Postado em 01/03/1998
Uma radiografia dos presídios brasileiros, em matéria publicada na edição nº 320 de "Problemas Brasileiros", de março/abril de 1997
MARCOS FAERMAN
Promiscuidade, violência, tráfico de drogas, corrupção, doenças e mortes. Se os presídios foram construídos para que os detentos pudessem se arrepender, corrigir-se e voltar ao convívio social, a receita estava errada. O resultado não poderia ser pior. Jogados no caldeirão fervente dos carandirus plantados pelo país afora, detentos às vezes nem tão perigosos assim iniciam um curto e eficiente aprendizado. A universidade do crime, sustentada pelos contribuintes, forma delinqüentes em diversos graus, com aulas práticas diurnas e noturnas. Escravidão sexual, espancamentos, assassinatos na madrugada, Aids, solidão e desespero, eis o que compõe o submundo atrás das grades.
Já que a cadeia não corrige nem recupera, a solução pode estar nas penas alternativas, como os serviços comunitários, que algumas cidades já estão experimentando, com sucesso, no caso de condenados que não oferecem maior perigo. É uma saída, até para aliviar as prisões, já atulhadas em excesso.
Essa realidade está registrada na reportagem a seguir, um retrato do triste universo dos que têm penas a cumprir. Como criminosos, é bom que se diga, não se pode ter pena deles: merecem punição. O problema é que a prisão os deixa mais próximos do crime. E cada vez mais longe da esperança.
Na "Segunda-Feira sem Lei", o Demo está à solta, nos corredores da Casa de Detenção de São Paulo. Portas sempre cerradas se abrem miraculosamente – como por sopro de um Anjo do Mal. Homens silenciosos e armados de facas caminham decididos por entre os portões, e sabem que, nesse dia, a voz da Morte é que vai falar. A expedição de homens determinados e onipotentes está à caça de outros presidiários, que compraram enormes quantidades de cocaína, para cheirar, picar na veia ou – como é moda – encher a boca com a fumaça acre e gosmenta do crack. O pressuposto dos caçadores é que familiares deixaram, no domingo, tradicional dia de visita, algum dinheiro, qualquer coisa, com seus credores. A hora boa de cobrar é a segunda-feira; ou nunca.
"Entre 12 e 14 quilos de cocaína e uns 12 de maconha entram na Detenção toda semana", conta um agente penitenciário – no caso, alguém ligado a um grupo religioso. Na verdade, alguns desses APs – como são conhecidos os agentes penitenciários – facilitam a passagem das drogas. O preço da delirante tarefa de conviver com os presos e rondar pelos corredores da Casa de Detenção – que, junto com a Penitenciária do Estado, forma o complexo do Carandiru – é mal remunerado pelo Estado. Quem paga o pato e cria uma alucinada e raivosa relação com os agentes são os presidiários. Mesmo que se trate de um daqueles tantos presidiários aidéticos – de olhos rasos e úmidos, perdidos em algum nirvana além dos mundos –, ele terá que pagar R$ 10 ou R$ 20 por um telefonema no modernoso celular de um agente.
Homens amaldiçoados pela Aids – em algum de seus estágios – ou pela velha tuberculose são vistos em todos os cantos da casa – seres rotos e amarelados, sem nenhuma espécie de tratamento. E se um doutor Varela vai lá às segundas-feiras, é quase um milagre. Mais fácil será cruzar com a peixeira dos cobradores das gangues de traficantes de pó e fumo do que com o nobre médico. Os facões entram facilmente nos corpos moles dos que não tinham cacife para bancar uns instantes do prazer duvidoso do crack, que é seguido por doses cavalares de paranóia. Terror em estado quimicamente mais puro que a droga, que vem sempre misturada. Droga boa só a dos chefões do tráfico, os bambambãs da cadeia.
Eventos terríveis como os da Segunda-Feira sem Lei podem acontecer todos os dias, todas as noites, porque os 6,5 mil habitantes daquela casa conhecem melhor que qualquer aprendiz de italiano a máxima que Dante inscreveu na porta do Inferno: "Aqui morreu toda a esperança". Boa notícia, de que o velho mundo dos homens comuns ainda existe, pode ser trazida por alguém da família, na visita dominical. Mas quase 100% das famílias são pobres como Jó e podem estar na boca bíblica de algum pastor, que está ali tentando conquistar suas mentes e seus depoimentos para algum programa de rádio ou TV, da seita tal e qual.
Algumas dessas seitas tentam conquistar almas pela matéria, acenando com sacolas de alimentos para seus familiares. Afinal, o corpo dos muito pobres, dos desesperados da falta de calorias, reclama o calor de um tanto de feijão, frango e açúcar. Na cadeia, se trafica de tudo, da cocaína a um bocadinho maior de carne, ou até a formas aparentemente mais atraentes de "carne fresca", algum preso jovem que pode ser assaltado sexualmente. À luz negra de uma dose de crack ou de maria-louca, aguardente feita de qualquer coisa que fermente, e que faz pirar de verdade, o corpo do rapaz magricela pode evocar uma dessas pinup girls que adornam as celas entulhadas de homens transtornados. E um homem-esposa passa a ser mais uma presa a ser caçada nos corredores de cores sujas e com odor de sangue que, alguns dizem, jamais saiu daquelas pedras, desde o massacre dos 111 (ver texto abaixo), que entulhou os carros de polícia com os médicos do Instituto Médico Legal, às voltas com o exame daquela montoeira de corpos e caixões repletos de sangue e balas de metralhadora, disparadas pela Polícia Militar paulista em tudo o que se movia.
Retrato de Auschwitz
A Igreja Católica, por meio da Pastoral Carcerária, quase numa atividade clandestina de maquis, conseguiu que alguns de seus militantes passassem a fazer parte do universo do cárcere, na Casa de Detenção, alguns como guardas penitenciários. Esses homens se aplicam em ver o que puderem ver, escrevem diários terríveis sobre o que acontece nos subterrâneos do cárcere, com minúcias que lembram Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévski, ou certos relatos de Soljenítsin sobre as prisões geladas da antiga União Soviética. Ou os textos de Elie Wiesel e Jorge Semprún sobre os campos de concentração, tão representativos deste infeliz século.
Pois bem, um homem da Igreja, que, há dez anos, entregou sua vida a freqüentar penitenciárias e cadeias, além de reuniões no mundo todo, esse infatigável padre Francisco Reardon – conhecido como padre Chico e nada mais –, depois de uma passagem por Londres foi conhecer o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. O padre Chico diz que teve em Auschwitz uma sensação muito estranha de déjà vu. Era como um sonho ou um delírio, porque o monumento patrimonial da vergonha humana lhe evocava uma coisa já vista e vivida...
"As celas de castigo (do Carandiru) me fazem lembrar o que vi e senti em Auschwitz. Celas úmidas, mal iluminadas, com instalações sanitárias precárias, com ou sem água encanada, com o espaço da grade da janela fechado por uma chapa inteiriça de aço com pequenos furos para ventilação. Não há móvel algum e dorme-se na prata (no chão), muitas vezes sem cobertores." (O padre Chico trouxe de Auschwitz uma pedra – que deu de presente a dom Paulo Evaristo Arns, seu amigo.)
Graças às táticas e estratégia dos maquis da Igreja infiltrados em territórios agrestes como o Carandiru, os escaninhos mais sinistros dos prédios cinzentos que pesam sobre os olhos de quem passa de metrô por aqueles cantos de São Paulo tornaram-se conhecidos. "No passado", vai contando o padre Chico, "era mais difícil chegar até os presos feridos nas celas de castigo. Hoje as dificuldades são menores. Eles sabem que conhecemos todos os caminhos..." E, diz, "não é difícil encontrar presos machucados. Às vezes, os ferimentos são resultado de brigas e agressões entre os próprios presos; às vezes, são provocados por espancamento ou mesmo tortura operada pelos guardas ou carcereiros".
O padre Chico e seus amigos viram muitas vezes presos feridos, com marcas de canos de ferro nas costas e nas nádegas. Braços e pernas quebrados. Cabeças feridas, partidas. Eles viram tudo isso na Detenção de São Paulo, e em outros presídios, por quase todas as cadeias por onde andaram. Por isso, ele pensou no Carandiru quando estava em Auschwitz. Lembrou-se da sangueira toda do massacre dos 111 – muito mais mortos do que na famosa rebelião de Attica, nos Estados Unidos, que gerou tantos filmes nos EUA. "Nós vimos que eles tinham recebido um monte de tiros de metralhadora pelas costas", conta um agente penitenciário amigo do padre Chico, que diz que é ameaçado toda hora por colegas de emprego. E que sua "segurança" é feita pelos encarcerados.
Presos chegam aos montões ao Carandiru – às vezes cem, de uma vez, muitos deles primários; muitos porque roubaram pouco mais do que um farnel de comida; muitos que serão mandados para a "central de distribuição", que é o Pavilhão 2. Ali, muitos passam ou passavam pela experiência do "corredor polonês", mais ou menos como alguns detentos do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no tempo da ditadura. Quem passa por aquele túnel humano leva tapas, bofetões e pontapés inesquecíveis.
O padre Chico conheceu distritos policiais em que presos precisavam ser amarrados pelos colegas nas grades, para tentar dormir. Uma cena digna do martirológio de qualquer religião ou crença. Na verdade, num livro denominado Democracia, violência e direitos humanos, o atual secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, João Benedito de Azevedo Marques, evoca um jurista do século 17, o célebre Beccaria, que fez retratos dos presídios de seu tempo que, segundo o secretário, não ficam a dever, em nada, aos nossos. E assim falou Beccaria, uma espécie de ícone dos juristas – em particular os penalistas: "Os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à ignorância cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas ou por delitos quiméricos; o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes, a incerteza: tantos métodos odiosos espalhados por toda parte deveriam ter despertado a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas".
Um teatro do absurdo
O padre Chico pensou em Auschwitz. Azevedo Marques, ao olhar os prédios cinzentos do conjunto Carandiru, compara esse cárcere paulistano e tantos outros iguais no país ao que se vê em dois filmes americanos, O sistema e O expresso da meia-noite. Como em O sistema, os enormes universos concentracionários, no mundo inteiro, chamados de presídios, são dominados por alguns grandes chefões e quadrilhas que reúnem desde condenados até gente de outros escalões. São eles que controlam o tráfico de drogas e a vida sexual – além de interferirem na distribuição da comida. E como na Detenção quase tudo se compra, uma cama que é pouco mais do que um farrapo custa R$ 300.
Nesse mundo de confinados, o fel não é distribuído eqüitativamente. Os chefões – cercados pelos seus seguranças-bandidos – andam para cima e para baixo, especialmente na Segunda sem Lei. Alguns grupos são os confinados dos confinados – e vivem nos cantos mais obscuros do inferno. Esse é o caso do fechadíssimo grupo dos gays, travestis, baitolas, xibungos – fechados, rabugentos, com pequenas giletes e sempre dispostos a rasgar a cara de alguém. Em princípio, não saem do lugar deles e só falam, quando alguém está por perto, no idioma africano iorubá, misturado com alguma palavra em português. Outros degredados dentro da própria Detenção são os devedores. Ai de quem ficou devendo um tostão para os "trafiquis": será ameaçado, acossado, enlouquecido de terror. E morto.
Também formam guetos à parte, dentro da Detenção, os que lá enlouqueceram e de quem nem a família quer saber; os aidéticos terminais, que só merecem piedade de alguns amigos detentos; e, finalmente, os paraplégicos e tetraplégicos, prisioneiros também de suas doenças, geralmente baleados em tiroteios ou torturados e arrebentados em algum xilindró – quando não por um parceiro de crime, insatisfeito por alguma razão. Nesse rol de degredados, podem entrar os fanáticos de algumas seitas religiosas.
Os super-homens
Azevedo Marques costuma dizer que esses presídios superlotados só servem como universidade do crime. O Estado paga para o sujeito aprender a barbarizar a sociedade. O índice de reabilitação é ínfimo, quando muito de dois presos em dez.
"E, na verdade, nem conseguimos entender como alguém pode se reabilitar numa Casa de Detenção", diz o juiz corregedor da Polícia Judiciária e Distritos Policiais, Francisco José Galvão Bruno. Ele vigia para que os policiais presos estejam presos, de verdade, e não transformando "cadeia em colônia de férias", como sempre aconteceu. Para ele, seria impossível que policiais não se envolvessem, em alguns casos, com bandidos e virassem bandidos, porque o crime cria um ambiente podre, do qual é difícil escapar. Isso não justifica, no entanto, uma Casa de Detenção ou outros presídios enormes, nem os sórdidos cadeiões de distritos.
"Acredito", diz Galvão Bruno, "que a recuperação de um criminoso é opção individual. Na verdade, ele se recupera sozinho, nesses casos, mas precisa de condições mínimas de dignidade. Alguns presos se recuperam, só Deus sabe como!"
Ele aponta, entre os pecados mortais do presídio gigantesco (em alguns nem há superlotação), a falta de assistência médica ("o indivíduo morre até de gripe nas mãos do Estado"), a falta de assistência jurídica e a falta de ensino, educação. Aqui se fala de educação no sentido tradicional, porque existe um tipo de educação especial, que o universo carcerário enfia na cabeça dos 150 mil presos no Brasil: a lei do cão. Ou do demônio. Antes da Aids era mais ou menos assim: mate com muitas facadas, e depois lamba a faca para ser bem machão.
O comportamento do preso é dominado pelas leis não escritas, mas poderosas, da "prisionalização". O sujeito vive anos preso debaixo dessas leis asfixiantes, impostas pelo meio. "Como é que ele vai virar bonzinho, aqui fora?", pergunta Galvão Bruno. "Essa é uma questão intrínseca ao universo carcerário – o conflito entre o cá e o lá... entre o dentro e o fora... Bandido não é santo, mas deve ter seus direitos humanos respeitados. Ou, então, por que não matar, em certos casos? É, eu digo esta coisa brutal: o sujeito que não assimila nada, nem vai assimilar, do certo e do errado, o esquartejador... Uma boa razão para não matar é que você, matando, estaria criando um sistema judiciário poderoso demais... os super-homens..."
Se o presídio existe, tudo é permitido. Até um homem polido e culto como Galvão Bruno pode falar a palavra "matar". Ou Paulo Tonet Carvalho – um dos braços direitos do ministro Nelson Jobim –, apaixonado defensor das "penas alternativas", que substituiriam em muitos casos a prisão do réu, pode indagar "se pena é vingança, por que não adotar a lei de talião e cortar a mão, o braço e a perna do criminoso, do ladrão?" É claro que a gente ouve todo dia pessoas dizendo, no rádio e na TV, coisas parecidas. A mídia, aliás, é acusada pela Igreja Católica de uma espécie de perversão da opinião pública, diante da questão do crime e da pena. "Se o sujeito não é enfiado na cadeia, não cumpriu pena", diz o padre Chico. "Se o sujeito vira um monstro, mata."
Charles Bronson
Tabloidezinhos ingleses do século 18 deliciavam seus leitores com histórias de crimes. O célebre escritor inglês Daniel Defoe arrancava as últimas confissões do infeliz que já estava no patíbulo, com a corda no pescoço. Dostoiévski era um rato dos tribunais moscovitas. A literatura policial criou uma legião de viciados em charadas criminais. O novo jornalismo americano deu características literárias à cobertura policial. Um gorducho berra contra os criminosos, num canal de TV de São Paulo. E há lições de como quebrar o pescoço de alguém a golpes orientais, em todos os canais de TV. Charles Bronson explode 30 cabeças em cada filme de justiceiro, como na periferia de São Paulo e do Rio de Janeiro. E sujeitos que mataram mais de cem pessoas na periferia, na condição de santos justiceiros, se sentiram, em todos os crimes, verdadeiros e lindos Charles Bronsons.
A instituição da pena vigorou como vingança e crueldade pelos séculos, talvez milênios, das pedradas de que trata a Bíblia até as galés e as fogueiras. A idéia da prisão que educa e regenera é filha do humanismo. "Então", diz Galvão Bruno, "chegamos à pena que visaria a ressocialização do indivíduo, sua recuperação. É o que deseja um Beccaria: a pena não tem um fim em si, é meio para recuperar o cidadão. O filósofo Emmanuel Kant vê na pena um fim mais moral. Para ele, mesmo que existisse apenas um cidadão no mundo, deveria ser punido pelo delito. Eu não penso assim. Acho até que há crimes que é melhor nem punir – como uma pequena agressão, coisa assim. Punir é pior. Mas há crimes que exigem castigo. Enfim, no quadro atual, no mundo inteiro, entendo que só há uma finalidade para a pena, que seria a proteção da sociedade. É o caso de um ‘Chico Picadinho’ (um dos autores dos célebres Crimes da Mala, de São Paulo, esquartejador de prostitutas, hoje preso no interior de São Paulo). Uma pessoa dessas não pode ser solta. Enquanto estiver presa, não mata. São pessoas amorais, irrecuperáveis, que não sabem o que é certo e o que é errado."
Galvão Bruno sabe que algumas dessas pessoas matam até quando estão presas. Matam quem estiver por perto, como é a história de muita gente na Casa de Detenção ou num manicômio judiciário como o de Franco da Rocha, com seus 565 pacientes, entre homens e mulheres. Vamos ver a história de um sujeito que só gosta de ser chamado de Zorro. Ele já lambia sangue aos 17 anos, quando fazia alguma barbaridade em Paranavaí, no interior do Paraná. "Lamber faca ou soprar a fumaça do revólver é tradição de matador." Ele já matou muita gente e assina no corpo: "Bandido Zorro". Pelo que fez dentro e fora dos presídios ganhou 70 anos de pena e acha que, no próximo dia 17 de julho, vai poder voltar para casa. Mas seu prontuário é uma história de terror. Jovenzinho, jogava pebolim com Darci, seu melhor amigo. As hastes com bonecos vermelhos e brancos rangiam e zuniam nas mãos dos dois, viciados no jogo – e na barulheira da venda do interior. Já com a cabeça cheia de pinga e planos, sombras e delírios, Zorro ia dizendo a Darci: "Puxa, que pena que hoje é o nosso último jogo..." Darci estava tão bêbado quanto Zorro e nem ouvia o que o outro falava... "É a última vez, a última vez...", murmurava Zorro. Os dois se cansaram do pebolim e saíram para o cabaré – onde tinham a mania de fazer sexo com a mesma prostituta. Zorro tinha ficado doido de raiva de Darci porque na noite anterior havia passado pelo cabaré e a marafona havia lhe dito que a fulana de que ele gostava estava imprestável por causa de uma surra dada por Darci. Zorro pensou em tudo e, quando estavam num lugar isolado, puxou a faca gigantesca e fez um monte de furos naquele que era seu maior amigo. Lambeu a faca. Dizem que o sangue jorrava como um chafariz. E ele sentia-se forte como um Hulk. Ele tinha aprendido a manejar facões matando porcos. Envenenava facas com poções de cebola, pimenta e secreção de sapo.
Nem em Howard Philip Lovecraft nem em Edgar Allan Poe existem cenas como as do manicômio judiciário e suas histórias mórbidas. E como as de todos aqueles homens e mulheres nus, em celas individuais, porque seus fantasmas e vozes pedem a eles que se matem, mesmo com um pedaço de trapo. Ou como a daquele rapaz que está há dois anos sozinho numa cela, com os olhos esbugalhados contra a parede, porque diz que "não gosta de gente"...
Mas se você andar pelas ruas mais sujas e mal-afamadas de São Paulo, vai descobrir, nesse antiturismo necessário (como dizia Julio Cortázar), garotinhas de 13 anos à cata de clientes para sexo barato, que paguem uns R$ 5, suficientes para comprar uma pedrinha de crack. Meninos também. Como dizem alguns juristas: "Nós criamos os monstros". "Por isso", diz Galvão Bruno, "e porque reconhecemos que o sistema, o presídio, não regenera, não temos direito a nenhuma superioridade moral sobre os bandidos. O que não nos tira o direito de proteger a família, a sociedade. A única função do presídio, então, é a defesa social. E, racionalmente, poderíamos chegar até a pena de morte?... Bem, uma coisa é reconhecer que a cadeia não regenera. Outra é tentar evitar que as prisões sejam escolas do crime."
O fato é que, para esse membro do sistema judiciário de São Paulo, cadeia é uma solução péssima, até burra, mas é a única. "Estamos diante de um problema em que todas as soluções são ruins."
Morte banal
O secretário da Administração Penitenciária de São Paulo entende que se deve pensar o crime e o castigo na cidade e no estado levando-se em conta as transformações sociais e urbanas. Estudando com os jesuítas, então muito influenciados pela visão do padre Lebret, Azevedo Marques e mais cerca de 20 estudantes conheceram, em 1954, as favelas e os cortiços paulistanos. Ele andou pela velha Mooca, pela Vila Ema, pela já extinta favela de Vergueiro, pela favela de Vila Prudente. Nesse tempo, São Paulo tinha 2 milhões de habitantes e cerca de 100 mil pessoas morando em favelas e cortiços. Hoje, a cidade tem 13 milhões de habitantes, e 2 milhões vivem em favelas ou cortiços. Nos anos 50 e 60, ele recorda que 50% dos crimes eram cometidos contra o patrimônio, mas não eram notáveis pela violência. Durante a ditadura militar, surgem, no fim dos anos 60, os Esquadrões da Morte, "que quebram a respeitabilidade e a credibilidade da polícia". Pouco a pouco, o assaltante vai substituindo o ladrão, enquanto nas periferias vão aparecendo os justiceiros à la Charles Bronson. O Esquadrão da Morte e as agências policiais vão colocando na ordem do dia a secular tortura, cada vez mais em moda. Ao mesmo tempo, uma radiografia das condenações mostra a barbaridade de 60% de assaltantes contra 30% de ladrões, enquanto vai aumentando a cota de gente ligada ao tráfico. Aliás, agentes penitenciários contam que traficantes "leves", de 18 anos, são jogados em celas de bandidos perigosos, na Detenção, onde são vítimas de atrocidades sexuais e passam a servir à rede de tráfico dos chefões.
Azevedo Marques é uma dessas pessoas que se interrogam a respeito da razão pela qual "a vida tem tão pouco valor, hoje". Ele entende que a mídia, com sua volúpia por crime e abrindo espaço para comentaristas que fazem do assassinato um carnaval e ainda pregam a pena de morte, além do festival de crimes que desfila pela TV, é uma das responsáveis por essa "banalização da morte". A miséria social e a degradação do ensino também pesam nessa equação. Finalmente, em sua leitura das últimas décadas, o secretário lembra que, nos anos 80 e 90, temos a ascensão do crime empresarial e do crime organizado – tudo isso em grande escala –, além daquilo que ele chama de globalização do crime, bem clara quando pensamos no tráfico de drogas e nas incontáveis máfias que ocupam boa parte do planeta. Em contrapartida à globalização do crime, temos a globalização dos órgãos que o pensam e reprimem – como o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, recentemente instalado em São Paulo.
A Casa de Detenção foi feita para 2 mil detentos; tem 6,5 mil; a população carcerária do país tem 130 mil presos, mas o número de vagas é 60 mil; 250 mil mandados de prisão esperam seu "cumprimento". Mas para onde iriam tais presos? As fotos dos cadeiões policiais são inacreditáveis e desafiam a imaginação de um Kafka ou de todo o realismo fantástico da literatura latino-americana. Em algumas delas os presos são empilhados – uns esmagados pelo peso dos outros. No chão, os presos-ratões; no alto, os presos-morcegos.
"Diante desse quadro", diz Azevedo Marques, "e dos recursos disponíveis para o setor, é preciso considerar seriamente o estudo da opção válida de aplicação de penas alternativas para os condenados por prisões brandas e que são portadores de personalidade de baixo grau de agressividade, deixando o sistema fechado para o tratamento e a recuperação daqueles criminosos de elevado grau de periculosidade."
A pena alternativa é a contrapartida no mundo jurídico das questões que agitaram o universo psiquiátrico nos anos 60 e 70, principalmente pelos livros de estudiosos como Michel Foucault, R. D. Laing, David Cooper e Franco Basaglia e pela efervescência cultural que eles promoveram. Os antipsiquiatras condenavam o hospício, a que acusavam tornar a loucura crônica; os anti do mundo do direito dizem que o sistema que integra a polícia e o Judiciário é apenas um estímulo ao crime – ou parte da sua engrenagem.
Cláudio Tucci, secretário adjunto do órgão estatal que, em São Paulo, tutela penitenciárias e presídios, entende que, embora hoje ainda seja restrita, a pena alternativa vai ajudar a descompressão do sistema penitenciário. Não se justifica colocar no sistema pessoas com o potencial de ressocialização plena. "O professor Damazio de Jesus nos contou", relata Tucci, "o que ouviu de um aluno delegado de polícia, em Campinas (SP). Certa noite, um indivíduo foi preso por ausência de pagamento de pensão alimentícia e colocado numa cela, junto com outros detentos. Na mesma noite, ele foi agredido e violentado sexualmente por muitos ‘colegas’ de cela – gente acostumada à vida de prisão. O que aconteceu? O rapaz se suicidou, horas depois que saiu da cadeia. Esse fato é mais comum do que parece. Já as pessoas que aprendem a viver as regras do sistema – as regras dos presídios e dos presidiários – muito raramente reaprendem as da sociedade. Ficam isoladas, e nunca mais saem do universo do crime."
O ministro da Justiça, Nelson Jobim, afirma, por sua vez, que "o grande defeito do sistema penal é você entender a pena como vingança. Ou entender a pena apenas como privação da liberdade. Nós enviamos ao Congresso Nacional um projeto que amplia as chamadas penas alternativas, no espírito do que vem se dando na Europa, em países como a Alemanha, a Itália, a Inglaterra. Mas, no Brasil, infelizmente, a própria mídia tem a visão de que a única pena clássica é a prisão. Enfim, nossa estratégia não é a construção de novas penitenciárias – isso não resolve... Aliás, a nossa tradição, em matéria de legislação, paga tributo ao direito canônico. E por isso, até hoje, o delinqüente é identificado como um pecador... Só a expiação por flagelo físico expia a alma... Isso é coisa que vem do século 18, da Inquisição, da devassa..."
O projeto de lei que amplia as penas alternativas foi elaborado por Paulo Tonet Camargo, que diz, em primeiro lugar, que "é preciso separar o criminoso cuja liberdade coloca em risco a sociedade daquele que não a coloca em risco". Ele também afirma que muitos ainda confundem pena e vingança. "Mas se a pena for vingança, vamos abandonar as penas que temos e criar coisas para valer, como o açoite ou a castração!"
O Ministério da Justiça está preocupado com o alto índice de reincidência dos criminosos que cumpriram pena em São Paulo e no Rio de Janeiro, que chega aos 80%. De que adiantariam, então, penas altas e privação da liberdade, em certos casos? Será que a sociedade gosta de pagar para aumentar o banditismo?
Tonet cita a questão dos crimes de colarinho branco. E uma historinha (de fim triste) bem atual. "O senhor Paulo César Farias ficou preso um bom tempo e com o patrimônio intocado. Quem pagou a conta da prisão? Fomos nós. Será que P. C. Farias, solto, mas sem o patrimônio, que deveria ser confiscado, seria perigoso?" E há aquele juiz do Rio de Janeiro – que foi condenado por roubar o INSS. "Está preso, vive às nossas custas e o patrimônio dele está livre! Ora, ampliando as penas alternativas, estamos começando a acompanhar as modernas tendências mundiais. Na Inglaterra, o índice de reincidência vem caindo – e naquele país as penas alternativas e amplas vigoram desde a década de 70. Os cidadãos devem entender que a pena deve levar à ampliação de sua segurança – e não se deixar levar pela idéia primitiva de vingança. Não adianta maltratar o criminoso – o importante, em muitos casos, é que ele não volte a delinqüir."
Nessa linha de pensamento é que o projeto enviado ao Congresso Nacional (ver texto abaixo) afirma que "a prisão deve ser reservada para os agentes de crimes graves e cuja periculosidade recomenda seu isolamento do seio social".
"Para os crimes de menor gravidade, a melhor solução consiste em impor restrições aos direitos do condenado, mas sem retirá-lo do convívio social. Sua conduta criminosa não ficará impune, cumprindo, assim, os desígnios da prevenção especial e da prevenção geral. Mas a execução da pena não o estigmatizará de forma tão brutal como a prisão, permitindo, de forma bem mais rápida e efetiva, sua integração social."
A "prestação de serviços", que é uma forma de pena alternativa, foi incluída no Código Penal brasileiro, em 1984, tendo a prefeitura de São Paulo sido designada para cumprir tal tarefa, em 1989. No momento, cerca de 400 pessoas condenadas por diversos delitos a penas leves foram consideradas aptas, pelo juiz Ivo de Almeida, a cumprirem penas alternativas, prestando serviço, então, em órgãos da prefeitura municipal paulistana, num trabalho coordenado pela doutora Christina Maria Fagundes Leal, procuradora da Secretaria Municipal da Família e Bem-Estar Social de São Paulo. Ela explica que milhares de condenados já prestaram tais serviços – 99% com dedicação e sendo respeitados pelos colegas, funcionários municipais. Geralmente, aliás, só a doutora Christina e algum funcionário especial da prefeitura ficam sabendo que fulano ou beltrano teve problemas com a Justiça e foi condenado. É sempre levada em conta pelo juiz e pela procuradora municipal "a aspiração e a aptidão" do sentenciado. Ao mesmo tempo, segundo a lei, "a pena de serviço à comunidade não pode prejudicar a jornada normal de trabalho do cidadão" – que geralmente tem obrigações com sua família, etc.
Um dos mais apaixonados defensores da pena alternativa, nos quadros da prefeitura de São Paulo, é o médico Marcos Rizzi, do Hospital Menino Jesus, onde acompanha o trabalho de 52 pessoas que ali cumprem tal medida judicial. Ele diz que alguns desses indivíduos se revelam pessoas de ótimo caráter e com uma dedicação incrível ao que fazem. Ele conta o caso de um empresário que ao fazer laborterapia com as crianças hospitalizadas no Menino Jesus se apaixonou por elas, ficando famoso quando trouxe cerca de cem fitas de vídeo infantis para doar ao hospital.
O doutor Rizzi não se incomoda sequer quando sabe que tem à sua frente alguém que cometeu algum crime de trânsito com morte. Uma dessas pessoas, alta funcionária de uma multinacional – vamos chamá-la de X –, conta que em julho de 93 vinha dirigindo seu carro na Vila Amália, por volta das 18 horas, quando, no lusco-fusco da quase noitinha, viu subitamente à sua frente um grupo de crianças brincando no meio da rua. Ela desviou o carro das crianças mas matou uma de 4 anos que brincava na calçada.
X trabalha no setor administrativo do hospital, onde pode ajudar muito porque é especialista em informática. Continua a trabalhar numa multinacional. E só fica desesperada quando se lembra da tristeza do que aconteceu naquele 16 de julho. E o que teriam feito de sua vida, confinada num presídio para mulheres, se não existisse a pena alternativa (ver também texto abaixo sobre experiências em Bragança Paulista e em Vitória da Conquista, na Bahia).
Para dar um exemplo da viabilidade da pena alternativa, o próprio Ministério da Justiça tem seis condenados trabalhando em suas dependências. Um deles como office boy de Nelson Jobim.
Outubro sangrento
O chamado massacre dos 111 da Casa de Detenção aconteceu a 2 de outubro de 1992, "em conseqüência da invasão do estabelecimento prisional por tropa da Polícia Militar de São Paulo". Na época, o Ministério da Justiça instalou uma comissão de investigação, que tinha figuras como Marcello Lavenère Machado, presidente do Conselho Federal da OAB, Aristides Junqueira, procurador-geral da República, e Carlos Chagas, representando a Associação Brasileira de Imprensa. Mas foi João Benedito de Azevedo Marques, ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, quem conduziu os trabalhos do inquérito, com o apoio da Polícia Federal. Azevedo Marques é, hoje, secretário da Administração Penitenciária de São Paulo – e seu sonho é ver todo o complexo penitenciário do Carandiru desativado.
Os trabalhos da Comissão de Investigação, gráficos sobre a criminalidade e textos de apoio do Núcleo de Estudos da Violência da USP foram reunidos num livro assinado, basicamente, por Lavenère e Azevedo Marques, intitulado História de um massacre (Cortez Editora, 148 páginas). Segundo o prefaciador Paulo Sérgio Pinheiro, da USP, a ação da polícia foi "criminosa, violenta e irresponsável", constituindo "um verdadeiro massacre, sem qualquer precedente na história do penitenciarismo mundial".
No livro, os autores explicam que a Casa de Detenção foi construída em 1954, com a finalidade de servir apenas para presos processuais e condenados à pena de detenção. Com o tempo, foi transformada em estabelecimento para cumprimento de todo tipo de pena. "A Casa de Detenção contraria todas as recomendações internacionais quanto aos estabelecimentos penais terem no máximo 500 presos..."
Uma das conclusões da obra de Lavenère e Azevedo Marques é a de que "a chacina do Carandiru está intimamente ligada ao problema da gravíssima crise do sistema penitenciário, reflexo da falência da pena como instrumento de defesa social e de ressocialização do delinqüente, das deficiências da Justiça Criminal e das políticas públicas de controle da criminalidade".
Alternativas para a prisão
Este é um fragmento do projeto do Ministério da Justiça que amplia as chamadas penas alternativas, recém enviado ao Congresso Nacional:
"A par das alternativas já existentes, acrescentam-se a prestação pecuniária, o recolhimento domiciliar e a perda de bens e valores (artigo 43), fornecendo ao juiz maior leque de opções para substituir a pena privativa de liberdade, quando cabível a substituição.
Faculta-se ao juiz, por outro lado, substituir a pena privativa de liberdade por advertência, freqüência a curso ou submissão a tratamento, quando entender que a medida é suficiente, no caso de condenação inferior a seis meses.
A substituição, que hoje só é possível, nos crimes dolosos, para as condenações inferiores a um ano, passa a ser viável no caso de penas até quatro anos, salvo se o crime foi cometido com violência contra a pessoa, hipótese em que a ampliação fica limitada a dois anos (artigo 44, inciso I). (...)
A pena de prestação de serviços à comunidade passa a ser calculada à razão de uma hora de tarefa por dia de prisão, tornando mais fácil ao juiz da execução o seu controle (artigo 46). Só será admitida como pena substitutiva se a pena privativa de liberdade for superior a seis meses, e seu cumprimento poder-se-á dar em tempo menor, em ressalva à regra geral do artigo 55.
No artigo 47 insere-se, como pena de interdição temporária de direitos, a proibição de freqüentar determinados lugares.
Para a suspensão condicional da pena insere-se (artigo 77, parágrafo 2o) a hipótese do sursis por motivo de doença.
Inovação se busca também no que toca à reincidência. Como está posta, a reincidência opera duplamente em desfavor do condenado. Em desprezo ao princípio da individualização da pena, tanto é motivo para exasperar a reprimenda penal quanto impedimento absoluto para a obtenção da substituição de penas. Nem sempre uma nova condenação, por si só, justifica a restrição atualmente imposta. Dentro da concepção sugerida, caberá ao juiz, em cada caso concreto, decidir, conforme seja socialmente recomendável, se a reincidência constituirá, ou não, motivo para negar a substituição (artigo 44, parágrafo 2o)."
Fardo dividido
Uma das experiências limites no sistema carcerário brasileiro se desenvolve na cidade paulista de Bragança. Lá existe uma espécie de privatização do presídio, através de um Conselho da Comunidade que, inclusive, arrecadou dinheiro para construir um anexo ao antigo presídio, desafogando a prisão, sempre superlotada. A experiência é toda gerida pelo juiz Nagashi Furokawa, responsável pela maioria dos presos, do ponto de vista carcerário. Nessa experiência, o governo estadual responde por R$ 10 por dia, para cada preso. Já outras formas de assistência, como a médica, odontológica, etc., são da responsabilidade da Associação de Proteção ao Condenado (Apac). A parceria entre Apac, Estado, presidiários e empresas particulares parece envolver pontos polêmicos, segundo o próprio juiz Furokawa. O preso, assim, colabora, em parte, com sua estadia na cadeia. Por outro lado, ele ganha: a cada três dias de trabalho um é subtraído de sua pena. Por sua vez, a empresa tem uma mão-de-obra mais barata, porque não paga encargos trabalhistas aos detentos.
Livre para criar
Vitória da Conquista é a terra onde nasceu o cineasta Glauber Rocha. Lá, no sul da Bahia, está o Presídio Regional Advogado Nilton Gonçalves, com seus 60 presos – e onde estão acontecendo algumas experiências pioneiras no sistema carcerário brasileiro.
Dois fatos singulares, no presídio:
1) Os detentos estão envolvidos no trabalho com uma belíssima horta. Esse tipo de labuta rural existe em outros pontos do Brasil. Incomum é o que acontece nos fins de semana, quando dois presos, com um acompanhante da segurança, vão à feira livre de Vitória da Conquista vender legumes. Nunca houve um caso de fuga.
2) Com o estímulo do programa Proler Carcerário – parceria entre o Ministério da Cultura, a Universidade do Sudoeste da Bahia e a Secretaria da Justiça baiana –, foi publicado um livro de memórias escrito pelo preso Hélio Alves Teixeira, que diz ter sido muito ajudado por outro detento, o "Bodão", "que tem boa caligrafia". Hélio conta, às vezes em versos como os da literatura de cordel, histórias típicas do campo, no seu Ventaneira: histórias sem fim, e não esconde que quando era um rapazote, por causa de uma prostituta, em noite de cabaré, fez "uma grande tragédia com um pobre rapaz, com uma faca na mão".
Hélio pegou nove anos de cadeia. Mas hoje, no presídio, só é chamado de Escritor.
A opinião dos encarcerados
Paulo César Argolo é geógrafo e, hoje, agente penitenciário, em Salvador (BA). Não se trata de nenhum paradoxo. Argolo, desde a faculdade, estava interessado na vida dos presidiários e dos presídios. Por isso, prestou concurso para agente penitenciário. E passou. Na Penitenciária Lemos Brito, ele fez uma pesquisa sobre quem são e o que pensam os presos, publicada na monografia "A população presidiária de Salvador e os movimentos de migração interna: o exemplo da Penitenciária Lemos Brito". Bastante original, o trabalho envolve as opiniões de cerca de 150 detentos.
Algumas das conclusões da pesquisa de Argolo, que já as apresentou até mesmo em congressos internacionais: dentre os presidiários ouvidos, 93% se dizem dispostos a deixar o crime, mas 7% confessam que pretendem continuar delinqüindo. Quanto ao comportamento após a saída da prisão, 65% entendem que isso depende do preso e 32% imaginam que depende da sociedade. Perguntados se a prisão prepara o preso para a vida sem crime, 60% responderam afirmativamente, mas 36% divergem, e dizem que isso não é verdade. Aliás, 54% respondem que as possibilidades para o preso, quando libertado, são pequenas, e 23% afirmam que elas não existem. Quanto à corrupção no sistema carcerário, 70,6% declaram que ela existe, mas 14,7% negam. Outros 14,7% não querem dizer sim nem não. Para 74,6%, a Justiça é injusta. Para 12% ela é justa. No que respeita à pena de morte, 9% são favoráveis e 88% são contrários. Dentre os entrevistados, 70% afirmam que a prisão é escola para novos crimes e 26% dizem que não é. Já no item "propostas para o presidiário se integrar à sociedade", algumas das respostas ao inquérito de Argolo: 33% acreditam nos cursos profissionalizantes; 17%, nos benefícios previstos em lei; 17%, na remuneração do trabalho na prisão; 16%, em transformar a penitenciária em presídio-indústria; 16%, em melhores condições de trabalho nas oficinas. No item "religião", 70% dos presos se dizem católicos e 27% declaram ter acolhido cultos protestantes.
Área polêmica
Em São Paulo, o centro da ação da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) é a desativação do complexo do Carandiru, que engloba a Casa de Detenção e a Penitenciária do Estado. A dinâmica geradora de tal operação é a permuta imobiliária da área onde está situado o complexo, com 427,6 mil metros quadrados, por vagas penitenciárias. A SAP propõe, também, a inclusão nessa operação da área do antigo Presídio do Hipódromo, com 4,1 mil metros quadrados.
Segundo o texto oficial, "o programa de desativação permitirá o aumento do número de vagas penitenciárias disponíveis e a resolução do grave problema do excesso de população carcerária no Carandiru, hoje com 9,1 mil presos para apenas 5,9 mil vagas, sem a necessidade de investimentos adicionais por parte do governo do estado. Se a troca pretendida se concretizar, será possível criar cerca de 13,7 mil vagas vinculadas a uma nova política penitenciária. A melhor utilização do patrimônio do estado incorporaria à cidade uma das maiores áreas disponíveis junto à região central da cidade de São Paulo.
O programa vem encontrando obstáculos junto à prefeitura de São Paulo. O prefeito Celso Pitta já disse que essa área da cidade deveria ser transformada num gigantesco parque, por razões urbanísticas e ecológicas.
Missão piedosa
Os encarcerados são o tema da Campanha da Fraternidade, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), deste ano. O livro lançado sobre o tema defende a humanização dos cárceres e pede às vítimas da criminalidade e seus familiares que esqueçam a idéia de "vingança" e a substituam pela "piedade".
Na obra, há uma crítica aos "meios de comunicação social, que veiculam amplamente a violência (...), exibem as reações das vítimas e seus familiares e fazem apelos aos sentimentos, dificultando a serenidade necessária para refletir e perdoar".
Segundo o texto – que contém muitos dados do último censo penitenciário do Ministério da Justiça –, "a Igreja continua a missão de Jesus. Ele veio para perdoar, reconciliar, e não para acusar, julgar ou condenar. Ele veio para nos libertar".
A CNBB faz um apelo, ainda, para que a Pastoral Carcerária e outras instituições da sociedade civil trabalhem com as famílias dos presos e com os próprios egressos – para diminuir o elevado índice de reincidência.