Postado em 01/05/1998
MARCOS FAERMAN
No limiar do terceiro milênio e em seu 444º ano de fundação, a cidade de São Paulo parece querer desafiar uma frase docemente provocativa do mestre francês Claude Lévi-Strauss, um dos fundadores da Universidade de São Paulo, que disse, no seu livro "Tristes trópicos", que a capital paulista era uma cidade antropofágica. Devorara as próprias entranhas com método e gula. E não se importava em chegar à barbárie sem ter passado pela civilização. Muitas décadas depois, um dos mais importantes e apaixonados estudiosos de São Paulo, o arquiteto Benedito Lima de Toledo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, diria algo na linha de Lévi-Strauss:
"A cidade de São Paulo é um palimpsesto - um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral. Uma cidade reconstruída duas vezes sobre si mesma, no último século".
A revitalização de significativa área paulistana é parte de um minucioso e factível projeto do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Ministério da Cultura. Dele também participam como parceiros o governo do estado de São Paulo e a prefeitura da cidade, por meio do Departamento do Patrimônio Histórico (da Secretaria Municipal de Cultura), a quem cabe administrar o projeto. Mas a proposta do BID - baseada em vitoriosa iniciativa de recuperação em Quito, Equador - tem um espectro maior ainda: está voltada, com um cacife inicial de US$ 100 milhões, para outras seis cidades brasileiras: Olinda, Recife, São Luís do Maranhão, Salvador, Rio de Janeiro e Ouro Preto.
Referindo-se especificamente ao caso paulistano, a diretora do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), Maria Aparecida Lomônaco, lembra que os censos mostram uma interrupção no crescimento da metrópole. "E o que se tem percebido é todo um interesse da cidade em se voltar para si própria, para seus bairros tradicionais, para sua história ainda recuperável", diz ela.
Não se trata apenas de uma reflexão sobre o espaço urbano mas uma verdadeira ação, que passa por estudos, projetos e um desejo, demonstrado por muitos círculos da esfera pública ou privada, de criar uma cidade menos atormentada pelo espectro dos imensos blocos de cimento, cobertos de pichações estúpidas, sufocada por mantas negras de poluição e por imensas populações que vivem à margem de qualquer idéia de civilização.
Reforma polêmica
Além disso, pesa na consciência de uma parte da elite paulistana a idéia de que um certo laissez-faire pode ter comprometido, para sempre, os elementos arquitetônicos e urbanísticos que poderiam ter preservado espaços históricos vitais, que dariam mais encanto ao cotidiano de todos.
Talvez reflexo desse novo olhar, estão em curso variadas ações voltadas para o patrimônio paulistano. Uma delas é a chamada Operação Urbana Centro, que procura detectar as preciosidades a ser restauradas e estimular a iniciativa privada a participar de sua recuperação. Para tanto, houve um concorrido concurso de idéias para o centro de São Paulo. Outro concurso visou o planejamento do restauro do prédio dos Correios, da lavra do mítico arquiteto Ramos de Azevedo. O governo estadual recuperou o prédio da Pinacoteca do Estado, numa polêmica intervenção do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que alterou o projeto original de Ramos de Azevedo. Também o governo do Estado tem feito grandes investimentos na recuperação da Estação Júlio Prestes, construída entre as décadas de 1920 e 1930 segundo projeto de Christiano Stockler das Neves, em que o "conforto americano se conjugava ao bom gosto francês".
A estação foi feita no apogeu do ciclo do café, numa cidade voltada para todo tipo de negócios. Silvana Rubino e Antonio Souklef Junior, em obra recente sobre a própria estação, que hoje não é mais parte de uma linha ferroviária, se referem à "atitude de uma sociedade para com sua cidade, revelada pela escolha do melhor, do mais luxuoso para a construção do edifício que receberia as pessoas em São Paulo". E expressam um desejo (ou uma proposta?) em relação a esse espaço: "Que a cidade possa reter na memória mais do que seu belo desenho e seu espaço exuberante: a ousadia de uma cidade que, neste século, definiu sua vocação para o progresso. E que, ao final do mesmo século, talvez devesse perder a ousadia e, sem abrir mão da vida metropolitana, redefinir o que quer para si".
A Estação Júlio Prestes foi restaurada para ser sede da Secretaria de Cultura do Estado e terá um dos seus espaços ocupado pela Sinfônica Estadual.
Outro projeto em curso também sublinha a vocação cultural dessa área da cidade. O prédio de cargas da antiga Sorocabana, também concebido por Ramos de Azevedo, será transformado em uma escola de música. É um destino bem diferente daquele que em outras épocas teve o edifício, que foi por muitas décadas sede do temido Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Em tempos ditatoriais, funcionou como casa de torturas e outros horrores.
Projeto Luz
Mas a ação mais abrangente de recuperação do patrimônio histórico paulistano talvez seja o Projeto Luz, que envolve o BID, o governo federal e os poderes estadual e municipal de São Paulo. O plano inclui todas as regiões de entorno desses bens tombados, com as ruas adjacentes, como a Mauá, Avenida Casper Líbero, o belíssimo Jardim da Luz - que, aliás, comemora seu bicentenário em 1998 -, a Praça Coronel Fernando Prestes e o antigo prédio da Politécnica, que hoje abriga o Departamento do Patrimônio Histórico, sob a égide do nome do próprio arquiteto que o criou, Ramos de Azevedo. O restauro da Estação da Luz não faz parte desse projeto, pois já estava previsto em outro, que será realizado pela Companhia Paulistana de Transportes Metropolitanos (CPTM), com financiamento do Banco Mundial.
O Projeto Luz irá viabilizar a conclusão das obras do Edifício Ramos de Azevedo - um dos cartões-postais da cidade. Propiciará, assim, a implantação da Casa da Memória Paulistana, que vai reunir, em condições tecnicamente impecáveis, em áreas climatizadas e com equipamentos de última geração, os acervos que o município vem recolhendo desde a criação do Departamento de Cultura Mário de Andrade, no ano de 1936. Esse patrimônio é constituído por preciosidades, incluindo até documentos anteriores à fundação da cidade, em 1554. São peças referentes a Santo André da Borda do Campo, que nasceu anteriormente e cuja população se transferiu, depois, para a Paulicéia. O acervo da Casa da Memória tem outro tesouro cultural, histórico e documental: 500 mil negativos fotográficos que registram episódios da trepidante aventura de São Paulo e seu salto fantástico de uma aldeia de 20 mil habitantes, até boa parte do século 19, para uma das metrópoles do planeta no século 20.
A civilização no território paulista muito deve à implantação do sistema ferroviário, a partir de 1867. O café ganhou uma poderosa via de escoamento e pôde, assim, ser colocado velozmente no mercado mundial, através do porto de Santos. Diga-se de passagem que os técnicos - em sua maioria ingleses - que enfrentaram a serra do Mar eram obrigados a magistrais exercícios de engenharia, mas também de imaginação criadora, para compor o sistema, desafiado por uma natureza prodigiosa.
Mas quando o apito do trem cortou os céus de São Paulo e chegou à capital, foi como se o mundo mudasse. O dinheiro fluía com a velocidade das grandes máquinas inglesas. Muitos fazendeiros se transferiram com suas famílias para a capital. Surgiram novos bairros, hotéis de qualidade e uma vida muito mais aberta para todos.
Obra britânica
Com seu estilo delicioso, o escritor naturalista Júlio Ribeiro, em A carne, romance de costumes com tons de reportagem, descreve com entusiasmo as linhas de trens e as paisagens cortadas por elas. A certa altura, vai dizer: "Ganham, ganham muito dinheiro, ganham riquezas de Creso os ingleses, e merecem-nas. O progresso assombroso de São Paulo, a iniciativa industrial do paulista moderno, a rede de vias férreas que leva a vida, o comércio, a civilização a Botucatu, a São Manuel, a Jaú, ao Jaguaré, tudo se deve à Saint Paul Rail Road, à Estrada de Ferro Santos-Jundiaí".
E aproveita a oportunidade para uma provocação política: "Rule Britannia! Hurrah for the English! Já que o nosso governo não presta para nada".
O arquiteto Benedito Lima de Toledo diz, por sua vez, que a Estação da Luz é um autêntico símbolo da Metrópole do Café, da Capital dos Fazendeiros. Projeto de alto nível elaborado na Inglaterra, teve igualmente uma execução cuidadosa, com material vindo desse país. "Sua construção criou um novo centro focal em São Paulo, e sua implantação se beneficiou com a proximidade do Jardim Público, como nessa época era chamado o Jardim da Luz."
O cronista Ernani Silva Bruno se refere, também, ao "esplendor ferroviário em São Paulo", dizendo que ele "era simbolizado naquela época pela construção da Estação da Luz, edifício de proporções monumentais, dotado das comodidades das mais notáveis edificações de seu gênero em todo o mundo". Na verdade, existiram três estações da Luz, sendo a primeira de 1867; uma segunda, um pouco mais ampla, ainda do século passado; e a terceira de 1901, que chegou até nós, apesar de um terrível incêndio nos anos 40 ter destruído boa parte das suas instalações. A gestão da ferrovia São Paulo-Santos-Jundiaí mudou várias vezes de mão, a começar pela nacionalização. O sistema desse modo de transporte foi unificado pela Rede Ferroviária Federal. A CPTM é, hoje, responsável pelo transporte de passageiros na área metropolitana. O transporte de cargas foi privatizado e uma empresa assumiu a rica área territorial que envolve Minas, Rio e São Paulo.
Deterioração
Como diz o arquiteto Walter Pires, do DPH, nas últimas décadas a bela Estação da Luz sofreu um constante processo de pequenas reformas que não impediram a sua deterioração. Ao mesmo tempo, a partir dos anos 70 e 80 ficou cada vez mais evidente a necessidade de sua modernização, em parte devido à saturação do sistema, prejudicando, e muito, o fluxo de passageiros. Existe, agora, a clara visão de que deve ser modernizado, em todos os sentidos, o trecho ferroviário que passa pelo Brás, pela Luz e pela Barra Funda, ainda mais com a saturação do serviço de metrô que cobre essa área. O governo estadual pretende investir na compra de trens modernos e rápidos. A inevitável reforma e restauro da Estação da Luz passa pelo crivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, seção São Paulo, do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico, estadual, e do Departamento do Patrimônio Histórico, municipal - uma vez que se trata de bem tombado pelos três órgãos.
Walter Pires diz que o desenho básico do projeto da CPTM já foi aprovado. Ele cria duas novas plataformas, que adentram a própria estação. Comporta, também, duas novas passarelas na cobertura, quase uma pequena rua, que ligam a Rua Mauá à Praça da Luz, pelas quais os passageiros poderão alcançar a plataforma de embarque. Mas, de acordo com o espírito que rege as novas intervenções na área, a CPTM também está prevendo novos usos para a estação, que poderá ter, por exemplo, um restaurante de qualidade.
Como diz a diretora do DPH, Maria Aparecida Lomônaco, o Projeto Luz visa não somente o restauro dos edifícios públicos mas a recuperação de casas particulares e também dos logradouros - praças, ruas e parques. Além do mais, há uma preocupação com projetos de caráter social, como a formação de mão-de-obra média, que pode contribuir para a recuperação de muitos garotos que vegetam nas proximidades da Estação da Luz e áreas contíguas, dominados pelo terrível vício do crack, que os inutiliza socialmente e conduz à morte.
![]() | |