal; além do coral. Essas são as categorias básicas para formar uma orquestra.
Qual a metodologia utilizada no ensino?
Começamos com a prática e passamos à teoria. Nunca começamos escrevendo. Primeiro vem o contato com o instrumento: a criança conhece, curte e vive o instrumento. A partir disso, ela vai querer saber tocá-lo e passa a ter aulas práticas. Oferecemos a possibilidade de troca do instrumento, afinal, pode ser que a criança não goste do primeiro que pegar. Você dá oportunidade para que ela toque o que quiser. Se acertar na primeira está ótimo, é só sair tocando. O esquema normal de aula não funciona. Por exemplo: quando você chega para uma criança que corta cana em Ouro Verde e a coloca para assistir aula na sala e aprender sobre as notas musicais, essa criança nunca mais volta.
Quanto tempo leva para passar da oficina para a orquestra?
Isso depende de cada um. Fizemos uma experiência na Febem que foi assustadora. Eles são de uma agilidade! É o lugar onde os jovens aprendem mais rápido. Quanto mais carentes, mais ágil o aprendizado, porque essa oportunidade é única. A criança que imaginamos ter mais dificuldade é a que se torna a mais ágil. É diferente da mãe que quer levar a filha para tocar piano no conservatório e ela não quer, não gosta. É a cultura fazendo o social. A criança fica organizada, disciplinada, responsável, com postura e isso tudo acontece no contato com a música.
Essas características evidentemente transbordam os limites do projeto Guri e passam para a vida cotidiana das crianças. É possível medir a abrangência do projeto?
Eu costumo dizer que o Projeto Guri é uma soma, não é a solução. Damos ao menino que está preso uma oportunidade a mais para refletir, trabalhar a auto-estima e toda essa questão emocional. Em 1996, quando entramos na Febem, chegamos a ter 500 ou 600 meninos na unidade do Tatuapé. Quando chegamos e começamos a falar com os meninos, eles não olhavam e nem levantavam a cabeça. Eles tinham medo. Durante os dois anos que atuamos lá, os levamos para fazer apresentações fora da instituição e começamos a confiar neles, eles começaram a confiar em nós. Eles acreditavam no trabalho. Fizemos um espetáculo com o coral da Febem e a orquestra da Mazzaropi no Memorial da América Latina com o Toquinho. A emoção deles de estarem tocando com o Toquinho e com uma orquestra de meninas às quais eles não podiam ter acesso fora daquela situação foi enorme.
E depois que o menino completa 18 anos, qual o caminho dele? Tem algum acompanhamento?
Alguns estão virando monitores, assistentes do regente, do professor. Aqueles que querem seguir carreira, encaminhamos para nossas escolas de música: Universidade Livre de Música ou o Conservatório de Tatuí.
Mas esse menino tem de mostrar uma aptidão acima da média?
É, ele precisa estar dentro da média e querer. Muitos deles me procuraram. Eu tenho uns doze na Universidade Livre de Música e uns oito ou dez no Conservatório de Tatuí. No interior, eu peço que cada conselho e cada secretaria de cultura encaminhe esses jovens para o conservatório mais próximo da cidade, seja municipal ou particular. No interior é muito difícil porque o grupo que entra é formado por pessoas mais jovens. Estamos montando um pólo na São Remo, do lado da Cidade Universitária, para toda a favela, na região do Jaguaré, com 13 mil habitantes.
Há estatísticas em torno do projeto?
Não ainda. É algo que pretendo montar logo. Sei que existem mais meninos que meninas, mas a diferença não é muito grande. Pelas minhas contas já passaram pelo projeto mais de quinze mil crianças.
Embora não haja a intenção de profissionalizar esses meninos, quando eles saem há condições de eles se sustentarem com a música?
Tenho um pouco de receio de falar isso. Estou reunida com um grupo de psicólogos e assistentes sociais e da Sociedade dos Amigos do Guri e queremos chegar a uma proposta única de como lidar com a questão de não deixar a criança achar que só com a música ela conseguirá se sustentar. Mas, por outro lado, enquanto coordenadora do projeto, não tenho como impedir que um menino que aprende violão toque num barzinho à noite! Não posso proibir! Vai falar para um menino que já sabe tirar um Toquinho no violão que ele não pode tocar no casamento do primo dele e cobrar 50 reais? Não posso achar que vou chegar no Pontal de Paranapanema e ter uma orquestra que toque no mesmo nível do pessoal de São Paulo. Lá eles tocam sertanejo e eu preciso adaptar ao erudito. Eu respeito. Inclusive, brigo muito e defendo a tese de que o Guri, todos os dias, tem uma novidade e que você aprende todos os dias com ele. Temos de dar os cursos embasados em uma realidade. Como, por exemplo, em Pontal de Paranapanema, onde o pessoal dá aula embaixo da árvore. Coisas do tipo "olha, dou aula embaixo da árvore, então vou girando embaixo da árvore conforme o sol bate". Essa é a realidade deles. Se um menino em Ouro Verde se acha competente para tocar na Igreja, para o padre, ele toca! Eu tenho uma metodologia, existem critérios e o limite. Agora, cada um com a sua realidade. O Guri é um projeto sensível, que dá oportunidade para todo tipo de criança e adolescente. E todos aprendem juntos. No começo eles têm medo, mas sabem que ninguém sabe e vão caminhando juntos.
Quantas pessoas trabalham no projeto?
Eu tenho hoje uma equipe de 180 pessoas, entre professores, monitores e carregadores de instrumentos. É uma empresa.
Como é formado o repertório das orquestras?
São formados a partir da particularidade de cada região. Por exemplo, se vamos fazer um espetáculo com Arthur Moreira Lima, o repertório é criado com a orquestra que vai tocar.
Mas vocês também tocam música erudita?
Sim, há uma seqüência.
E a recepção da música erudita é boa?
Sim, eles adoram, tocam muito bem e sabem que é importante para a formação. Fizemos um espetáculo maravilhoso na sala São Paulo tocando Villa-Lobos.
Como você entrou no projeto?
Eu fiz o projeto. O Secretário foi ao hospital de Ouro Verde visitar um trabalho de orquestra com crianças do campo. O Guri nem existia nessa época. Ele voltou encantado! A proposta de fazer um projeto igual ficou uns três meses rodando. Chegavam diversos projetos na minha mesa relacionados à música e cultura e eu atendia a todos, de todos os municípios. Depois, passei a administrá-los. Até que chegou à minha mesa a proposta dele, embora ninguém soubesse direito o que ele queria. Um dia disseram que só eu poderia resolver, já que tinha um conhecimento maior. Houve muitas conversas e decidimos que só poderíamos ter certeza de algo se fizéssemos um piloto. A primeira coisa de que precisávamos era dos instrumentos. Comprei tudo fiado de um amigo de Osasco. Fizemos um piloto na oficina Marcos Mazzaropi em 1995 com 120 crianças, e naquele mesmo ano fizemos uma apresentação da orquestra, no próprio auditório da oficina. Ninguém acreditava no que estava acontecendo. Em 1996, paramos porque não havia verba, mas eu não desisti. Guardamos os instrumentos e em meados de 1996 nos chamaram para fazer o trabalho na Febem. Então, fizemos os primeiros dois pólos. O Guri é um projeto social, não dá para você ensinar música a uma criança com a barriga roncando de fome. Agora nós vamos abrir um pólo aqui no centro, em frente à Sala São Paulo, que atenderá todas as crianças da região e meninos de rua. Eu estou preparando um pólo com chuveiro, banheiro etc., porque não dá para pegar um menino que estava cheirando cola na rua e simplesmente trazê-lo para cá. Precisamos ficar atentos e verificar se ele quer mesmo, daí checar as possibilidades. Com a minha experiência hoje, acho que todo menino de rua, todo infrator e todo drogado merecem uma oportunidade na vida, é o direito de todo cidadão. A grande maioria que tem essa oportunidade escolhe o melhor caminho. Você pode não formar músicos, mas pode dar oportunidades. Eu sei que há pessoas achando um absurdo eu querer ensinar música para quem está morrendo de fome. Mas com a música é diferente. O jovem vai ouvir, vai entrar no cérebro dele, no coração. Quem não se envolve com música? É uma terapia. E quando você trabalha com isso, mostra à pessoa que ela é um ser humano como todos, basta ela querer.