Postado em 01/08/2012
RENATA PALLOTTINI
Estava eu na cidade de Coimbra, Portugal, no Natal de 1982, um Natal muito frio, com neve nas montanhas vizinhas. Longe da família, entre pessoas carinhosas, mas estranhas e estrangeiras. Já tarde da noite, quase antes da meia-noite, vejo anunciada na TV a transmissão de Morte e Vida Severina, original de João Cabral de Mello Neto, direção de Walter Avancini.
Ali fiquei, siderada, contendo mesmo algumas lágrimas, revendo a jornada de Severino, os versos exatos de Cabral, a direção sempre inventiva de Avancini, ao lado dos amigos que tinham a oportunidade de ouvir e ver aquela obra-prima...
A adaptação de textos literários para a televisão é uma via larga de mão dupla: ao mesmo tempo em que se dão a conhecer a milhões de espectadores obras que, em condições normais, talvez eles não tivessem oportunidade de ver, na própria obra se fazem as inserções, as modificações, os acréscimos e cortes que o gênero televisivo pede ou exige. Um trabalho do gênero literatura, passado para a TV, não é mais o que era quando foi escrito. Pode vir a ser melhor ou pior, mas é sempre uma transcrição, uma recriação.
Feitas algumas vezes em versões curtas, de uma hora de duração e encerradas numa unidade, essas recriações podem ser, também, produzidas para programas longos, minisséries ou telenovelas, valendo-se das qualidades do gênero advindo dos melodramas e dos folhetins.
Temos de haver-nos, aí, com as diferenças que existem entre o gênero épico-narrativo, aquele de que nos utilizamos para criar o chamado romance, e o gênero épico-dramático, no qual a narração propriamente dita é, mais frequentemente, feita pela câmera.
Explicando: quando um romancista quer dizer-nos que Júlio, numa balada, ao voltar do bar, onde foi buscar bebidas para si próprio e para sua garota, a encontra dançando com um velho conhecido e fica furioso e ciumento, ele tem todas as palavras do seu idioma para narrar-nos os sentimentos de que o rapaz está possuído.
Numa adaptação para TV é diferente: além das palavras, jamais dispensadas, o autor conta com a câmera, que mostra, em close, as expressões faciais da personagem, seus gestos, sua atitude. É claro que ele continua dispondo da palavra, mas o bom criador de TV sabe que a imagem a substitui com vantagens.
Igualmente se nota como a descrição de espaços, lugares e cenários é substituída pela simples exibição dessas locações, de roupas, adereços, detalhes que marcam a época, o país, a região onde os acontecimentos se desenvolvem.
O bom adaptador, portanto, é aquele que, além de conservar o espírito do criador original, sabe aproveitar os recursos que a imagem lhe proporciona, sem distorcer a verdade e a beleza da trama inicial. Na já mencionada adaptação de Morte e Vida, a descrição dos estados de alma do protagonista, do seu desalento, da sua secura, o novo programa criado mostra a seca, a terra morta, as mortes, a busca de um novo caminho e de uma vida possível, que acaba por triunfar.
Devido, provavelmente, ao caráter exótico, atraente, de sua localização, de sua gente e de seus costumes, as regiões Norte e Nordeste têm sido ponto de partida de algumas das melhores criações do gênero.
O Memorial de Maria Moura, original da escritora cearense Rachel de Queiroz, foi em 1994 recriado com muito sucesso para minissérie de 24 capítulos, adaptação de Jorge Furtado, direção-geral de Carlos Manga, e exibido pela TV Globo. A realização ensejou uma excelente interpretação de Glória Pires, que criou uma personagem apaixonante, marco da sua carreira.
Dona Flor e seus Dois Maridos, romance de Jorge Amado ambientado na Bahia, como costumam ser
suas criações, e publicado em 1966, teve em 1976 uma brilhante adaptação para cinema, com direção
de Bruno Barreto e papel principal de Sônia Braga. Em 1998 voltaria a ser trabalhado, desta vez como telenovela, pela Rede Globo.
Outra obra literária de Jorge Amado, sempre na linha de ficção ambientada na Bahia, conta a história de
Tieta do Agreste, que volta ao seu lugar de nascimento para vingar-se dos que a humilharam na juventude, em clara recriação da peça teatral A Visita da Velha Senhora, de Dürrenmatt. Tieta, o romance, data de 1977 e sua adaptação para telenovela foi feita pela Globo em 1989.
Mas o maior sucesso de público, de crítica e de projeção internacional dentre as obras adaptáveis de Jorge Amado é Gabriela, Cravo e Canela, romance de êxito datado de 1958, feito, em cinema, com participação de Sônia Braga e Marcello Mastroianni; e na TV, em 1975, ainda com Sônia Braga e mais Armando Bógus nos papéis principais. Consta que a TV Tupi, de resto pioneira em termos de telenovela no Brasil, tenha feito uma versão de Gabriela em 1961, com Paulo Autran num dos papéis principais. Mas dessa criação pouco restou, além da notícia.
Gabriela está voltando à cena, neste ano de 2012, com Juliana Paes e Humberto Martins nos papéis principais e um grupo de atores consagrados completando o elenco. Sua remontagem, como legítima telenovela, embora prevista para um horário mais tardio, é uma prova a mais do que a ficção literária pode fazer pelo enriquecimento do gênero televisivo.
Renata Pallottini é dramaturga, poetisa, ensaísta e tradutora e fez vários trabalhos para a televisão brasileira.
Leia na íntegra edição 65 da revista SESC TV.