Postado em 14/10/2010
Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, era doceira de profissão e só publicou o seu primeiro livro aos 75 anos. Sua produção literária impregnada de elementos do cotidiano e folclóricos abordados com simplicidade comovente alcançou grande repercussão e foi saudada por cânones da poesia brasileira, como Carlos Drummond de Andrade. Neste poema, exercita o olhar voltado a si própria e, em meio à (re)descoberta de seu passado, alma e matéria, relembra sua ligação afetiva com a cozinha.
"Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem recheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras"