Postado em 01/04/2013
O jornalista e crítico musical João Marcos Coelho, há quatro anos à frente do programa O Que Há de Novo, na Rádio Cultura FM de São Paulo, é também articulista do Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo, e colaborador do suplemento Eu & Fim de Semana, do jornal Valor Econômico e das revistas Concerto e Bravo!. Em sua trajetória profissional passou ainda por outros grandes veículos de comunicação, como Folha de S.Paulo, Veja, IstoÉ e foi editor da revista francesa de música erudita Diapason. Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o autor do livro No Calor da Hora – Música e Cultura nos Anos de Chumbo (Editora Algol, 2008) falou sobre o ciclo virtuoso em que se encontra a música clássica nacional, ressaltou os benefícios do avanço tecnológico para o aumento do acesso a esse tipo de música e comentou o atual cenário da música instrumental brasileira. “A abertura da informática fez com que todo mundo ficasse mais antenado e a música clássica deixou e estar muito isolada do dia a dia das pessoas”, afirma. “O ouvinte de música clássica, hoje, quer fazer a sua trilha. Ir ao concerto significa obedecer ao conceito de quem o organizou e de quem está tocando.” A seguir, trechos.
Bom momento
Eu queria falar sobre o ciclo virtuoso da música clássica. O Brasil vive um momento econômico que começa a se deteriorar, mas ainda está muito bom. Em relação aos Estados Unidos e à Europa, a situação é bastante favorável, a cotação do dólar é favorável
também. É por isso que de repente em alguns anos a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) alcançou um orçamento de 42 milhões de reais anuais, e este é um valor parecido ou maior do que o da Filarmônica de Nova York, de Viena ou de Berlim. Nós recebemos muito dinheiro. Hoje é possível ver a Osesp fazendo temporadas nas quais ela “extravasa” de tantos grandes músicos no auge da carreira.
O Brasil só recebia a visita de grandes artistas quando já tinham passado os seus momentos de auge. Algo parecido só aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando muita gente ficou sem mercado e acabou vindo para cá, caso do pai do Carlos Kleiber, o Erich Kleiber, que regeu no Uruguai, na Argentina, e até andou por aqui. Enfim, grandes músicos passaram pela América Latina porque não havia um mercado europeu naquele momento de tensão.
Hoje temos, por exemplo, o [pianista húngaro] András Schiff, com o recital que foi considerado o melhor do ano pela revista Concerto. Também achei que foi o melhor do ano. O recital [realizado com a Osesp em 2012] foi o exemplo de um grande artista no auge da sua competência, do seu talento, fazendo um trabalho muito bem engendrado. Ele fez as últimas sonatas de Haydn, Schubert e Beethoven. Ou seja, tinha um fio condutor e foi uma coisa extraordinária, assim como a Concertgebouw de Amsterdã (que teremos este ano).
Essa orquestra foi considerada a melhor do mundo por um painel de cem especialistas. Vamos vê-la no momento em que ela é escolhida a melhor do mundo e com o maestro Mariss Jansons, que está com ela há muito tempo e que tem ganhado todos os prêmios também. Agora teremos os dois, juntos. Uma turnê dessas deve custar coisa de um milhão de dólares. Por que se paga esse valor? Há os mecanismos de incentivo, mas ao mesmo tempo há mais público. É possível fazer até quatro noites, e a Sala São Paulo ou o Teatro Municipal ficam lotados.
Qual a razão disso? Acho que, além desse aspecto econômico, a abertura da informática fez com que todo mundo ficasse mais
antenado e a música clássica deixou de estar muito isolada do dia a dia das pessoas.
Evolução
O concerto público nasceu em meados do século 18, coincidindo com o começo da Revolução Industrial, com a ascensão da burguesia que queria também ver coisas bacanas, de prestígio. Georg Philipp Telemann [músico e compositor alemão do século 18], que era um contemporâneo do Bach [compositor alemão Johann Sebastian Bach], percebeu isso, abriu a igreja para concertos e começou a cobrar pelas apresentações.
Naquele momento Londres era a grande capital econômica e cultural da Europa, e foi onde o concerto público mais se desenvolveu com Georg Friedrich Händel [compositor de origem alemã e naturalizado cidadão britânico], por exemplo, que fez fama e fortuna com óperas e terminou com Oratório e Messias [duas de suas obras] na maturidade. Essa fórmula do concerto privado serviu para o século 18 e no século 19 era a forma dominante. Mas será que hoje ela tem a mesma força? Eu tenho sérias dúvidas.
Em que medida eu preciso estar em uma sala de concerto para poder ouvir música de qualidade? Temos DVDs de maior qualidade, com grandes músicos, que podemos ouvir em casa, com extremo conforto, com um equipamento de alta qualidade. E, se você gostar, pode abrir o iTunes e comprar só o trecho de que gostou, não a obra inteira. O conceito de obra também cai por terra. O ouvinte de música clássica, hoje, quer fazer a sua trilha. Ir ao concerto significa obedecer ao conceito de quem o organizou e de quem está tocando. Hoje, claramente, o concerto não é mais a forma dominante.
Cenário nacional
O público da música instrumental brasileira aumentou muito e mudou a sua natureza. Quando eu comecei no jornalismo na Folha de S.Paulo, tinha, por exemplo, o Victor Assis Brasil, maravilhoso saxofonista, mas um cara que se encaixa muito bem na tradição do jazz, não na música brasileira. Hoje a música instrumental tem cacoetes brasileiros, fraseados, mas não é claramente
nacionalista.
O Nelson Ayres estudou na Berkeley (Califórnia, Estados Unidos) e voltou o protótipo da faculdade. Com o passar do tempo, ele foi se sofisticando e se refinando de tal maneira que esse último disco que ele lançou [Villa-Lobos Super Star, de 2012, realizado com o grupo Pau Brasil, com a presença do cantor Renato Braz e o conjunto de cordas Ensemble SP] junto com o quarteto de cordas da
cidade de São Paulo é uma obra-prima. É extraordinário esse disco. A música instrumental conseguiu se distanciar da matriz antiga do jazz, instituindo novas fórmulas, e é por isso que tem tido muito mais resposta por parte do público – e é uma turma jovem. Sou meio suspeito para falar, mas a “molecada” está gostando mais de música sofisticada que antigamente. Hoje os caras que estudam
música têm um ouvido mais receptivo a coisas mais elaboradas, respondem melhor. A efervescência da música instrumental hoje se deve a isso.
Hoje também tem muito músico erudito que tinha vergonha de fazer música instrumental, mas acabou aderindo
e faz música instrumental popular. O Dimos Goudaroulis [violoncelista solista e pesquisador de música do século 18] nunca teve esse tipo de vergonha. Paulo Porto Alegre [violonista vencedor do V Concurso Internacional de Violão Palestrina e III Concurso Internacional de Violão do Festival Villa-Lobos] toca música popular, faz música improvisada e se apresenta toda semana num “botequinho” na Vila Madalena. O Núcleo Contemporâneo [gravadora e produtora de música dentro do universo da cultura
popular, tradicional e erudita], entre outros, também tem um trabalho muito legal com música erudita.