Postado em 01/07/2000
JACOB KLINTOWITZ
Aparentemente estamos diante de um cardápio mítico criado por Eloins com o candente tema "Deus e sua época". A Mostra do Redescobrimento – Brasil+500 é a maior exposição de arte já feita no Brasil desde a pré-história e, é quase certo, completaremos o terceiro milênio sem que nenhuma outra possa fazer-lhe frente. O número de obras, cerca de 15 mil, é absolutamente incrível.
A extensão de temas, subtemas e assuntos variados é delirantemente exemplar – país-continente, Maracanã, maior estádio do mundo, Campina Grande, maior festa de são João do mundo –, pois tudo está representado nessa mostra: as "Artes indígenas" de várias épocas, regiões e tribos; a "Arqueologia" paleolítica, com inscrições rupestres e a breve história da evolução dos primatas até o Homo sapiens (nós!); a invenção da arte: "Arte: evolução ou revolução?"; um "Cine-caverna", com projeção em "imensa tela" de sítios arqueológicos; a "Arte popular", incluindo aí o folclore, a arte ingênua e até elementos históricos, como o cangaço, Lampião e Maria Bonita; manifestações culturais de e sobre os negros: "Negro de corpo e alma"; a arte de alienados mentais, "Imagens do inconsciente", representada pelo Museu do Inconsciente, criado pela psicóloga junguiana Nise da Silveira; a arte européia em visões sobre o Brasil: "O olhar distante"; a "Carta de Pero Vaz de Caminha"; "A primeira descoberta da América", há 12 mil anos a passagem pelo estreito de Bering; a arte africana, em conjunto museológico, e a arte brasileira aparentemente inspirada ou com resquícios africanos: "Arte afro-brasileira"; "Imagens do barroco", dos séculos 16 e 17; a "Arte do século 19" e, finalmente, a do século 20, "Arte moderna" e "Arte contemporânea" brasileiras. Terei esquecido alguma coisa?
São dezenas de mostras, acopladas, umas dentro de outras, que oferecem algumas raras preciosidades estéticas e culturais e uma visão grandiosa da história visual do país. O conceito sinfônico do curador Nelson Aguilar, o desdobramento da história de um país através de vários pontos de vista, é seminal. E acrescentem-se a essa multiplicidade de pontos de vista os registros expressivos, a sinalização dos sentimentos por meio de obras de arte. Dessa maneira, unem-se as questões históricas da ideologia e as manifestações sensíveis. Na verdade, esse é o aprendizado de nosso século, nada no ser humano e na história é estanque ou separado. Mas, acentue-se, nessa mostra é extraordinário observar os mirantes dos quais nascem as imagens: europeu, senhor, escravo, religioso, índio, africano, popular. Esse conceito é a grande vitória da Mostra do Redescobrimento – Brasil+500.
E é justamente nesse fulcro que se situa uma imensa massa de problemas. Tornar concreto esse sonho curatorial é tarefa ciclópica, e esse esforço revela equívocos e acertos, de tamanho proporcional à pretensão da exposição. O primeiro e maior desses equívocos é imaginar que existe conflito entre qualidade e público e que a comunicação da arte deve ser obrigatoriamente circense. Confunde-se criação com sociedade de espetáculo. O presidente da mostra, figura abrangente e centralizadora, Edmar Cid Ferreira, declarou explicitamente aos jornais que essa opção é sua: "Eu quero dizer que a responsabilidade pela cenografia é toda minha. Não divido com curador nenhum. Eu achei e acho que a cenografia é parte integrante de uma exposição de arte... Como seduzir o primeiro olhar..." E, também, esta pérola: "Trabalho para o público, não para os intelectuais, aqueles que são puristas. Trabalho para o povo, para a comunidade" ("Folha de S. Paulo", 20 de maio).
Os equívocos são tão espontâneos que percebemos bem que esse senhor não tem a mínima idéia do que seja um intelectual ou um artista. Essa invalidação do artista e do intelectual em favor de um fictício povo que ele, Edmar Cid Ferreira, pensa representar e para quem se autonomeou instrutor é bastante típica. Creio que não é necessário lembrar os que já defenderam essa tese e falaram esse tipo de coisa na história trágica do século 20. E, convenhamos, tecnicamente, a organização de uma exposição, desde o conceito, a escolha das obras e sua estrutura visual, é tarefa do curador. Ao menos, o mundo inteiro entendia dessa maneira, até o dia 23 de abril de 2000, data em que em São Paulo foram inauguradas a Mostra do Redescobrimento e essa renovadora teoria edmariana amparada numa velha retórica anticultural.
O segundo problema é a quantidade de objetos e obras de baixa qualidade e subtemas insignificantes, o acúmulo de quinquilharias e situações menores. Assuntos e temas deslocados, fora do lugar, mais apropriados para escolas de primeiro ciclo, para revistas destinadas a público adolescente, para museus de história natural ou feiras de artesanato. Aqui não se trata de bater recordes, entrar para o Guinness Book, mas de manter o nível qualitativo da exposição. É claro que uma mostra desse tamanho é exaustiva para os organizadores, é quase desumana, dadas as óbvias dificuldades brasileiras de tecnologia, organização e despreparo democrático das gestões administrativas. E a própria confusão dos papéis-funções deve criar um permanente sobressalto. Mas, em alguns casos, é evidente que uma orientação mais rígida da curadoria-geral teria elevado o padrão médio.
Objetos indígenas
O que é notável nessa exposição? O que não podemos deixar de ver? A mostra de artes indígenas é de alta qualidade e é uma rara oportunidade. Há um conjunto expressivo, várias tribos representadas, épocas diversas e, de maneira implícita, por meio da coleta dos objetos, descreve-se a história dos contatos europeus com as civilizações pré-cabralinas. E é possível perceber que estamos diante de um tipo de arte mítica, diferente da que se realiza na nossa sociedade histórica. Aqui a arte proporciona a ligação do homem com a natureza e as divindades, faz parte dos rituais e das celebrações, e de tal maneira é protagonista do ato de viver que não se pode imaginar a existência dessas civilizações sem sua arte.
Os que acompanham a história brasileira terão lembrança da exposição de arte plumária feita pelo artista Norberto Nicola, em 1980, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Nessa mostra de extrema qualidade o olho acurado de Nicola soube encontrar o ponto estético certo e os cuidados necessários para apresentar as peças. Norberto Nicola, um dos principais artistas brasileiros da segunda metade do século, destacou-se pela invenção das formas tecidas e ocupou um lugar único na tapeçaria mundial. E seu trabalho sempre expressou e recriou a visualidade brasileira, inclusive a tradição da arte plumária. Dessa maneira, a exposição que ele organizou e o livro publicado, Aroméri, 1986, resgatam essa tradição e revelam esse subterrâneo intercurso de energia criativa entre ele, artista contemporâneo de alta linhagem, e a grandeza da plumária indígena.
Certamente essa mostra de artes indígenas não tem essa sutileza. É evidente o acento na ciência, e esperávamos um pouco mais de arte. As legendas são mínimas e explicam pouco, num caso em que caberia a didática. A seleção de obras é extraordinária mas incompleta. Talvez esse paradoxo surpreenda, mas aqui estamos tratando de dois assuntos diferentes e, eventualmente, complementares. O primeiro é de caráter histórico. Sabemos, segundo nossos critérios culturais – e somos nós que estamos organizando a exposição, e não o cacique Juruna! –, que há produções de alta qualidade. Algumas pelo uso de escala cromática, outras pela utilização de penas raras de certos pássaros, outras pela expressividade do desenho. Isso não foi levado em conta com o rigor necessário.
O segundo assunto é da própria lógica de produção desses objetos indígenas, à ótica de sua civilização. Não há objetos "feios". Eles têm uma função específica, e sua eficiência engloba todos os aspectos possíveis, tais como autenticidade e qualidade. Eles são únicos, existem num certo lugar e numa estrutura de tempo. Sua autenticidade é determinada pela autorização dos ancestrais e espíritos, e o autor e seus instrumentos de trabalho são sagrados. É essa autenticidade e o caráter sagrado da ação do artista-xamã que tanto influenciaram a arte ocidental nos últimos 160 anos. Para as sociedades míticas, o ato da produção está diretamente relacionado ao ato de existir. Todos os objetos, sempre, portanto, são belos.
Essa mostra é de alto nível, mas carece de algumas sutilezas. E penso que ela poderia ser superior se fosse evidenciado um dos dois pontos de vista, o da sociedade histórica ou o da mítica. Ou os dois.
Cabe atenção, igualmente, à forma expositiva, de Naum Alves de Souza e Paulo Pederneiras. As peças estão enclausuradas em acrílico e alumínio, de maneira delicada, mas é o contrário de sua natureza. Nesse caso, a simplicidade permitiria o contato visual mais íntimo. E os tapetes de penas brancas nos espaços vazios oferecem um visual instigante, pois apresentam um contraste entre a atitude sacra indígena e a profana contemporânea, duas maneiras de utilizar a plumária. É um comentário. Resta pensar na possível sutileza dos espaços vazios ocupados pelas sombras.
Um estado de espírito
A principal polêmica da Mostra do Redescobrimento é a decoração do local onde foram colocadas as imagens do barroco. As imagens sacras foram separadas, isoladas, como se estivéssemos tratando de esculturas contemporâneas. E sozinhas, despidas de seu caráter sensorial e de grupo. Aleijadinho igual a Victor Brecheret. A cenógrafa Bia Lessa criou grandes massas amarelas e roxas, feitas de flores de papel penduradas em hastes de ferro, em vários planos e dispostas em labirintos, como certos jardins ingleses. Uma vez lá dentro é bem possível que tenhamos sérias dificuldades de encontrar a saída...
O barroco tem um caráter anticlássico, é uma oposição à renascença, é freqüentemente associado à Reforma e suas versões são tantas que chegou-se a pensar ser ele um estado de espírito, antes que um estilo determinado. Ele é emocional, exagerado, sensual, afastado da regra. Cada país tem seu tipo de barroco, e o nosso surge principalmente a partir do português, ainda que possa ter influência flamenga. De qualquer maneira, nossa arte tem origem nele.
No barroco as imagens não estão isoladas, mas relacionam-se entre si. As ligações são sutis: às vezes, pela direção do olhar, por um gesto, um certo movimento. Essas imagens costumam estar em grupo justamente por isso. E o clima sensorial, o transbordamento dos sentimentos, a exasperação da fé, dos pedidos, expressa-se no grupo de imagens. É essa sutileza da essência do barroco que se perde inteiramente no tratamento dado pela cenografia (horrível palavra, quando se fala de artes plásticas) ao isolar as imagens. Perdemos o olhar entre os santos.
A verificação da cenógrafa sobre a eclosão de emoções no barroco é correta. E sua tentativa de criar emoções através de imitação do artesanato popular, com as flores de papel, não é má idéia. Mas é pobre e inadequada. E ela substituiu o barroco por ela mesma, e isso é uma imodéstia inaceitável: numa exposição de arte, nós preferimos o barroco a Bia Lessa.
Em certos momentos, fica a clara impressão de que estamos num desses cemitérios modernos, incluindo aí os maquiadores dos defuntos, nos quais se procura afastar a confrontação com a morte. Aliás, assunto de inúmeras paródias. Certamente essa senhora atualizou o barroco brasileiro e seu contato com o público...
Esse tipo de manifestação narcisista é altamente eficiente, enquanto mídia, e conseguiu ser o grande assunto dessa mostra. Bia Lessa (a mesma do estande milionário brasileiro da Feira de Hannover) vale mais que o Aleijadinho... Penso que essa situação bizarra, tristemente, tornou-se o emblema da grande exposição. É triste porque esse narcisismo, voltado para si mesmo e não para o outro, não é criativo. Mas esse gigantesco ego travestido de amarelo e roxo não pode servir de bode expiatório, já que é efeito e não causa.
A curadora da mostra, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, tem boa reputação e, portanto, façamos um esforço para ver a arte brasileira dos séculos 17 e 18 entre as melhores coisas produzidas na nossa história. A opção foi apresentar um recorte desse período, com as imagens de santos. E a estatuária portuguesa seiscentista trazida ao Brasil apresenta um rico diálogo com a brasileira.
Ausências
A arte moderna e contemporânea brasileira é assunto polêmico, pois envolve o nosso presente. Há alguns artistas com conjunto de obras significativo, capaz de demonstrar seu percurso. Esse é o caso de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Mira Schendel, Antônio Dias, Sérgio Camargo, na área dos contemporâneos. E Henrique Alvim Correia, Oswaldo Goeldi, Lívio Abramo, Alfredo Volpi. E alguns movimentos, como o modernismo e o concretismo.
No seu conjunto, há obras e artistas importantes e é visita obrigatória. Ainda que causem espanto ausências como as de Bruno Giorgi, Arcângelo Ianelli, Thomaz Ianelli, Aldemir Martins, Gilberto Salvador, Poty, entre tantos outros artistas. E a fraca representação de outros artistas, com uma só obra nessa mostra. Mas louvo a radicalidade da curadoria, mesmo não concordando com algumas de suas opções.
O que é incompreensível é a presença de artistas gravadores com uma só obra, como é o caso de Maria Bonomi e Anna Letycia. A gravura é uma técnica na qual os artistas brasileiros atingiram melhor nível e foram premiados no mundo inteiro. E é na gravura que se expressaram alguns dos melhores artistas brasileiros dos últimos 50 anos. Nesse caso, a curadoria deveria decidir-se sobre a importância ou não dessa produção e ser coerente com sua opção.
Imagino qual deva ser a estafa do curador dessa área, Nelson Aguilar, também curador-geral do megaevento. Contudo tenho de assinalar que o resultado poderia ser melhor se a opção fosse por alguns movimentos culturais – uma hipótese, e poderia ser outra: concretismo, pop art, expressionismo – e alguns artistas-chaves que, numa outra hipótese, poderiam ser Waldemar Cordeiro, Oiticica, Portinari, Guignard, Tarsila, Brecheret. É superior à presença de artistas com uma só obra ou à quantidade de artistas malrepresentados. Trata-se do fundamental: decidir quem vale ou não.
Enfim, não é possível comentar num só artigo coisas tão diversas quanto vestimentas de bumba-meu-boi, arte plumária, faca de cangaceiro, trepantes de Lygia Clark, escultura de Sérgio Camargo, o nascimento da arte e a possível chegada de escandinavos ou japoneses pelo estreito de Bering há 12 mil anos. Preferimos escolher alguns temas porque podiam ser tomados como símbolos do evento. Ou, simplesmente, porque o assunto nos agradava mais.
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