Postado em 14/11/2013
"Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse minha mãe compraria rapadura ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás de casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário de meu irmão ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão e achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio e de noite eles iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: a minha árvore deu lindas flores em Setembro.
E o seu rio não dá flores!
Eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre os pássaros.
Nesse ponto nossa vida era um afago!
(Manoel de Barros, em Memórias inventadas)
Na última sexta feira do mês, às 15h, o geógrafo Luiz de Campos Jr. e o arquiteto e urbanista José Bueno, idealizadores do projeto Rios e Ruas, participam do relato de experiências sobre Urbanidades Líquidas - Cidades que Fluem, um dos eixos do Seminário Internacional Cidadânia Ativa & Transformação Urbana, que o Sesc Santos realiza nos dias 28 e 29 de novembro.
A EOnline conversou, por chat, com Luiz Campos e José Bueno para desvendar um pouco destas experiências que, como eles explicam, "levam as pessoas a reconhecerem esses aspectos, a se perguntarem o porquê de temos optado por construir uma cidade assim e, finalmente, perceber que uma outra cidade pode ser desejada e construída a partir dessa consciência". A seguir você confere os principais trechos da conversa:
EOnline: Ao refletir sobre as cidades, provavelmente, poucas pessoas pensam na estrutura hidroviária, e provavelmente menos ainda na relação dos cursos d'água com a emoção e a cidadania. Como vocês percebem isso?
Luiz de Campos Jr.: No caso de São Paulo e de outras grandes cidades no Brasil, acho que isso não tem a ver apenas com a hidrografia, creio que tem relação com uma dicotomia criada e incentivada de pensar o urbano como negação da natureza.
José Bueno: Percebemos também como uma visão que tendeu a considerar a apropriação do espaço público pelas iniciativas privadas como natural, afastando as pessoas da fruição desse espaço público.
L.C.J.: Penso que a generalização dessas concepções de como "as coisas são" em uma grande metrópole, acabam por alienar as pessoas do seu espaço de vida, tanto social como natural, dificultando ou mesmo impedindo um envolvimento afetivo.
EOnline: Como funciona o Rios e Ruas?
L.C.J.: A iniciativa Rios e Ruas trabalha no sentido de ajudar a desfazer essa "alienação" dos moradores da cidade com relação ao seu espaço de vida, tanto natural como social. Partindo do tema dos rios, ribeirões, riachos e nascentes presentes no espaço urbano e "invisibilizados" no cotidiano da cidade, levamos as pessoas a descobrirem uma riqueza de elementos naturais desprezados nesse ambiente por meio de palestras, oficinas e, principalmente, expedições pelo ambiente urbano. Levamos as pessoas a reconhecerem esses aspectos, a se perguntarem o porque de temos optado por construir uma cidade assim e, finalmente, perceber que uma outra cidade pode ser desejada e construída a partir dessa consciência.
EOnline: Como vocês percebem o curso das águas influenciando nas relações das pessoas, entre elas, e delas com as cidades?
L.C.J.: Os rios sempre foram um elemento muito importante na constituição das cidades, a esmagadora maioria delas tem na presença de um rio um condicionante importante para ter sido fundada onde foi.
J.B.: São Paulo foi fundada em uma colina cercada por cursos d'água, em especial o Riacho Anhangabaú (e seus afluentes Itororó e Saracura) e o Rio Tamanduateí. A proximidade da várzea do Rio Tietê, que tem seu curso em direção ao interior do continente - também foi provavelmente a condição mais importante para ela ser fundada onde hoje está o seu centro histórico.
L.C.J.: Os rios da cidade foram elementos muitos importantes para sua sobrevivência e seu crescimento, mas também foi sua maior fonte de lazer durante quase toda sua história. Somente a partir das décadas de 1930 a 1950 é que se perde - quase que totalmente - a possibilidade de utilizar esses rios como fonte de pesca, transporte, materiais de construção e locais públicos e privados para a prática de esportes aquáticos e de encontro e lazer.
Expedição pelo vale do Riacho das Corujas, na divisa da Vila Beatriz com a Vila Madalena, em SP.
[Foto: Alexandre Hodapp/ Rios e Ruas]
EOnline: Que importância tem um encontro como o Seminário Internacional Cidadania Ativa & Transformação Urbana
L.C.J.: Um evento como este do seminário é muito bem vindo! É ao mesmo tempo um indicativo e uma oportunidade. Indicativo da importância que a participação das pessoas no desenvolvimento das cidades vem ganhando, não só no Brasil como em vários lugares do mundo. Um movimento que demonstra um anseio geral de que as cidades sejam pensadas para as pessoas que nela habitam. Oportunidade de conhecermos outras experiências e trocarmos informações e vivências sobre ações relacionadas a temas como formas de participação mais democráticas na gestão das cidades, resignificação e ocupação dos espaços públicos, mobilidade urbana como ferramenta para a humanização das cidades e, particularmente no nosso caso, a busca por um equilíbrio entre o desenvolvimento e a qualidade ambiental urbana.
J.B.: Pensando no Rios e Ruas, estar na mesma mesa com o representante da cidade de Yonkers/ NY, onde foi feita a maravilhosa renaturalização do rio Saw Mill no centro da cidade, depois de 90 anos enterrado em uma galeria, é para nós uma oportunidade espetacular.
EOnline: Vocês comentaram que em São Paulo, a partir das décadas de 1930 a 1950, houve uma mudança na forma de lidar com os rios, perdendo-se praticamente toda a possibilidade de utilizá-los. Esse cenário ainda pode ser revertido?
J.B.: Sim, absolutamente! Todas as grandes cidades no mundo têm ações nesse sentido, não há como ficarmos à margem. A recuperação de rios tão ou mais comprometidos que o Pinheiros ou o Tietê, como o Tâmisa, em Londres, ou a bacia do Sena, na França, são exemplos disso. A cidade de Seul, com o desmonte da via elevada e a abertura do rio que cortava seu centro também é um exemplo que ficou bastante famoso.
L.C.J.: Mas iniciativas menos espetaculares, como a recuperação do Saw Mill, em Yonkers, também podem ser encontradas por toda parte. Mesmo em São Paulo, vemos algumas iniciativas, ainda que tímidas, nesse sentido. A política de implantação de parques lineares é uma delas. Uma outra, bem mais exemplar, é a renaturalização do córrego Pirarungáua, no Jardim Botânico, um curso d'água que permaneceu tamponado por mais de 70 anos e hoje corre a céu aberto, com peixes, quedas d'água e linda vegetação em suas margens, contribuindo para multiplicar em várias vezes a afluência de visitantes ao parque desde a sua recuperação.
EOnline: Com o trabalho que vocês vem desenvolvendo na cidade de São Paulo, para além da sensibilização, já percebem alguma mudança prática?
L.C.J.: Sim! E uma delas é estarmos conversando agora. Trabalho com o tema dos rios invisíveis de São Paulo há mais de dezoito anos, mas a iniciativa Rios e Ruas só passou a existir quando conheci o José Bueno, há três anos. A partir daí, o Bueno trouxe a necessidade de "ganharmos as ruas", levando essa informação para as pessoas em geral, promovendo atividades vivenciais, "em campo".
J.B.: A repercussão desse trabalho foi muito grande a partir daí, em parte porque as pessoas já estavam "prontas" para receber uma ideia que pouco tempo antes soava como "maluca". Em parte porque essa é mesmo uma informação que tinha de sensibilizar o maior número de pessoas possível para ganhar "massa crítica".
LCJ - E é isso que temos visto, temos sido convidados para palestras, encontros, oficinas em cursos superiores na área de sustentabilidade. Cada vez mais nosso trabalho e o tema dos rios da cidade tem sido tema de reportagens, estudos, novas propostas de intervenção, discussões e até de interesse por parte de políticos.
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