Postado em 30/06/2011
“Que a cultura não pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem simplesmente superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma síntese de nova ordem”. (Lévi-Strauss)
Senilde Alcântara Guanaes*
Desde o seu surgimento a civilização humana vem sendo constituída a partir de uma concepção antagônica da natureza. De um lado, uma versão científico-positivista do mundo natural, reduzido ora a uma lógica mercantil, ora a um princípio de “sacralização”, onde a natureza passa a ser “intocável”, transformando-se em “refúgios de biodiversidade”. Do outro lado, mesclados à natureza, estariam os grupos humanos diretamente dependentes dos recursos naturais. Embora esses grupos não dependam da dicotomia naturezasociedade, os modelos globais continuam a dicotomizar a natureza, entendendo-a exclusivamente como “recursos”, em oposição às “políticas” globais, definidoras do mundo da cultura, numa relação que globaliza os interesses sobre o território e as políticas de conservação, criando modelos distantes dos contextos culturais e, simultaneamente, exorcizando as formas locais de uso da natureza.
Se pensarmos a cultura como relação e comunicação “que organizam a percepção e a ação das pessoas”, conforme Almeida e Carneiro da Cunha, nela cabe a própria ideia de natureza e as formas escolhidas de se relacionar com ela. Tanto a negação quanto a domesticação e uso do mundo natural, assim como as propostas de uma nova relação com o ecossistema, são produzidos por categorias culturais específicas em contextos singulares. O que não significa dizer que a natureza e a vida em suas diversas concepções estão submetidas às categorias culturais, mas que os conceitos, padrões ecológicos e critérios de relação com o mundonatural foram criados, desde a sua raiz, em contextos políticos e econômicos específicos.
É precisamente neste contexto que nos perguntamos se é possível uma mediação entre essas duas lógicas de relação com a natureza. Aquela que explicitamente privilegia interesses globais sobre territórios “nacionais”, biodiversidade e etnoconhecimento; e outra que acredita possível conciliar formas tradicionais e ou culturais de relação com o meio e a conservação da biodiversidade. A segunda compreenderia observar como grupos culturais distintos, no campo ou na cidade, vivem e se relacionam com o ecossistema à sua volta, compartilham os recursos naturais disponíveis, negociam os espaços a serem ocupados, solucionam problemas comuns, em síntese, como se apropriam do espaço da vida.
O uso de recursos naturais, os critérios de exclusão e inclusão de grupos humanos em áreas de conservação e o difícil reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais, entre outras questões, dão origem a complexas discussões, pois são as mesmas questões vistas sob diferentes prismas - não raramente naturalizando-se processos sociais de relação com a natureza e esvaziando a dimensão econômica e política estruturante dessa relação. Para esse tipo de conservacionismo, as culturas continuam sendo inimigas da “conservação”.
No entanto, não necessariamente, os grupos humanos fazem um uso desequilibrado dos recursos naturais, as experiências têm demonstrado que, quando desafiados a gerir ou cogerir seus territórios e recursos, esses grupos agem de modo racional, responsável e eficaz. Em contraposição, os números têm mostrado que os espaços naturais e de paisagens controlados apenas pelo Estado e/ou instituições não governamentais, estão sujeitos a ações que colocam constantemente em risco a integridade do ecossistema e do território como um todo, em função das dificuldades em estabelecer regras que sejam organicamente eficazes e em fiscalizar o cumprimento das mesmas sem a colaboração e a presença cotidiana dos grupos locais.
Nesse sentido, a importância do conhecimento popular e dos saberes partilhados entre as diversas “ciências” e distintas representações culturais, tornam-se fundamentais para a construção de modelos eficazes de conservação. E isso não se reduz apenas aos pequenos grupos e/ou comunidades, as complexidades de um conjunto diverso de experiências também são capazes de operar e resolver problemas ambientais em nível urbano. Pesquisas mostram que áreas onde há parcerias entre grupos sociais com habilidades para operar determinadas atividades econômicas e agências ambientais dispostas a promovê-las, as políticas conservacionistas desenvolvem-se de forma autônoma não apenas em termos econômicos e ambientais, mas também em termos políticos, o que pode representar um primeiro passo para um “modelo conservacionista positivo”, nas palavras de Dowie, onde os próprios nativos definem as regras e os gestores tentam subsidiá-las.
Políticas de conservação são mais eficazes à medida que rompem com a dicotomia natureza e cultura e que formulam um conjunto de práticas a partir de cada ecossistema e dos grupos humanos que vivem nele, construindo e ajustando de forma artesanal e cotidiana o seu conjunto de normas. Um projeto de conservação comprometido com a sociedade deve compreender as culturas humanas, sendo etnoconservacionista para os de dentro, não para atender padrões externos de conservação, por outro lado, precisa também saber dialogar e estar atento às novas experiências e teorias em nível global. São experiências que desenvolvidas em seus contextos podem trazer elementos que sejam “universais”, no sentido estruturalista, eis a diferença básica entre modelos globais e modelos universais de conservação, o primeiro produz um conjunto de ficções baseado em experiências hegemônicas; enquanto o segundo, também um conjunto de ficções, sustenta-se em idéias e experiências supostamente comuns a todos os povos, porque extraídas de sistemas locais. Os saberes locais, quando agenciados, são capazes de integrar de modo vivo e autônomo o mundo da cultura ao mundo da natureza, e de reverter a “insustentabilidade” global do nosso modelo econômico em possíveis “sustentabilidades” locais.
*Senilde Alcântara Guanaes Docente da Universidade Federal da Integração Latino- Americana, dra. em Ciências Sociais e Pós- doutora em Educação, ambos pela Unicamp.