Postado em 02/07/2013
No ambiente democrático da internet, o debate sobre a livre circulação de ideias e a necessidade de criar leis para garantir o direito à privacidade na rede ganha fôlego
”Não estou de acordo com o que você diz, mas lutarei até o fim para que você tenha o direito de dizê-lo.” Essa clássica frase de Voltaire ilustra a questão sobre o direito à liberdade de expressão e de pensamento que há muito tempo acompanha a humanidade e perpassa estudos de pensadores de diversas épocas e de doutrinas sociais variadas. Com o ambiente público e democrático instaurado pela internet, o debate ganhou novo fôlego e passou também a fazer parte dos ambientes virtuais.
No Brasil, enquanto alguns especialistas e usuários defendem a rede como espaço de total liberdade para a expressão de ideias e de conteúdos, outros alegam que os crimes digitais crescem vertiginosamente e que muitos se valem dessa “livre expressão” para cometer atos criminosos, como calúnia e difamação. Em contraponto à liberdade absoluta na web, muitos dizem que é preciso criar leis específicas e limites para a internet.
De acordo com o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e representante do Creative Commons no Brasil, Ronaldo Lemos, em nome dessa possível “segurança”, há uma tendência global de criação de infraestruturas técnicas e legais de controle na internet. “O Brasil sofre enorme pressão externa para adotar legislação e práticas que apontam na direção do controle da informação. Muitas decisões legislativas a respeito da propriedade intelectual nos últimos 16 anos foram tomadas com base nessas pressões comerciais externas”, diz Lemos.
Assim, o que antes acontecia somente em regimes autoritários, como é o caso da China, começou a se manifestar em países democráticos ocidentais, como Brasil e Estados Unidos. Um desses mecanismos foi discutido com a polêmica “Lei Azeredo”. Proposta pelo então deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB), em 1999, o texto original previa a punição para crimes digitais e a obrigação dos provedores de fiscalizar e guardar os registros da atividade de usuários. Por poder estabelecer uma possível “censura” na rede, foi chamada de “AI-5 Digital” pelos defensores da internet livre. Depois de passar por uma revisão e excluir os pontos polêmicos, a lei foi aprovada e entrou em vigor em abril de 2013.
Recentemente, outra controvérsia gerou muitas discussões na rede, desta vez envolvendo o procurador da Câmara dos Deputados, o deputado Cláudio Cajado (DEM-BA). Ele defende a exclusão de qualquer tipo de conteúdo publicado na web que, em sua avaliação, possa representar calúnia, injúria ou difamação a congressistas. Para conseguir retirar vídeos e textos do ar com mais facilidade, o parlamentar pretende negociar diretamente com o Google para que não haja a necessidade de notificação judicial. Para isso, ele utiliza o argumento de ser “responsável pela defesa da honra e da imagem da instituição e de seus parlamentares”.
Além das propostas de leis que, se aprovadas, podem tolher o direito de voz na internet, alguns casos de retirada de conteúdo por parte de empresas têm causado discussões em várias esferas da sociedade. Em maio deste ano, por exemplo, uma piada postada no perfil “Dilma Bolada”, que faz uma sátira à presidente Dilma Rousseff no Facebook, foi retirada do ar pela rede social três horas depois de ser publicada. Isso porque a frase fazia uma alusão a um processo contra o senador Aécio Neves (PSDB-MG). “Inventar mentira contra mim é mole, querido”, brincava Jeferson Monteiro, criador do perfil, como se fosse Dilma. Depois de manifestações na internet, o Facebook voltou atrás e reautorizou o conteúdo.
Em dezembro de 2010, outro caso suscitou manifestações dos ativistas digitais dentro e fora da rede. Depois de alegar o “uso indevido da marca”, o jornal Folha de S.Paulo processou e conseguiu tirar o blog “Falha de S.Paulo” do ar por meio de uma liminar. O conteúdo postado fazia uma crítica bem-humorada à postura da Folha na última eleição presidencial. Apoiado no argumento de que um leitor, ao entrar no blog, poderia achar que, na verdade, estava na página oficial da Folha de S.Paulo, o jornal conseguiu a exclusão do domínio e o conteúdo publicado por meio de uma ordem judicial.
Onda de denuncismo
Esses são só alguns exemplos que têm motivado debates sobre a questão da censura e dos limites da internet. Entre janeiro e junho de 2012, segundo relatório do Google, órgãos das diferentes esferas do poder público (federal, estadual e municipal) pediram a retirada de 2.310 conteúdos publicados em suas plataformas — Picasa, YouTube, Orkut e Blogger, além do próprio serviço de buscas. Mais da metade das solicitações alegavam que os conteúdos eram difamatórios. De acordo com o advogado especialista em Direito Digital Márcio Cots, o Brasil já tem mais de 50 mil decisões judiciais relacionadas ao meio virtual.
Segundo Cots, os crimes mais praticados na internet, que são contra honra, calúnia, injúria e difamação, já têm previsão legal no código penal tradicional e não exigem leis específicas para serem julgados. “É equivocada essa ideia de que não existe nenhuma legislação para cuidar dos crimes que são praticados por meio da internet. Cerca de 90% das situações têm previsão legal. Se você pratica um furto na internet, por exemplo, ele é caracterizado como furto assim como no mundo real. Em relação a direitos autorais, tanto no mundo real quanto no virtual, é a mesma legislação”, informa.
Cots explica ainda que existem algumas condutas graves que não têm previsão legal como sendo práticas de crimes, mas que podem se transformar em leis no futuro, como é o caso da venda de mailing e de dados pessoais. Contudo, o advogado lembra que, do ponto de vista técnico-jurídico, não existe nenhum crime que não esteja previsto na legislação, porque só há crime se a lei disser que é crime. “É importante salientar que quando o caso é levado para o juiz, mesmo não havendo uma tipificação específica, ele não pode se abster de julgá-lo”, afirma.
Regulamentação civil
Para estabelecer direitos e deveres na utilização da internet no Brasil, garantir a liberdade de expressão e coibir os mecanismos que tentam cerceá-la, foi criado, com a colaboração de mais de dois mil usuários e da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV), o Marco Civil da Internet, um projeto de lei que pretendecriar uma espécie de Código de Defesa da Internet Brasileira. “O marco civil permitirá que a Constituição brasileira seja concretizada na rede. Ele trata o acesso à internet como um direito importante, que deve ser protegido. Estabelece também os contornos da liberdade de expressão e de proteção à privacidade”, explica Lemos.
De acordo com Lemos, que também foi um dos idealizadores do marco civil, hoje o país enfrenta um grande número de decisões judiciais contraditórias por não existiruma legislação que proteja osusuários da rede.Para ele, essa situação chegou ao ápice quando oTribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinouque o YouTube deveria ser retirado do ar por causa do vídeo que exibia supostas cenas de sexo da modelo Daniella Cicarelli com seu namorado em uma praia da Espanha. “Esse tipo de decisão é típica apenas em países autoritários, como a China ou países do Oriente Médio. Não se retira sites inteiros do ar por conta de um conteúdo”, defende Lemos.
O marco civil foi criado para garantir os direitos digitais, em contraposição a algumas leis de crimes virtuais que restringiam a liberdade na web. O projeto faz uma regulamentação civil e não prevê condutas criminosas ou regras penais. A proposta aponta para os princípios básicos do tipo de internet que pode ser favorável para os cidadãos. “O intuito é garantir liberdade, privacidade e segurança no uso da internet. E o que está acontecendo em vários lugares no mundo é subordinar a liberdade e a própria interatividade à ideia de uma segurança exagerada. O que nós queremos com o marco civil é o equilíbrio”, defende o sociólogo e membro do Comitê Gestor da Internet (CGI) Sérgio Amadeu.
Aspectos polêmicos
O marco civil está para ser votado no Congresso Nacional desde 2012 e atualmente ainda tramita na Câmara dos Deputados. Já foram seis tentativas fracassadas de aprovação. Isso porque o conjunto de normas e condutas envolve alguns aspectos de difícil consenso, como a retirada de conteúdos. Com a aprovação, um conteúdo só poderá ser retirado do ar mediante decisão judicial. Hoje, a jurisprudência entende que, se um conteúdo for notificado como ilegal, o site que o publicou tem 48 horas para retirá-lo do ar sob pena de responder de forma subsidiária.
Para Cots, esse aspecto do marco civil pode representar um retrocesso. “Se a pessoa for depender de uma ação judicial para retirar algum conteúdo da internet, o Judiciário vai ficar mais sobrecarregado. Além disso, vai demorar muito mais. E, quando se trata de internet, pouco tempo representa um estrago muito grande”, alega o advogado. Já para Sérgio Amadeu, essa medida é razoável e correta. “Só podemos permitir censura e remoção de conteúdos se for necessário para estabelecer um direito”, diz Amadeu.
A neutralidade da rede é outro ponto que dificulta a aprovação do marco civil e preocupa os provedores de conexão, que temem sofrer prejuízos. O princípio da neutralidade, garante que a infraestrutura por onde passam os fluxos de informação tem que ser neutra em relação às publicações e aos conteúdos da rede, sem nenhum tipo de interferência. O tráfego de dados na internet também não pode receber tratamentos diferenciados. Ou seja, com a neutralidade um provedor não poderá cobrar mais para que um site seja carregado com mais rapidez do que outro. A velocidade em que os dados trafegam será isonômica, igual em todos os sites.
Para Amadeu, as empresas provedoras de internet querem ter o direito de filtrar e de controlar a web e, por isso, são contra a neutralidade. “Até hoje a internet tem sido aberta e desenvolvida colaborativamente. Ela não é uma obra concluída. Se alguém criar uma nova aplicação, todos vão poder usar e não é necessário pedir autorização para ninguém”, argumenta. “É necessário garantir que ninguém possa censurar e instalar a lógica da permissão na rede. Hoje o que impera na web é a lógica da liberdade. Por isso ela é tão fenomenal.”
Essa lógica é defendida pelo sociólogo, jornalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Laurindo Lalo Leal. Segundo ele, nenhuma restrição deve ser feita antes da emissão da mensagem. “Não deve haver uma censura prévia, de maneira alguma. As restrições devem ser feitas posteriormente”, opina. “Os grupos sociais que se sentirem ofendidos por uma mensagem que circula na internet têm todo o direito e o dever de recorrer à Justiça para que, caso seja considerada criminosa ou atentatória ao Código Civil ou Penal, seja retirada, mas nunca antes.”
Outros pontos levantados pelo professor dizem respeito a blogs perseguidos pela Justiça, independentemente da análise de conteúdo, e ao fato de as verbas publicitárias dos governos nos três níveis – municipal, estadual e federal – não serem nem parcialmente canalizadas para sites que se apresentam como canais alternativos de notícias.“As verbas públicas continuam sendo destinadas às grandes empresas de comunicação”, afirma.
Diante desse panorama, a aprovação do marco civil da internet poderá garantir segurança e justiça na rede, assim como estabelecer direitos e responsabilidades dos usuários. Leal também propõe uma mobilização da sociedade, dentro e fora da web, em defesa da internet livre, democrática e de qualidade, já que hoje é possível encontrar na internet o contraditório, ou seja, discussões que apresentam outros aspectos da realidade brasileira e mundial que não são contemplados pela grande mídia. “Não há outra saída senão a mobilização daqueles que veem na internet um canal para democratizar a comunicação”, completa.
Conheça os principais aspectos do Marco Civil da Internet no Brasil
O que é: O marco civil é um projeto de lei que cria um conjunto de normas de conduta para usuários, provedores e poder público no uso da internet. “Esse código protege o usuário contra condutas abusivas, bem como estabelece princípios e direitos fundamentais, tais como a privacidade, a liberdade de expressão, direitos de acesso e assim por diante”, explica o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e representante do Creative Commons no Brasil Ronaldo Lemos.
Fase atual: O marco civil está desde 2012 para ser votado no Congresso Nacional e ainda tramita na Câmara dos Deputados.
O que não foi abordado no projeto: O marco civil não contempla a questão dos direitos autorais nem dos crimes cibernéticos. “No projeto, ficou faltando uma explicitação maior daqueles que querem manipular os rastros digitais da internet, ou seja, faltou definir mais claramente a defesa da privacidade”, ressalta o sociólogo e membro do Comitê Gestor da Internet (CGI) Sérgio Amadeu.
Polêmicas: O marco prevê que só vai ser possível retirar um conteúdo do ar mediante decisão judicial. Outro ponto sensível é a neutralidade da rede, pois interfere nos interesses econômicos de algumas empresas. “Com a neutralidade, os provedores de conexão ficam impossibilitados de mexer na transmissão dos dados. A rede não pode ser manipulada. Isso traz um prejuízo muito grande na parte operacional das empresas de telecomunicação”, explica Márcio Cots, advogado e especialista em Direito Digital.
Iniciativas estimulam o livre acesso a conteúdos, assim como a reflexão e a colaboração na internet
O Sesc conta com diversas atividades e iniciativas que têm como premissa uma ação educativa propositiva e não proibitiva em relação ao acesso de conteúdos e ao usufruto dos recursos disponíveis na internet. “A ideia é sempre estimular a troca de referências e a reflexão sobre conteúdos a partir de processos colaborativos e curadoria coletiva”, explica o assistente da Gerência de Ação Cultural para a Área de Artemídia e Cultura Digital e coordenador do Programa de Internet Livre do Sesc Cássio Quitério.
Na unidade Consolação, o público pode participar das vivências do programa Navegar é (IM)preciso. Todas terças e quintas, algumas temáticas contemporâneas são debatidas como propostas de navegação em curadoria colaborativa, por meio das trocas de saberes e de pesquisas realizadas na rede pelos participantes da atividade.
Em agosto, no Belenzinho, a atividade Dicionário P2P – 40 verbetes sobre mídias digitais vai propor a discussão sobre alguns dos principais fenômenos, teorias, tendências e expressões que envolvem o universo das mídias digitais. Durante quatro encontros, serão enfocados significados e definições, com a apresentação de projetos e ferramentas on-line, vídeos e bibliografia especializada.
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