Fechar X

As contas não fecham

Postado em 01/05/1998

CECÍLIA ZIONI

Um sério risco reaparece no cenário brasileiro, o déficit público, neste ano especialmente delicado: as campanhas para as eleições de outubro já começaram e a economia perdeu o frescor dos bons efeitos iniciais do Plano Real.

Não é um fantasma; o problema é real: feitas e refeitas as contas, entre as conhecidas colunas do balanço, receita e despesa, no final do ano passado ficaram faltando uns R$ 9 bilhões, ou 0,94% do Produto Interno Bruto (PIB). De janeiro a abril, a coisa melhorou, com a expansão da arrecadação federal em 27% sobre o mesmo período do ano anterior. Nos quatro primeiros meses do ano, o Tesouro recebeu R$ 47,5 bilhões (R$ 35,4 bilhões em 1997) e abril teve a terceira maior arrecadação mensal na história da Secretaria da Receita Federal. Áreas mais responsáveis do governo reconhecem que, se a arrecadação vai bem, vai mal o controle dos gastos e não há mais como se eximir de culpa, atribuindo-a totalmente à forçosa alta de juros pós-crise asiática ou a abusos dos governos estaduais e municipais em tempos pré-eleitorais.

O déficit primário está aí, mais forte que o esperado ou acima da tendência que seria suportável. É preciso agir rapidamente. Não se pode pensar em novo pacote fiscal, sob risco de aumentar ainda mais o nível de sonegação que já deve ser recorde mundial, ou de ampliar a asfixia da economia formal, exacerbando, de quebra, a chaga social do desemprego.

Alguns movimentos foram decididos pelo governo e já anunciados. Vai-se começar por cima, esclarece Everardo Maciel, secretário da Receita Federal. Um forte controle será exercido sobre transações comerciais e financeiras de empresas brasileiras realizadas nos chamados paraísos fiscais - como as ilhas Cayman, Antilhas Holandesas, ilhas Virgens, citadas no Diário Oficial da União. O governo não diz quanto dinheiro o Brasil movimenta nesses paraísos, mencionando apenas que 10% das importações brasileiras vêm de Cayman. Além disso, o Banco Central está pensando em criar um departamento só para fiscalizar a lavagem de dinheiro no país. Também não se sabe, oficialmente, quanto do Produto Interno Bruto (US$ 893 bilhões, em fins de 1997) se perde nessas operações.

O que se faz quando se gasta mais do que se ganha? Qualquer pessoa com bom senso procura reduzir despesas - o que não é tão fácil para qualquer governo, menos ainda um como o brasileiro, inflado de compromissos dos quais boa parte foge de seu controle, por causa de vinculações constitucionais. Pior ainda é se o governo tem de enfrentar um ano eleitoral.

Se não é possível baixar os gastos, a saída é aumentar a receita. Como fazer isso é o problema, e a tendência mais comum tem sido escolher a solução menos indicada, ou seja, aumentar os impostos. A propósito, pergunta-se: qual é o peso da sonegação fiscal interna nesse imbróglio todo? Segundo o próprio governo, só metade dos contribuintes potenciais paga seus impostos. Não seria mais fácil e mais eficaz tentar eliminar as causas da evasão fiscal do que ir caçar em paraísos fiscais? No Brasil, a questão da sonegação fiscal é muito menos discutida do que deveria, diz um economista.

A frase não é boa nem nova, mas o Brasil continua sendo o país dos contrastes. Cai o ritmo da economia, a arrecadação federal bate recordes, comidos pelo aumento indefensável das despesas. E mais: a sonegação não se atenua mesmo apesar de a fiscalização ter melhorado na União e em alguns estados, que, como São Paulo, modernizaram seus sistemas de controle. Mas ninguém acredita que já se chegou a tanta eficiência.

Os dados foram divulgados há algumas semanas:

  • no primeiro quadrimestre do ano, informa a Receita Federal, R$ 47,5 bilhões entraram nos cofres federais, 30% mais que no mesmo período do ano passado,
  • o Produto Interno Bruto brasileiro no primeiro trimestre do ano foi 1,1% maior que o do esmo período em 1997, anuncia o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Caiu o ritmo: no ano passado, o começo do ano fora mais produtivo, pois o PIB crescera 3,8%.

Sonegação não se mede, se estima. No Brasil do Real, a sonegação, historicamente calculada em 50% da receita efetiva - na base do R$ 1 sonegado por R$ 1 recolhido -, estaria crescendo, insuflada por alguns dos mais irresistíveis fatores da evasão fiscal: elevada carga tributária, intensa complexidade fiscal, pesada taxa de juros.

Alguém explica?

O pior é que isso se explica, sim: a receita cresceu porque aumentou a carga tributária, tida já como dificilmente suportável. No começo do ano passado, não se cobrava ainda a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, a CPMF, e também não se exigia o Imposto de Renda (IR) antecipado sobre rendimentos de capital. Também devem ser expurgados do aumento de 30% os ingressos patrocinados pelos bons leilões da privatização da telefonia - e sem as receitas não tributárias o aumento cai para quase 20%. Não é pouco, mesmo porque algumas alíquotas foram elevadas neste ano ou no final de 1997: por exemplo, a do IR dos assalariados, que passou de 25% para 27,5%, e a do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) nos empréstimos bancários, que era de 6% e foi para 15%.

Ou seja, continua-se aumentando uma já elevada carga fiscal, o que não pode tornar senão ainda mais tentadora a possibilidade de sonegar. O lado bom dos últimos tempos, a estabilidade trazida pelo Plano Real, não chega a alterar o cenário, e continua sendo muito atrativo o prêmio oferecido pela sonegação. Para alguns economistas, essa tentação até se amplia entre os empresários em tempos como os atuais, em que a busca pela competitividade no mercado interno e externo se torna pressão constante e crescente.

Estudos de várias fontes, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), calculam já passar a carga fiscal de 32% do Produto Interno Bruto. Aplicando a esse índice o grau histórico de sonegação, o advogado tributarista Antonio Carlos Rodrigues do Amaral conclui que, do ponto de vista do contribuinte, a carga fiscal equivale a 64% do PIB. É seguramente um recorde internacional, comenta Antonio Lacerda, ex-presidente do Conselho Regional de Economia de São Paulo, agora membro do Conselho Federal de Economia, para quem a sonegação fiscal deveria ser tema mais freqüente nos debates dos formuladores de políticas públicas.

Sonegação, evasão e elisão fiscal - nomes diversos para um efeito fiscal de mesma essência - tendem a continuar crescendo, diz Clóvis Panzarini, coordenador de Política Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, "enquanto não se fizer uma verdadeira reforma tributária e a legislação punitiva continuar tíbia". Mais que suave, a legislação nesse campo chega a ser, em alguns casos, um estímulo ao desvio, dizem alguns estudiosos (ver texto abaixo).

Novo pacto

A verdadeira reforma tributária ainda está por vir, mesmo porque até as chamadas "reformas possíveis" tendem a se atrasar no Congresso. "É necessário um novo pacto federativo, em que toda a escala de impostos e competências seja revista, visando chegar a uma simplificação capaz de eliminar a evasão fiscal e de transformar todo cidadão em contribuinte, na justa medida", diz Panzarini, desanimado com as propostas de reforma que circulam há anos, tanto no Legislativo como no Executivo. Ele sonha com a concretização, em proposta formal, de uma fórmula ideal composta por quatro elementos: estrutura fiscal simples, alíquotas civilizadas, fisco equipado, legislação punitiva adequada.

A realidade é bem outra, a começar pela complexidade fiscal. Martus Tavares, secretário executivo do MPO na gestão Antonio Kandir, chama a atenção para o fato de no Brasil "governadores e prefeitos disporem de autonomia para fixar alíquotas de impostos" e, por isso, "quando se fala em ajuste fiscal é preciso considerar um universo que contempla não só o governo federal, mas também 26 estados, o Distrito Federal e, sobretudo, mais de 5,5 mil municípios, com as mais profundas disparidades socioeconômicas". Mais de 500 municípios foram criados, nos últimos cinco anos, ampliando ainda mais essa diversidade.

A reforma necessária não se limitará ao sistema dos impostos: deve alterar também a repartição dos encargos dos três níveis de governo (União, estados, municípios), modificando a relação de poderes, adverte Lacerda, que antevê muita dificuldade para o avanço de propostas mais modernas ou próximas de alguns bons exemplos europeus, entre os quais ele menciona o alemão.

O senador Vilson Kleinubing prepara mais uma proposta de reforma tributária centrada especialmente nessa questão - e por isso tem vistoso apoio da equipe econômica do governo. Quer definir a repartição de impostos entre União, estados e municípios, redividindo o território nacional segundo critérios fiscais. O objetivo é restabelecer equilíbrios orçamentários e fiscais e tirar os estados e municípios devedores da responsabilidade do Tesouro da União. Pode ser mais um caminho para a necessária simplificação fiscal.

Descomplicar

Estava prometida para fins de abril a divulgação de minutas de legislação que consubstanciam a chamada Reforma Pedro Parente, anunciada em setembro do ano passado com o objetivo de oxigenar a proposta de reforma fiscal remetida ao Congresso Nacional há anos e ainda se arrastando em alguma comissão da Casa, sob a guarda do relator Mussa Demes.

O que pensa Pedro Parente, secretário executivo do Ministério da Fazenda, a respeito do problema fiscal? A sua resposta a essa pergunta até parece a de um empresário: "O sistema atual estimula a informalidade e a sonegação. O grande número de impostos faz com que o contribuinte se arrisque a não recolher. É quase impossível distinguir quem o faz intencionalmente dos que, ainda que não queiram, não conseguem fazer o recolhimento adequado".

Ou seja, a Fazenda sabe que nem sempre é fácil cumprir a lei. "Os impostos tributários de base restrita são os mais fáceis de sonegar e, por serem complexos, a evasão é estimulada." A Fazenda tem, também, uma forma de resolver a questão, a concluir das seguintes palavras de Parente: "Portanto, a combinação adequada de impostos" (Imposto de Renda e Imposto sobre Valor Agregado, segundo sua proposta) "reduzirá substancialmente as chances de sonegação, estimulando a formalização das empresas, desde que o sistema seja simples, com uma base de cálculo direta, sem confusão e com uma única alíquota".

Complicando

Não é o que costuma acontecer, como provou o próprio Ministério da Fazenda, nos últimos meses, ao aumentar e recriar impostos, a partir da crise da Ásia. E o governo sabe disso, pois Parente mesmo dissera a agentes fiscais, há alguns meses, que "toda vez que se complicam as coisas, diferenciam-se as alíquotas e criam-se critérios distintos para os cálculos das bases, torna-se mais complexo o sistema, levando à sonegação". Por isso, ele mesmo recomenda: "Se o Manual do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) não tivesse mais que duas ou três páginas, estaria encerrado o assunto: calcule-se a base dessa forma e aplique-se a alíquota de 10%, 12% ou 15% que for e acabou-se. Não haveria problema nem para pagar, nem para fiscalizar".

Um dos maiores especialistas em ICMS, Clóvis Panzarini se assusta com algumas das propostas incluídas no projeto elaborado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), da Universidade de São Paulo, e encampada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Seu principal defeito, assinala Panzarini, é transferir para o varejo a função de recolhimento dos impostos. "Isso pulveriza o recolhimento e impossibilita a fiscalização", adverte, baseado nos bons resultados que a secretaria paulista da Fazenda vem tendo desde que racionalizou o serviço de seus fiscais.

"Saímos da fiscalização jurisdicional e passamos para a setorial. Ou seja, foram criados comitês setoriais especializados, começando por aqueles que oferecem maiores evidências de sonegação fiscal (como combustíveis, não-ferrosos e bebidas) e, a partir de uma visão sistêmica, concentrou-se a fiscalização em cadeias, agindo diretamente sobre os nós e gargalos." O sistema tende a melhorar se, cabendo à origem o recolhimento fiscal, a fiscalização puder ocorrer ainda mais concentradamente. Em outras palavras: é mais racional controlar as fábricas de bebidas que tentar controlar todos os bares, lanchonetes e restaurantes.

Citando um segmento industrial bem mais pulverizado, o de confecções, o técnico da Fazenda diz que vale a mesma fórmula: "Não é justo um camelô de rua poder vender uma calça jeans sem pagar os 70% ou 80% que o comerciante regularmente estabelecido é obrigado a incluir no preço final do produto que oferece em sua loja".

Os resultados dessa nova fiscalização, afirma Panzarini, ainda não podem ser dimensionados, mas seguramente já estão influindo na receita estadual, que, mesmo com a baixa atividade econômica do início do ano e ainda sob os efeitos da Lei Kandir (desoneração das exportações), vem crescendo acima do produto. No caso do ICMS, não houve elevação de alíquota. Parte dessa alta, diz o coordenador tributário, veio da nova forma de cobrar o Imposto sobre Veículos Automotores, o IPVA, outra importante fonte de receita estadual. "Antes, o IPVA era declaratório, isto é, o contribuinte é que preenchia a guia de recolhimento e o Estado não conseguia checar a veracidade das informações."

Agora, o sistema foi informatizado, foram cruzados os bancos de dados da Fazenda e do Detran, e o contribuinte recebe o formulário pronto para o pagamento - simplificado e podendo ser feito até por computador ou terminal de banco. "Resultado: a sonegação é zero, virtualmente", comenta Panzarini, que sonha com um sistema semelhante para o ICMS.

Para os professores da Fipe que prepararam uma proposta de reforma fiscal, a saída é mesmo por aí. "Um sistema simplificado facilitaria a fiscalização, desoneraria os poucos pagantes (quando poucos pagam impostos, estes pagam muito) e, desse modo, estimularia a atividade econômica, porque teria condições de ampliar a base tributária, diminuindo as ineficiências existentes e os efeitos perversos em termos de alocação de recursos, além de possibilitar maior competitividade para o produtor nacional."



Quando a lei é fraca

A tibieza da legislação com que, no Brasil, os crimes fiscais devem ser punidos é considerada uma forma indireta de estímulo à sonegação e à fraude. Em tempos de inflação alta, atrasar alguns dias o recolhimento fiscal já era suficiente para gerar lucros por conta da especulação financeira. O Estado perdia, mas também encontrava alguma proteção porque os seus débitos não tinham a mesma correção inflacionária.

Em tempos de estabilidade trazida pelo Plano Real, que, agora, chega até a registrar deflação, a situação não muda muito. Como não há punição severa, sonegar ou atrasar ainda é uma forma de lucro para empresários inescrupulosos ou apertados pela inadimplência. Há que ressalvar que muitos dos contribuintes faltosos não têm intenção criminal: a complexidade fiscal é causa de largas faixas da evasão, nem sempre de má-fé, como admite o próprio coordenador de Política Tributária da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, Clóvis Panzarini.

Mas é também verdade que muitos contribuintes sabem se aproveitar gostosamente dessa suavidade legal, como diz Panzarini, com a concordância de Antonio Lacerda, do Conselho Federal de Economia. Muitos são os artifícios, brechas e subterfúgios escondidos na legislação, que têm feito fortuna para um bom número de escritórios de advogados não muito preocupados com os fundamentos da lei.

Mas há leis que, por si próprias, funcionam como uma "clara mensagem ao contribuinte de que sonegar impostos é vantajoso", como escreveu, em artigo publicado na revista do Sindicato dos Delegados de Polícia Federal de São Paulo, o procurador da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves. Ele se refere ao artigo 34 da lei 9.249/95, que "reintroduziu no sistema jurídico brasileiro a possibilidade de extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, pelo pagamento dos tributos e acessórios". Esse artigo elimina a denúncia de crime quando o contribuinte devedor, antes de ação penal pública, pagar seu débito. Ou seja, favorece quem reteve dinheiro público mas tem recursos para pagar e só o faz na iminência da punição, sem dar a mesma chance a quem deve mas não tem recursos.

Uma medida provisória dá tratamento semelhante a quem deve à Previdência Social. Empregador que não recolheu ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), fez o desconto da parcela devida pelo empregado e reteve o dinheiro pode pedir prazo de até 18 meses para parcelar sua dívida, desde que não tenha sido denunciado pelo Ministério Público. Se pagar, com essas vantagens de prazo, sua punibilidade será extinta.

Mais uma amostra da suavidade com que alguns crimes fiscais são tratados no país. Pelo artigo 83 da lei 9.340/96 só podem ser impetradas ações contra débitos de pessoas jurídicas ao Imposto de Renda depois do esgotamento da ação administrativa na Receita Federal. De certa forma, dá-se tempo para o acusado obter até lucro com aplicações financeiras feitas com dinheiro que legalmente não estaria disponível.

A simplificação fiscal é, segundo especialistas tributários, a melhor forma de eliminar a sonegação. É o que dizem antigas regras, contidas em todos os bons compêndios de economia, tão poucas vezes seguidos pelos governos:
• É mais eficiente cobrar pouco de muitos que cobrar muito de poucos.
• Onde todos pagam, todos pagam igualmente.


Comentários

Assinaturas

Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)