Postado em 04/05/2011
CACÁ VICALVI
Nada substitui a experiência do contato direto com a obra de arte. É desse embate que resulta o verdadei ro sentido da obra. Mas o encontro entre o público, mesmo iniciado, e a arte contemporânea tem resultado em muitos desencontros.
Numa exposição de um dos mais significativos artistas brasileiros ouviu-se, sem meias palavras e com assustadora convicção: “O que significa esse barbantinho estendido nessa grande sala branca? Quem cedeu o espaço, pagou o curador, o montador, o arquiteto, o seguro desse barbantinho estendido nessa sala branca?”
De fato, a arte mudou. Houve mesmo uma ruptura. Criar não é mais preencher uma tela, dar forma à argila e ao aço, perseguindo o novo, o original. Mas entrar nesse supermercado de referências que circulam no nosso cotidiano, e de lá tirar significados e pensamentos a partir de formas já construídas.
Assim, o “barbantinho” seja talvez a mais singela das intervenções inscritas atualmente no mundo da arte. Há trabalhos que já ocuparam essa sala branca, realizados com lixo, graxa, cachaça, restos de tudo. Trabalhos pensados a partir da psicologia, filosofia, física quântica, astronomia, geologia, informática. A escolha da matéria-prima só tem uma função: dar conta de uma ideia que quer se realizar. E aqui, não se espante de novo se a pintura, a escultura, o desenho, a gravura estiverem presentes. Não acredite na morte de nenhum desses suportes.
Decifrar esse universo de infinitas possibilidades e procedimentos. Aprender com ele. É a partir desses parâmetros que me posiciono quando realizo uma produção de Artes Visuais para TV. Uma empreitada que tem o vídeo como ferramenta. E o vídeo na televisão tem uma relação cruel com o tempo. A velocidade, o excesso de imagens, que se prestam a tantas outras funções e experiências, reduzem o espaço do pensamento, fragmentam o olhar. É quase um não-ver. E arte, como dizia Leonardo Da Vinci, é coisa mentale – precisa de tempo para ser vista, ser sentida, entendida, mostrada. Um tempo desigual, sem medidas: o tempo do artista, do curador e da própria obra. Como administrar essa equação e ajustar o tempo da TV ao tempo de uma série que não quer ser videoarte, mas discutir a produção de arte?
Procuro, a par das limitações e especificidades da linguagem da TV, respeitar o movimento do pensamento, das reflexões, do fazer artístico, e ir mudando com ele; a cada artista, a cada obra. Tão importante quanto a realização, o processo de construção é parte fundamental para o entendimento da obra. Por isso, é sempre muito rico mostrar como as ideias vão ganhando forma, deformando-se, desenvolvendo-se e estabelecendo conexões com a produção do artista. E essa intimidade do processo criativo deixa transparente, não raras vezes, que atrás de um emaranhado de significados habitam a simplicidade, a clareza. Não menos contundentes e críticas.
A visita aos ateliês subverte a geografia e dessacraliza a obra de arte. Lá, ainda inacabados, muitos trabalhos repousam sob o chão sujo até de tinta. Convivendo com recortes de outras experiências que estão nascendo nesses espaços – antigos galpões industriais, oficinas mecânicas.
Tendo o artista como um guia da própria obra, adoto o documentário como linguagem nessa aventura. O documentário que quer ver e ouvir, mas ir além da passividade do registro puro e simples. Sendo também um meio de expressão a partir dessa experiência pelo universo da cor, do ritmo, do movimento, do vazio, da delicadeza minimalista do barbantinho que recorta triângulos na grande sala branca, num desenho espacial que o expectador pode habitar.
Nada substitui o contato com a Obra, nem a leitura de um texto crítico, nem uma visita à História da Arte. Mas é possível criar, na televisão, ferramentas de conhecimento e de divulgação da arte e do artista brasileiro. E usando o vídeo – esse território feito de tantas linguagens do cinema ao rádio, da literatura à computação gráfica. E onde Arte Contemporânea é apenas mais uma.
O tempo sempre será o espaço a ser administrado. A construção do roteiro e da edição continuam seguindo no rastro da arte contemporânea lidando com o que foi processado e pode virar vídeo. É desse mercado cultural que tiramos a nossa substância; é ele que rege a nossa estética, da trilha sonora às vinhetas. Dessa alquimia que nasce, de forma inacabada, cada programa.
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Cacá Vicalvi é jornalista, documentarista, diretor e roteirista do programa Artes Visuais, exibido pelo SescTV.
Leia a edição 50 na íntegra: