Postado em 01/02/2013
Permitam-me falar na primeira pessoa. Estou escrevendo este texto de Tiradentes, que abriga sua 16.ª Mostra, e dentro dela a Mostra Aurora, que virou, nos quatro ou cinco últimos anos, a grande vitrine do cinema independente brasileiro.
Dão-se muitos nomes a esse cinema – autoral, de invenção. Tem tudo a ver com nosso tema – outras possibilidades estéticas e narrativas. Agora mesmo, uma comédia arrebenta nas bilheterias de todo o País. É De Pernas pro Ar 2, de Roberto Santucci, com
a impagável Ingrid Guimarães. Os críticos reclamam que o que faz o sucesso do filme é a marca da Globo e a mídia que a emissora líder veicula em sua programação, chamando o público para assistir a De Pernas pro Ar 2. A Globo até reprisou De Pernas pro
Ar, reforçando o elo entre os dois filmes e chamando os telespectadores para a sequência (nos cinemas).
Simultaneamente, os cinemas também apresentam O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, que pode ser considerado o emblema do cinema autoral, somando observação social e política a ousadias estéticas que transcendem a imagem e atingem a trilha. Um filme que tem “som” no título não poderia deixar de ter uma trilha elaborada. Ela não é feita só de música, mas de ruídos – e silêncios. É assim que trabalham os autores, estimulando o espectador a reformular no inconsciente o que viu – e a fazer o próprio filme a partir daquele proposto pelo diretor. Tiradentes e a Mostra Aurora se converteram em referências nacionais e internacionais, criando o paradigma do jovem cinema do Brasil. A mostra contempla novos diretores até o terceiro filme.
Este ano, foram mais documentários (cinco) do que ficções (duas). Independentemente dos gêneros e formatos, nenhum filme exibido em Tiradentes, na Mostra Aurora – em toda a sua história –, foi “linear”. Não é o melhor lugar para quem busca histórias com começo, meio e fim. Não que essa maneira clássica de contar esteja realmente, ou necessariamente, morta. Embora o conceito de revolução seja hoje démodé – nesse mundo globalizado –, Jean Luc Godard, nos anos 1960, fazia cinema revolucionário de forma revolucionária; Joseph Losey fazia cinema clássico de forma revolucionária; e Luchino Visconti invertia a equação, fazendo
cinema revolucionário da forma mais clássica. São conceitos que hoje talvez não possuam o mesmo significado para o espectador jovem, até 25 anos, que se constitui no grande consumidor de cinema nas salas.
Hollywood faz na atualidade uma produção majoritariamente voltada para esse segmento, mas até o cinemão incorporou as
inovações estilísticas aportadas por autores como Godard e Alain Resnais. Em 1961, o segundo fez um filme que em princípio pareceu desconcertante – No ano passado, em Mariebad, com roteiro de Alain Robbe-Grillet, o arauto do nouveau romain.
Que história Marienbad contava? Uma de amor, de um homem que encontra uma mulher num imenso hotel e, usando a persuasão, tenta convencêla de que estiveram juntos no ano passado. Essa história poderia ser contada de forma clássica. Resnais embaralhou tudo – tempo, espaço – e ainda transformou seus atores em representações de tipos humanos. Delphine Seyrig, por exemplo, parece uma escultura naquele vestido com penas que a transformam numa exótica mulher-pássaro.
Pegue agora Michael Haneke, de Amor, que ganhou a Palma de Ouro no ano passado. O filme sobre o casal de velhos numa casa, que vive uma relação terminal, começa pelo fim e o autor cria cenas muito realistas e detalhadas, mas, de repente, ele quebra a linearidade com uma cena de pesadelo – como num filme de terror – e ainda propõe dois ou três finais que tanto podem confundir quanto simplesmente perturbar o público. A questão é que o espectador que vai hoje a cinema tem uma bagagem muito maior do que aquele que ia há 50 anos.
Havia a maneira de Hollywood contar a história, e ela foi subvertida pela nouvelle vague (na França) e pelo Cinema Novo (no Brasil). Glauber Rocha criava estruturas bipolares – Deus e o Diabo, o Dragão da Maldade e o Santo Guerreiro – para mostrar personagens que, como Manuel e Antônio das Mortes, percorriam trajetórias transformadoras, de forma a que o sertão virasse mar ou o tirano de Jardim das Piranhas fosse destruído. Hoje, é muito provável que o espectador perceba a intenção antes mesmo que ela seja esboçada e, se a maioria continua preferindo a linearidade, como zona de conforto, há um segmento que busca outra forma
mais instigante de narrar.
Cortes abruptos, inserções de tempos (e espaços) diversos – não o velho flashback –, diálogos espertos. Quem vê Django Livre, de Quentin Tarantino, absorve, mesmo que inconscientemente, a experiência do spaghetti western. Pode nem ter visto os filmes de Sergio Leone nem do outro Sergio, o Corbucci, mas curte o estilo operístico, diferenciado, diferente mesmo. A cinefilia hoje não
é só do público. Há uma quantidade muito grande de diretores (autores) que filmam para reinventar e subverter códigos tradicionais. O próprio Tarantino não matou Adolf Hitler em Bastardos Inglórios? Fez isso com a liberdade de sonhar que o cinema
dá. Mesmo as sagas clássicas, como O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson, incorporam as rupturas temporais, espaciais e estilísticas.
Sair da zona de conforto envolve certo risco, mas nós, o público, gostamos de corrê-lo. O que ninguém aguenta é o filme desinteressante, mas até isso é relativo. Um conhecido crítico achou que Holy Motors, de Leos Carax, é uma tortura. Na verdade, é um filme interessantíssimo – claro, depende do que cada um quer no cinema e de quão aberto está para compartilhar experiências novas.
Luiz Carlos Merten é jornalista de Cinema.