Postado em 01/02/2011
CARLA ESMERALDA
Quando chegamos à bilheteria de um cinema e compramos um ingresso para um filme que foi escolhido quer pelo título ou tema, quer pela sinopse, quer por referência ao trabalho do roteirista ou do diretor, estamos depositando muitas expectativas no contrato de compra que assinamos com esse filme, que irá entreter-nos por duas ou três horas. Estamos entregando a reações imprevisíveis nossas sensibilidades e, por que não dizer, o nosso inconsciente. Saímos do cinema “leves” ou “pesados”, “mudos” ou “falando pelos cotovelos”. Um filme sempre provoca, além das reações imprevisíveis, uma boa conversa – e dizem que bons filmes são aqueles que “não saem da cabeça por alguns dias”. Eu diria ainda: por algumas semanas, meses ou anos. São tais sensações que, quando descritas para alguém, fazem com que o conhecido “boca a boca” leve mais e mais pessoas aos cinemas. O sucesso de um filme depende de vários fatores, entre os quais o gosto do espectador pelo filme e o tempo que o mercado comercial lhe oferece para que possa ser visto por um público expressivo. Acredito que um filme imperdível é aquele que, a partir da extraordinária comunhão de todos os seus elementos, tem o poder de conduzir nossos sentimentos. Steven Spilberg é um desses regentes de inconscientes: vendo a cena clássica da bicicleta que voa com as crianças e E.T., em que elas se abstraem de um perigo eminente, os espectadores, numa sensação de alívio, aplaudiam coletivamente. Pedro Almodóvar, um dos grandes mestres do cinema contemporâneo, é um autor absolutamente inovador e com grande comunicabilidade com o público. Assisti ao filme Tudo Sobre Minha Mãe, ao som de evidentes “fungares de narizes” e, já nos créditos finais, os olhos avermelhados de espectadores se entreolhavam, como se um espectador pudesse ler o que o outro sentia. Mas afinal, E.T. e Tudo Sobre Minha Mãe são filmes autorais ou comerciais?
Algumas listas de especialistas destacam Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman, como um dos dez melhores filmes do mundo. Em outra lista, do American Film Institute, que seleciona os cem melhores em cem anos, o primeiro lugar é ocupado por Cidadão Kane, de Orson Welles. Ambos os filmes propuseram inovações na narrativa cinematográfica e foram impactantes no ano em que foram produzidos e exibidos. E, por terem sido criados e produzidos de forma inovadora, permanecem na memória de muitos como filmes referenciais. Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman, conduziu minha geração rumo a uma compreensão irreversível sobre nossos conflitos familiares.
Recentemente, o mercado brasileiro vem imprimindo duas diferentes chancelas aos nossos filmes: “comercial” ou “autoral”. O conceito de filme “de autor” foi criado entre as décadas de 60 e 70, quando jovens diretores que emergiam naquele momento queriam imprimir uma marca autoral em suas obras, enfrentando os grandes estúdios americanos que realizavam os filmes a partir de técnicas industriais. O cinema industrial impunha-se fortemente e os artesãos do cinema agrupavam-se em movimentos para defender a liberdade de fazer um cinema que expressasse uma visão do diretor (do autor da obra). Desta aglutinação de talentos, grandes filmes autorais foram produzidos com a assinatura de François Truffaut, Jean Luc Godard, Fellini e Ingmar Bergman, entre outros grandes mestres do cinema. Não só filmes, mas um novo pensamento intelectual oxigenava o mercado de produção, transformando-o de forma definitiva.
A partir do movimento de independência em relação aos conceitos e fórmulas de sucesso do cinema industrial, teve início esta divisão de conceitos. Entretanto, o cinema nunca deixou de ser arte, indústria e comércio. Os ingressos eram vendidos em bilheterias de pequenos cinemas e, num curtíssimo período de tempo, aqueles filmes cruzavam fronteiras e conquistavam públicos em todo o mundo. Ou seja, tais filmes eram comercializados no mercado, e ainda o são: basta procurar uma requintada caixa de DVD dos mestres do cinema nas melhores lojas da cidade.
Filmes são produtos autorais comercializados em pequenas boutiques ou em grandes redes de shoppings espalhadas por territórios nacionais e internacionais. Alguns conseguem atingir um grande público e outros têm potencial de comunicação com públicos mais restritos. Outros ainda não conseguem sequer testar seu potencial de comercialização, pois têm os canais de distribuição obstruídos. O que não quer dizer que devam ser chancelados como “filmes autorais”.
Os “melhores filmes” constroem uma narrativa capaz de interagir com os mais profundos sentimentos do espectador e permanecer no tempo. Outros não conseguem tal “feito”, mas servem como um maravilhoso entretenimento por duas horas de exibição. Por isso, estes conceitos não servem ao espectador que compra na bilheteria do cinema o seu ingresso para o inconsciente.
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Carla Esmeralda é produtora, consultora de programas e projetos audiovisuais e idealizadora de projetos de desenvolvimento de roteiros para cinema.
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