Postado em 01/07/2000
A casa, o quintal, o jardim, durante décadas ele podia avistar a quilômetros de distância, na estrada, da janela do carro, entrando na rodovia, sempre que viajava. Agora, definitivamente, não dava mais. O "boom" imobiliário dos últimos cinco anos erguera uma muralha de arranha-céus cobrindo qualquer pretensão singela, bucólica e campestre.
Fora, até então, um bairro tranqüilo, classe média. A residência do casal era modesta, dentro de um espaço de 250 metros quadrados, mas confortável e em convivência íntima com a natureza - ar, sol, chuva, frutos, flores, borboletas, formigas, passarinhos...
Quando o bairro foi formado, um artigo na lei garantia que ali só casas, nada de prédios. Mas as leis mudam conforme as conveniências de cada gestão política e começaram primeiro por liberar para prédios de dois andares. Ninguém reclamou e logo a prefeitura liberou para os de quatro andares. Prédios apertados, ocupando cada milímetro de terreno: em vez de jardim na frente, vagas apertadas para carros. Depois, os prédios de doze andares e agora os de vinte e cinco, trinta.
E lá longe, da rodovia, o que se avistava agora era uma muralha cobrindo tudo. Muitas casas foram vendidas e postas abaixo para dar lugar aos edifícios com nomes tipo Plâce des Vosges, Victoria Hill, Baía de Nápoles - e isso tudo, lá dos andares do alto, dando vista para os canaviais que cercavam a cidade fincada numa zona tórrida, tropical, antiga capital do café. Algumas casas, poucas, permaneceram. A do casal, por exemplo. Ele e a esposa, velhos, ele servidor público aposentado, ela doméstica, resolveram continuar ali porque eram realmente felizes naquele canto. Saudável o exercício rotineiro de dar água e comida aos passarinhos, colher as frutas maduras, afofar a terra dos canteiros, estender roupas lavadas no varal. Mesmo agora com as mil janelas e sacadas voltadas para aquele pequeno paraíso onde, e nem fazia tanto tempo, ele, um Adão, um primata aposentado, nos dias de sol costumava, pelado, molhar o jardim. Agora não dava mais. As janelas indiscretas dos novos prédios vizinhos, dos quatro lados, eram olhos intermitentes sobre o quintal. Muita gente grosseira, mal-educada. Umas crianças monstruosas: tomavam meio iogurte e jogavam o copinho de plástico no jardim do casal; comiam meia banana e jogavam o resto, com casca e tudo, fazendo feios os canteiros de flores e a calçada; atiravam pedras quando bem-te-vis, sabiás, beija-flores, rolas e juritis vinham beber água, comer e brincar. Foi duas vezes reclamar com os pais mas as crianças ignoraram a advertência e ele desistiu. Lembrou-se que ele próprio, na infância, a partir de uma certa idade também tivera seu lado monstrinho - sim, pois até os cinco, antes de ser pervertido por espertalhões, não fora uma criança de índole perfeita? As decepções foram começando quando um coleguinha o chamara de bobo por acreditar em Papai Noel. E depois isso e mais aquilo. Perdera a inocência e descobrira a ironia. O mundo não era feito só de gente boa. Mas tudo fazia parte dessa coisa, no fundo realmente fabulosa, chamada VIDA. Vida. As lembranças. Coisas de que não se esquece. Fazia quase meio século, a tia lhe dera um inesperado e traumatizante bofetão só porque ele, no segundo ano da adolescência, irradiando felicidade, apareceu exibindo a foto do calendário da Marilyn Monroe nua, página que ele arrancara da revista para pregar na parede do quarto. A tia tomara aquilo como deboche, pouca-vergonha. Coitada dela. Ainda bem que há muito não se encontrava entre os vivos. Como reagiria ela às indecências do Milênio? Mudanças, principalmente no que tange à moral, doem muito para os que gostariam que o mundo fosse um eterno Xangri-lá. Mas não é MESMO, Xangri-lá! Fosse o que fosse, em síntese: o mundo não era lá essas coisas mas podia estar bem pior.
A verdade é que agora, velho, tornara-se bom, justo, honesto, as lições aprendidas, os defeitos corrigidos, tão perfeito que Deus o tomaria em suas hostes na tarefa de ajudar a educar e a consertar o mundo. Não jogava na calçada da rua nem um celofane de bala. Se não havia lixeira por perto, guardava o descartável no bolso até encontrar uma. "O inferno são os outros", pensou. E põe "outros" nesse inferno!
Enfim, esforçava-se no exercício de ser compreensivo, tolerante, correto, coerente, complacente e mesmo resignado (embora nunca tivesse gostado do significado entreguista da palavra resignação). Era tanta felicidade, só ele e a esposa vivendo naquela casinha aprazível. Era uma família boa, de filhos e netos que vinham visitá-los, uns mais, outros menos, numa intermitência de convívio ideal. Tirante as esporádicas prevenções quanto à manutenção física (afinal, na terceira idade, planos de saúde existem para quê?) e um e outro reparo na casa, tudo estava realmente bem com o casal. Mas daí, repentinamente, a esposa morreu.
Foi um choque. Velho e viúvo, a vida perdera o sentido. A esposa fora a melhor das mulheres, a melhor das companheiras (a única), a mais perfeita companhia. E desde que se conheceram, ainda adolescentes, fora uma fidelidade recíproca que durara quase meio século. E, de repente, sem mais nem menos, a tragédia. A velha, bonita, ativa, até muito bem-feita de corpo para a idade - 68 anos, dois anos mais velha que ele - ágil e destra, ia de carrinho tomar o caminho da feira quando pisou numa casca de banana atirada por alguma criança das janelas do prédio à esquerda. A velha pisou, escorregou e pimba, fatal. Gritou ao cair. O marido ouviu o grito e correu lá. Tarde demais. A mulher batera com a cabeça na quina de concreto de um canteiro. Uma morte absurda, estúpida, repentina. Mas do jeito que ela queria. De vez em quando dizia: "Quero morrer de repente, sem sofrer, num ataque fulminante". Que ironia. Era uma velha cheia de saúde, trabalhadeira por gosto, em tudo um manancial de bons exemplos para a humanidade.
E que desolação nessa perda irreparável. Agora ele também queria morrer. A vida perdera o sentido. O velório, o enterro, os pêsames, as missas - ela fora uma mãe, uma avó, uma pessoa muitíssimo estimada na comunidade -, nada o consolava. Chorava copiosa e seguidamente. A casa, que antes era só alegria, transformara-se numa tristeza, numa solidão de causar dó. "Velho e chorão", imaginava a esposa, se viva - ou de onde estivesse - provocando-o, naquele jeito afetivo dela que agora tanta falta ele sentia.
A verdade é que não era fácil viver sozinho na casa - principalmente à noite, já que durante o dia os descendentes o visitavam, sempre aparecia ou uma filha ou um neto e mesmo porque ele ia diariamente no seu velho carro pequeno e popular almoçar na casa de um ou de outro. A faxineira continuava indo duas vezes por semana. Nem a televisão quase ligava mais. Ia dormir depois do jornal. O sono vinha cedo.
À noite era deixado em paz, não aparecia ninguém. Mas uma noite foi assustado com a visita inesperada de um dos netos. Todos tinham a chave da casa e agora o neto surgia do nada despertando-o quando ele já sonhava. O neto viera pedir conselho. Precisava ter uma conversa com o avô. Conversa de homem para homem. O avô não era de favoritismos mas a verdade é que aquele era o neto favorito. Na infância levara o menino, um companheiro entusiasmado, para tudo que era lugar que criança gosta ou se surpreende inteligentemente. O menino tinha uma cabeça ótima e conversavam de igual para igual sem conflitos de geração. O neto crescera com uma índole fora de série. Nunca se interessara por drogas e outras ilusões baratas. Começara a trabalhar aos 1onze anos, no escritório onde trabalhava a mãe. Estava com dezoito anos, já tinha carteira de motorista, emprego e salário modestos, estudava à noite e namorava fazia dois anos a mesma garota. Os dois se amavam muito. Sempre com muito respeito, mas havia três meses tiveram a primeira relação. Agora queriam casar, estavam doidos para ter um filho.
"Mas ela é muito nova, tem só dezesseis anos!", disse o avô, repentinamente preocupado. Ele conhecia a moça, uma menina bonita, sarada (o velho estava por dentro das gírias modernas), de família conhecida, mesma classe social, a garota também já tinha seu emprego, era estudiosa, combinava em tudo com o estilo do neto. Eram, física e mentalmente, perfeitos um para o outro.
"Somos novos mas não somos crianças", ia dizendo o neto. E o avô entendia o lado dele. Mas de fato eram muito jovens. Que conselho dar?
"Pensem um pouco, ouçam o coração, sim, mas reflitam com o juízo. No meu tempo era normal se casar na idade de vocês, mas, embora basicamente os instintos continuem iguais, a sobrevivência hoje é difícil e incerta. Ficar, tudo bem, é uma coisa moderna, parece que está se usando, mas daí a pôr filho no mundo assim tão depressa?! Hoje em dia sustentar filho não é brincadeira. Já viu o preço da creche? E depois, o jardim de infância, a escola, o colégio? E roupa, já viu o preço? Nessa coisa de casar, ter filho, claro que sou romântico e totalmente partidário que se siga o que manda o coração, mas não se pode se fazer de surdo e ignorar a voz da razão, o lado prático: tem que pensar também com o bolso! Embora trabalhem muito, vocês ganham muito pouco. Será que não vão ter que fazer hora extra para poder arcar com as fraldas? E principalmente acho que vocês devem refletir muito sobre os cuidados que ter filho exige dos pais, a paciência, vocês vão ter tempo? E por falar nisso, os pais de vocês já estão sabendo?"
Nessa conversa franca de avô e neto nada foi esquecido, tudo considerado. E chegou-se à seguinte conclusão: casamento sim, filhos mais tarde, quando a vida parecesse mais assentada. Sexo só em dias propícios. Em dias arriscados, com preservativo.
O neto, feliz, serviu o avô com um pouco de refrigerante que este gostava (e o neto sabia) e despediram-se, ambos satisfeitos com a conversa.
Noite alta, sozinho, entre lençóis deitado, no escuro o viúvo meditava. E conversava com a falecida, de quem, nessas e em todas as horas, sentia muita, muita falta, também da presença física. Ah, o amor. Agora era o neto que estava amando. Ainda bem que era um amor perfeito. O neto era na mesma medida pela namorada amado. A vida continuava e eternos papéis eram representados por cada geração. O viúvo meditava. E ouviu da falecida o seguinte raciocínio: "Casados, eles vêm morar aqui na nossa casinha, essa casa serve muito bem para um bom começo de vida casada... E você vai para aquele asilo, lembra o asilo? Aqui perto, quatro quarteirões. Lembra, tantas vezes passamos em frente, paramos para conversar com os velhos, entramos, levamos coisas, lembra? E a gente comentava, se um de nós ficasse viúvo, ia para o asilo. Asilo modesto mas digno, como a gente, nenhum chiquê, mas confortável e alegre. E na cozinha, limpa, o cheiro da boa comida preparada pela cozinheira forte! Aqueles velhos, aquelas velhas, a maioria deles nos parecia bem feliz, ali. Tanto que concordamos que eu ou você ali estaríamos bem acomodados. Pense nisso".
"É uma idéia", pensou o viúvo. Idéias, como os frutos do quintal, amadurecem no tempo certo. Se bem que algumas amadureçam da noite para o dia. E dormiu.
António Bivar é escritor e autor dos livros O que é Punk, Verdes Vales do Fim do Mundo, Chicabum e Longe Daqui Aqui Mesmo