Postado em 30/11/2012
Contra a hegemonia do turismo massificado e impessoal, o turismo social aposta na dimensão solidária e educativa da prática
Pouco depois do término da Segunda Guerra Mundial, em 1948, duas ações bem distintas tentaram – cada uma à sua maneira – aproximar a população do lazer, da diversão e do bem-estar social. A primeira, de caráter global, foi feita pela Organização das Nações Unidas (ONU), e previa que toda pessoa tivesse “direito ao repouso e ao lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho e a férias periódicas remuneradas”, conforme consta no artigo 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada naquele ano. A segunda, brasileira, era a inauguração de uma nova unidade do SESC, em Bertioga, no litoral paulista, uma estrutura montada para garantir a diversão de funcionários do comércio e de seus familiares durante as férias, priorizando os espaços coletivos.
Ambas, embora sem relação direta entre si, tinham o mesmo propósito: a conscientização de que as férias e o turismo são direitos de todos os cidadãos. Mais de meio século depois, outras declarações e instituições surgiram, o intercâmbio entre diferentes povos tem aumentado a cada dia e as pessoas, em geral, entendem melhor o papel das viagens de caráter social como ferramenta de educação e formação cultural.
Nas décadas de 50 e 60, o turismo comercial tal como se conhece era ainda mais restritivo do que atualmente, possível apenas para aqueles que tinham condições socioeconômicas muito favoráveis. As leis trabalhistas não eram bem fiscalizadas, as dificuldades e impedimentos de locomoção eram maiores e as famílias eram mais numerosas.
Ativistas do ramo turístico, então, dispostos a fazer valer o direito ao lazer para todos, se organizaram para estender o privilégio das viagens a outras classes da sociedade, dando prioridade a jovens, famílias, idosos reportagem especiale pessoas com deficiência. Em 1963, com o propósito de representar esses setores interessados no turismo social, foi criada a Organização Internacional de Turismo Social (OITS).
Presente em 35 países, com cerca de 170 membros associados, a OITS (até o ano passado chamada de BITS, Bureau Internacional de Turismo Social) é mantida por instituições públicas e privadas. Nas suas mais de cinco décadas de existência, já viu o termo se transformar incontáveis vezes. Para Jean-Marc Mignon, presidente da entidade, a definição é complicada e dinâmica. Em suma, diz, “Turismo Social é cuidar da sociedade à medida em que se tenta abrandar as desigualdades”.
Uma das funções da Organização é disseminar – por meio de conferências, encontros e intercâmbios – os conceitos e os estudos sobre a prática, ainda desconhecida de muitos. A maior luta de seus membros é propiciar ambientes turísticos em que as experiências culturais e humanas sejam compartilhadas, sem que as comunidades anfitriãs sejam descaracterizadas ou se tornem dependentes dos seus visitantes. Fazem parte da OITS governos locais e federais, ONGs, agências de viagem, instituições de educação e quaisquer outras entidades que promovam – ou queiram promover – o turismo social em sua região.
Foi para discutir as novas perspectivas da prática que o SESC-SP, em parceria com a OITS, organizou o Encontro das Américas de Turismo Social, realizado na capital paulista entre os dias 24 e 27 de agosto. Junto com iniciativas como a Hostelling International – a rede mundial de hospedagem em albergues e quartos coletivos – e outras ações localizadas em comunidades menores, o SESC é um dos poucos representantes do turismo social no Brasil, que, por enquanto, não conta com políticas públicas ou subsídios do Estado específicos para a prática. O diretor regional da instituição em São Paulo, Danilo Santos de Miranda, destaca a importância de o turismo “não ser mais visto e oferecido como atividade complementar, e sim como algo principal, que utilize a infraestrutura distribuída em todo o país”.
Se for encarado como um fenômeno fundamentalmente social, o turismo tem chances de melhorar não só a estrutura já existente, mas também de desenvolver novas ferramentas para promover a interação entre viajantes e as populações que os recebem. Economicamente, a proposta é viável: quando há aumento de subsídios, públicos ou privados, os operadores turísticos são mais bem capacitados e conseguem aproveitar o potencial do local onde vivem, com empregos permanentes, como sujeitos do processo de intercâmbio cultural, e não só receptores ou anfitriões a serviço de uma distante indústria do turismo.
Por ter surgido para beneficiar cidadãos cujos recursos destinados ao lazer eram escassos ou inexistentes, o preconceito com a prática ainda existe: "social” é para “pobre”, e o “pobre” terá inevitavelmente uma estrutura precária – associação que atualmente tornou-se sem sentido. “Viajar com turismo social não quer dizer que a pessoa esteja em um local com menor qualidade. Ter uma hospedagem qualificada, por exemplo é fundamental”, explica Flávia Costa, representante do SESC SP na OITS Américas.
Garantir a qualidade e a democratização do turismo é uma preocupação da OITS desde o seu surgimento, no entanto, dois episódios merecem destaque dentre as ações permanentes e contínuas da entidade. Em 1972, durante um dos encontros mundiais da organização, que acontecem a cada dois anos, foi aprovada a Carta de Viena, ratificando a ideia de que a atividade turística é parte da sociedade e que, por isso, deve ser colocada à disposição de todas as classes. Mais de vinte anos depois, em 1996, outro divisor de águas: a Declaração de Montreal, também redigida pela OITS, passou por uma reformulação em 2006 e foi adotada como documento de referência para debater o tema, pois ressalta a importância do intercâmbio entre os povos, não priorizando visitantes ou visitados, mas integrando-os.
Entre um e outro, vale também destacar a Declaração de Manila, proclamada pela Organização Mundial do Turismo (OMT), das Nações Unidas, em 1980. No encontro, realizado nas Filipinas, reforçou-se a noção de que a prática turística é indispensável aos países, colocando o turismo como ferramenta educacional de uma nação.
A indústria do ramo, porém, ainda é despreparada para lidar com os diferentes públicos que querem viajar; as instalações, em teoria, deveriam garantir comodidade, segurança e independência aos visitantes. Estimase que 10% dos viajantes sejam idosos,
que preferem períodos de baixa temporada, custos menores e ritmo tranquilo, com mobilidade e descanso garantidos. Outros 10% compreendem o grupo das pessoas com deficiência, entre eles obesos, grávidas, analfabetos, cadeirantes e deficientes que buscam acesso aos mesmos serviços que qualquer outro turista. “Todo mundo tem alguma dificuldade, em alguns ela é aparente, em outros, não”, afirma Dadá Moreira, que fundou a ONG Aventura Especial após descobrir que tinha uma doença degenerativa. A organização fica na cidade deSocorro, no interior de São Paulo, e promove esportes de aventura e ecoturismo acessíveis a todos.
Atualmente, a prática do turismo social está muito mais expandida do que os conceitos especializados conseguem abranger. Ainda que a principal meta seja facilitar o acesso a viagens para pessoas com menos recursos, viajar com o propósito de interagir com novas culturas é para todos, independentemente de condições socioeconômicas. Com o aumento da população urbana e do estresse associado a um estilo de vida acelerado, a demanda por férias – uma necessária pausa da correria cotidiana – cresceu, e famílias cada vez menores, estagnadas pelas baixas taxas de natalidade, conseguem viajar com mais frequência.
De todos os países do continente americano, o Brasil é o mais generoso com os trabalhadores quando o assunto é férias. Uma pesquisa realizada pela OITS Américas mapeou, com base em Constituições, códigos de trabalho, entrevistas e no calendário de feriados, quais benefícios são previstos na legislação trabalhista de cada país.
Por ano, a Constituição brasileira garante 30 dias livres aos empregados registrados no regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sancionada pelo presidente Getúlio Vargas em 1943. Além disso, também é garantida aos funcionários a remuneração extra, conhecida como o 13º salário. Bolívia e México, por sua vez, têm sete e dez dias livres, respectivamente. Já nos Estados Unidos não há uma lei que obrigue o empregador a dar folgas remuneradas.
Ter férias garantidas, todavia, não significa aproveitá-las em visitas turísticas. À falta de condição financeira, o maior impedimento para as viagens de lazer, somam-se ainda razões profissionais (férias vendidas ou não tiradas, por exemplo), problemas de saúde ou de mobilidade. Questionada se um país como o Brasil, de proporções continentais, habitado por um povo conhecido por sua hospitalidade, não teria mais probabilidades de contar com um turismo social bem-sucedido, Verónica Gómez Aguirre, diretora da OITS Américas, é taxativa: “Não importa se há muitos ou poucos destinos. A prática está condicionada à vontade dos governos e da sociedade, que deve reivindicar seu direito ao lazer, às atividades turísticas”.
Criada em 1994, a secretaria da OITS para as Américas enfrenta um desafio a mais: aproximar-se de um norteamericano ou de um canadense é totalmente diferente de se relacionar com um brasileiro, um mexicano ou qualquer outro latino-americano. “Essas diferenças dentro do mesmo continente são uma realidade com que devemos trabalhar todos os dias”, conta Verónica Gómez Aguirre.
Os contrastes entre norte e sul e a cultura heterogênea mesmo entre países vizinhos é refletida principalmente nas questões econômicas Enquanto os países anglo-saxões – Estados Unidos e parte do Canadá – têm uma população com maior poder aquisitivo e, por isso, mais recursos para desfrutar de atividades turísticas, a América Latina sofre com a predominância de salários baixos, além de estruturas mais precárias. Mesmo assim, a diretora da OITS afirma que o turismo baseado na solidariedade entre os povos acaba tendo mais espaço entre os latinos do que na região norte do continente, por uma questão cultural e afetiva.
No Chile, parte significativa da ajuda para o turismo vem do governo. “Política é um conjunto de objetivos para enfrentar determinado problema, e requer financiamento”, defende Francisca Retamal Wiedmaier, diretora da Unidade de Turismo Social do Chile, que desenvolve programas turísticos para a terceira idade, jovens e mulheres, bancados com licitações e subsídios. Segundo dados do Serviço Nacional de Turismo do Chile (Sernatur), aproximadamente 95% dos beneficiados dizem estar satisfeitos com a qualidade dos serviços prestados – neste ano, quase 60 mil pessoas usufruíram de alguma iniciativa subsidiada para o turismo social chileno.
Jacques Perreault, presidente da secretaria para as Américas da OITS, destaca a dificuldade que o turismo social ainda enfrenta nas regiões de colonização inglesa. Apesar de a OITS manter boas relações com diversas associações, ele ressalta que, nesses países, “o turismo é uma indústria, e por isso deve trazer dinheiro. Não é algo a que todo mundo deva ter acesso”.
Além de estar nas Américas e na Europa, onde é melhor articulada e tem maior número de membros afiliados, a OITS também está em outros dois continentes. Criada em 2004, a secretaria para a África caminha lentamente rumo à conscientização sobre o turismo. “Nós temos boas organizações, mas o que eles podem fazer ainda é muito pouco, sobretudo por questões políticas e problemas sociais”, explica Jean-Marc Mignon, presidente-geral da entidade.
Os sete países-membros africanos, diz ele, ainda têm outras prioridades, como estimular atividades locais. No oriente, por outro lado, o turismo não é irrisório – longe disso. Mas a OITS, “por razões culturais”, afirma Mignon, quase não atua no continente asiático. “Temos alguns poucos contatos, na Índia e na Malásia, por exemplo, mas o conceito é mais forte entre os latinos e europeus”, completa Mignon.
Ainda que mudanças de ordem prática – como políticas públicas e subsídios privados – estejam entre os objetivos buscados pelos defensores da democratização das atividades turísticas, a discussão sobre o tema deve ser mais ampla. “Para que o turismo mude, é preciso mudar os paradigmas da sociedade, que não supre as necessidades básicas de uma parcela da população”, defende Luzia Neide Coriolano, doutora em geografia pela Universidade Federal de Sergipe e professora da Universidade Estadual do Ceará. Segundo ela, a ideia de que a felicidade será atingida de forma individual, consumista e patrimonialista – “você é o que você tem” – aumenta o sentimento de exclusão, pondera.
Associar o turismo social à inclusão, então, deveria ser um processo natural, já que a sociedade moderna é em sua essência excludente. A segregação geográfica observada no Brasil, por exemplo, que concentra a movimentação financeira e boa parte da produção industrial na região Sudeste, contribui para acentuar as diferenças. “O processo que gera riqueza em determinado lugar é o mesmo que vai deixar na pobreza quem está fora daquele ciclo. Um trabalhador que sai da favela é um excluído, mas vai para a fábrica trabalhar e produzir riqueza para um pequeno grupo”, acrescenta a professora do Ceará.
Tomado como padrão, o modelo ocidental de organização econômica, que prioriza megaempresas e oligopólios, também é seguido à risca no setor turístico, deixando pequenos empreendimentos reféns desse modo de produção. Os programas de fidelidade a grandes corporações, entre elas redes hoteleiras, cartões de créditos e companhias aéreas, mantém uma relação de interdependência entre si e desencorajam os clientes a experimentar novos destinos e diferentes formas de viajar. Além disso, o discurso de responsabilidade social foi adotado com tamanha ênfase por essas organizações que o próprio conceito passou a ser questionado.
Algumas empresas turísticas, por exemplo, conseguem incluir as pessoas a partir do momento em que permitem que os pacotes de viagem sejam parcelados em inúmeras vezes, mas não têm preocupações de cunho social, tanto com os visitantes quanto com os anfitriões. “Não basta se deslocar de um lugar ao outro para cumprir a função proposta pelo turismo social”, ressalta Flávia Costa, do SESCSP. Muitas vezes, o que soa como desenvolvimento para uma comunidade local (como nos casos em que é investido um grande capital para a instalação de complexos turísticos comerciais) não passa de uma troca desigual, que beira a exploração dos recursos ali existentes.
Para Luzia Neide Coriolano, dentre as opções possíveis para fomentar o desenvolvimento de um turismo sustentável, a opção mais plausível atualmente seria a de políticas alternativas, como a criação de Arranjos Produtivos Locais, que aproveitam habilidades e produtos culturais da região, criando empregos permanentes nas comunidades. “As políticas públicas são complicadas, porque o Estado se alia muito fácil aos grandes empresários. Água, luz, estrada e combate a mosquito não é ação de turismo” relativiza. A especialista defende a tese de que estamos chegando à terceira globalização; na primeira, integraram-se os países; na segunda, as corporações. Agora, o tempo é de integrar as pessoas, em ações conjuntas calcadas na coletividade.
“Sempre que houver uma crise financeira generalizada, o turismo social terá aí uma oportunidade”, ressalta. Sergio Rodríguez Abitia, consultor na área e presidente da OITS Amé-ricas entre 2002 e 2005. Ele defende a ideia de que a recessão econômica que assolou o mundo em 2008 e que volta a dar sinais de que pode causar mais prejuízos nos próximos tempos enfraquece o turismo convencional, criando, consequentemente, um cenário propício para o turismo social, cujos custos são mais baixos e atraentes para um momento de estagnação.
Para tanto, organizações de fomento ao turismo trabalham para se integrarem. “Nós temos boas e fortes relações com a Organização Mundial do Turismo, não apenas politicamente, mas também no âmbito do trabalho”, conta Jean-Marc Mignon, da OITS.
A demanda, agradecem os ativistas do turismo social, aumentou, e a prática ganha espaço em organizações públicas e privadas. O que se busca, daqui para a frente, são financiamentos e parcerias com associações dispostas a promover turismo social de qualidade. “Nós, que trabalhamos com turismo social, o fazemos com coração. É questão de se organizar, planejar e conseguir que o maior número de pessoas tenham acesso ao lazer”, resume Verónica Gómez Aguirre.