Postado em 01/10/2012
Numa velha lenda africana um homem sonha um tesouro distante. Movido por fé, viaja até o local sonhado. Lá encontra alguém que ambém teve um sonho curioso. Ao ouvir-lhe o relato, o primeiro sonhador descobre que o ouro estava no seu próprio quintal. Foi a contadora Cristiana Ceschi quem me narrou esse griot, versão de um conto que eu já conhecia com outros personagens, outras paisagens e sob outro nome: a História dos Dois que Sonharam, do Livro das 1001 Noites.
Pois todas as histórias se aparentam. Formam um só e infinito cristal, de cores cambiantes, em eterno movimento. À medida que gira, exibe suas faces e encanta homens e mulheres, crianças e velhos, sábios e tolos. Sou um dos caídos sob o feitiço, desde menino, nas fábulas de 1001 Noites que, claro, nunca li até o fim. Pois não há fim. Um conto segue outro no caleidoscópio incessante de onde, certo dia, veio um presente: a memória de muitos contos breves – e brilhantes! Diminutas jóias da sabedoria – e mágicas!
Foi um presente porque veio quando eu buscava uma nova proposta para o SescTV com a chamada “literatura em formatos breves”. Convidado pelo canal, tinha, em 2009, curado e dirigido o projeto Pílulas Poéticas, série de 360 spots de 30 segundos cada, em que atores e atrizes davam voz e corpo a versos de grandes poetas da nossa língua e às obras de alguns tradutores.
Em 2011, prestes a iniciar as gravações da segunda temporada, queria ir além da repetição do projeto. E, como no conto do sonhador, o tesouro estava no meu quintal – no repertório de histórias, fábulas, mitos, lendas, causos e cirandas que, sem querer,
armazenei por 40 anos.
Fabio Malavoglia é jornalista, locutor, produtor cultural,
storyteller e poeta
Além disso, tinha voltado a frequentar dois amigos de longa data – um exemplar das Histórias do Mulá Nasrudin e outro dos Contos dos Dervixes, de Idries Shah. Nesses mergulhos, intuí sentidos submersos nas palavras. Nas graças de Nasrudin, que procura a chave não onde a perdeu, mas onde há mais luz, ou nas sutilezas do monge que dá sempre a mesma resposta a qualquer pergunta, entrevi bem mais que mera fantasia.
O pintor, poeta e hermeneuta francês Louis Cattiaux escreveu: “a verdade se oculta sob o véu das fábulas e parábolas”. E a lenda da princesa que, por uma antiga maldição, adormece com todo seu reino, pouco tem de “imaginária”. Os que querem acordar do encantamento acreditam no Príncipe Valente.
Despertado pela memória entusiasta dos contos breves – sábias piadas de sufis, certeiros koans orientais, lendas medievais, relatos de rabinos e até gostosos causos caipiras –, propus somar fábulas à receita das Pílulas Poéticas. O SescTV acolheu a ideia. Nascia a série Vide-o-Conto.
Com a programação da emissora, defini locações (ou junto à natureza ou onde a arquitetura fosse arte), duração (de 3 minutos máximos) e padrão de fotografia (full HD). O Sesc me sugeriu o inspirado músico e compositor Cid Campos para a trilha sonora.
A par dele, reuni uma equipe afiada.
Credito aqui os méritos das jovens produtoras Fernanda Shidomi e Biancamaria Binazzi, da consultora de moda e jornalista Ivany Turíbio, da maquiadora Adriana Serrano, do diretor de fotografia Eduardo Duwe (que segundo boas línguas engoliu um fotômetro quando criança) e da editora e malabarista de imagens Guta Pacheco: um trabalho desses não se faz sozinho.
Como curador, tratei de ampliar meu repertório, pesquisando contos de todas as épocas e povos do mundo. Burilei os textos, dirigi talentosos contadores. As performances de Isabel Teixeira, Cristiana Ceschi, Julia Grilo, Giba Pedrosa, Regina Machado, Paulo Federal, Simone Grande, Fernanda Viacava e Edi Fonseca foram memoráveis, e suas sugestões, preciosas.
Tivemos resultados felizes. A série ecoa no Brasil a onda mundial de revalorização do story-telling, portador do tesouro da sabedoria ancestral. Também ressignifica o que, no “mercado”, é mero intervalo para infiltração de ordens consumistas na
subconsciência sonada. Preferimos a interferência poética, o desafio à inteligência, a chama, o enigma.
Acima de tudo, a série Vide-o-Conto pôs em circulação a misteriosa palavra das fábulas. É quase inacreditável que tenha ocorrido na televisão, em prol do ouro enterrado no País das Lendas. Pois, como diz um conto, só deixaram a verdade entrar no palácio dos califas vestida de fábula.
Fabio Malavoglia é jornalista, locutor, produtor cultural, storyteller e poeta