Postado em 04/03/2011
BELISÁRIO FRANCA é documentarista e produtor. Seus trabalhos buscam desvendar particularidades da cultura brasileira, com especial interesse por histórias e personalidades fora do foco das mídias tradicionais. Formado em Comunicação pela PUC do Rio de Janeiro, Belisario Franca acaba de finalizar o documentário Família Diniz, sobre a trajetória de Monarco, compositor da Velha Guarda da Portela, que ele considera um dos últimos mestres do samba de raiz, que influenciou outras gerações de músicos, inclusive seus filhos e neta. O documentário é uma realização do SescTV.
Qual a sua formação e sua trajetória como documentarista?
Sou formado em Comunicação pela PUC do Rio de Janeiro e trabalho há trinta anos nessa área. Iniciei-me profissionalmente com a motivação de usar o vídeo como uma ferramenta de expressão autoral. Sou da geração formada na década de 1980, que queria experimentar. Já nesse início de carreira comecei a achar que a televisão tinha espaço para exercer o olhar autoral e experimental, não só na linguagem como também no conteúdo. A TV, potencialmente, traz isso. Por isso, direcionei meu trabalho para esse mercado e comecei a atuar com projetos em que eu pudesse experimentar conteúdos e linguagens. Quando a gente se debruça sobre um trabalho, envolve-se com pesquisas, com a junção de elementos, com a produção. Mas tem também uma dose de arte, uma pegada, que dá permanência e pertinência para gerar um patrimônio imaterial.
E por que sua predileção pela linguagem do documentário?
O fascinante do documentário é que ele não é um só. O audiovisual tem esta característica: não há uma maneira só de fazer. Em documentário cabe tudo. Pode-se até colocar um pouco de dramaturgia, que ele não perderá a essência de fazer um recorte para retratar um tema. O que gosto mais é que, ao fazer um documentário, entro em universos em que normalmente não entraria. Quando fiz o projeto Além Mar, por exemplo, imergi no mundo da língua portuguesa. É mais do que aprender sobre um tema, é trazer aquilo para sua essência e construir valores. A discussão das identidades está muito presente nos meus trabalhos, porque entendo que cada experiência é singular. É muito bacana isso, porque o senso comum tende a botar uma etiqueta em tudo. E, na verdade, há muitas outras camadas que se desdobram. No mundo do samba se percebe bem isso. Você enxerga certas características, mas quando entra, descobre uma visão de mundo diferenciada. Tem sua complexidade e, ao mesmo tempo, é bem simples. Na prática do documentário, lida-se com seres humanos. Busca-se entender o que está por trás da primeira percepção. Aí entra uma questão de respeito profundo. Uma visão quase amorosa do sujeito retratado. Vou destituído dos meus preconceitos em direção a esse outro. E aí tenho a possibilidade de encontrar o que há de precioso.
Como você avalia o momento atual para o documentário brasileiro?
O documentário brasileiro está muito bem: temos boas experiências. A TV já começa a perceber a possibilidade de formação de público para essa linguagem. É uma abertura para a percepção de determinado assunto além da informação. O espectador é envolvido, é conquistado, é convidado a entrar em outro mundo. O documentarista trabalha com a camada sensorial também, o que não é fácil. É um desafio encontrar a narrativa a usar para obter um equilíbrio. Vejo muita coisa produzida aqui no Brasil e também no exterior, e acho bom conhecer o que está sendo feito.
O SescTV estreia, neste mês, o documentário Família Diniz, de que foi sua a direção geral. Como esse tema chegou até você e como foi realizá-lo?
O tema foi proposto para nossa equipe e adorei o mote. Já conhecia o Monarco de outros trabalhos e achava importante fazer esse registro. A gente sabe que ele vai fazer 80 anos daqui a pouco e precisava ter sua história retratada. Nosso primeiro passo foi iniciar as pesquisas e, em seguida, criar as condições para realizar o projeto. Por fim, pensamos no desafio da linguagem, com uma camada poética, até chegar ao resultado. Queríamos levar o subúrbio para o documentário. Existe uma liga que não se restringe à família do Monarco, são gerações de músicos. Quase como uma casta artística. Trata-se de uma genealogia que começa antes do Monarco e sabe-se lá onde vai parar. Eles conduzem você pela mão e cabe ao documentarista ter a competência artística para fazer isso aparecer no filme.
Qual a importância da figura do Monarco para a cultura brasileira?
O Monarco é um dos mestres do samba. Ele está na transição da primeira para a segunda geração do samba urbano que nós conhecemos hoje, consolidado entre os anos de 1920 e 1930. Ou seja, o Monarco pertence à segunda geração e conviveu com os mestres que fundaram esse samba. Ele foi testemunha ocular das rodas de samba e participou da construção de sambas antológicos. Ele mesmo começou muito novo a compor. Portanto, Monarco é guardião de uma ética daquela geração do samba. Que vai além de chegar e cantar o seu samba, porque existem passos a serem dados, há todo um ritual, um respeito. Ele é um depositário desse patrimônio e trouxe para as gerações seguintes o que aprendeu com aqueles mestres. Monarco talvez seja o último grande mestre vivo dessa passagem e, por isso, influencia muitos músicos.
Para realizar este documentário, você visitou a casa de Monarco e os lugares que o inspiram em seus sambas. O que encontrou por lá?
O subúrbio é, por excelência, o território do samba carioca. A linha do trem, o shortinho, a população se deslocando, o calor humano, o tipo de afetividade, o vizinho, o amigo da barraca da feira... uma ambiência que é própria da Madureira, do Engenho de Dentro. Entrei nas casas dessas pessoas não como um turista. A vida fica mais rica. E aí se entende o universo do Monarco e sua genialidade em conseguir traduzir aquilo em letras e melodias. E, apesar de ser tão próprio daquele mundo, torna-se universal.
Quais foram as maiores dificuldades na realização do documentário?
A grande dificuldade foi conciliar as agendas. Fomos recebidos com muito carinho por todos, mas são profissionais superocupados. O Mauro Diniz, filho do Monarco, é um produtor e um maestro muito requisitado. Por incrível que pareça, o Monarco foi o mais tranquilo. Mas não encontrei incoerências nos depoimentos, ao contrário. Monarco fala com muito orgulho de seus filhos. Procuramos o jornalista Sérgio Cabral para dar depoimentos que construíssem a personalidade que é o Monarco. Zeca Pagodinho, que eu vejo como um herdeiro do samba de Monarco, também ajuda a dar a dimensão da importância dele.
Você acredita que haja outras figuras importantes da nossa cultura, tais como o Monarco, que ainda não ganharam a projeção e o reconhecimento da sociedade brasileira?
Não tenho dúvidas. Há pérolas na sociedade brasileira. Acredito que uma das nossas maiores qualidades seja a grande capacidade de produção cultural. Lembro de uma senhora que conheci em Piracicaba, no interior paulista, cantando em uma roda de tambor; para mim, era uma Clementina de Jesus. Aquela voz, aquele jeito forte de cantar. Então, respondendo, sim, temos muitas figuras como o Monarco. Não só na música, mas na dança, na literatura. E temos chances de encontrá-las em programas e documentários que valorizam essas pessoas e esses talentos. Porque o audiovisual ajuda a compreender esses universos e pode inspirar e mudar outras vidas.
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