Postado em 30/03/2012
Dona de muito bom humor e muito hospitaleira, Adozinda Kuhlmann, 94 anos, nos recebeu em sua casa. Professora desde muito jovem, bem cedo começou a dar aulas de alfabetização, tendo por alunas suas empregadas. Até hoje leciona para crianças do bairro, em sua residência.
Ativa e muito relacionada, todos a conhecem na região. Recebeu muitas homenagens eternizadas em quadros e troféus que expõe em sua sala. Não teme a morte, embora saiba, como reconhece, “estar mais para lá do que para cá. Por isso mesmo, comemora cada novo dia vivido. Acorda cantando “parabéns” a ela mesma e nos dias particularmente felizes, também canta o “pique pique”!
Para início de conversa, fale-nos de sua infância e juventude.
Nasci em Cuiabá, Mato Grosso. Meu pai era paulistano e professor, formado pela Escola Caetano de Campos. Minha família era de professores. Meu tio Guilherme era professor. Os governos dos outros estados pediam professores paulistas para organização do ensino nos estados. Meu avô, matogrossense, era Joaquim da Silva Amarante Azevedo. Ele foi presidente do estado de Mato Grosso e ele pediu para o governo paulista que enviasse professores para o ensino em Mato Grosso e meu pai foi designado para lá. O ensino que meu pai organizou é o mesmo até hoje, isso foi em 1910, por aí, eu nasci em 1917. Meu avô imigrou para o Brasil e foi o primeiro deputado naturalizado do Brasil. Ele era alemão, Albert Kuhlmann. Meu tio Guilherme foi até diretor geral do ensino púbico, que, naquele tempo, equivalia ao cargo de Secretário da Educação.
Sua infância foi vivida em Cuiabá?
Não, minha infância foi em São Paulo. Meu pai saiu de Cuiabá e veio para cá já casado já com minha mãe. Três filhos nasceram lá, Jose Bonifácio, depois a Maria Josefina e eu. Nós três nascemos lá. Depois eles vieram para São Paulo e nasceu um temporão, com um nome pomposo, Washington Fernando de Azevedo Kuhlmann por causa do Washington Luis. Histórias de família...
Quantos anos você tinha quando chegou em São Paulo?
Seis meses. Eu quase não fiquei em Cuiabá. Foi pouco tempo. Viemos de Cuiabá, mas não ficamos na Capital, ficamos no interior. Meu pai foi inspetor escolar em Guaratinguetá e Penápolis por duas vezes, foi inspetor em Bauru e Araçatuba. Meu pai adorava lecionar. Depois, ele foi transferido para São Paulo, mais ou menos em 1930, e ele dava aula. Ele faleceu jovem, aos 39 anos. As pessoas começavam a vida cedo, quando organizou o ensino em Cuiabá, tinha 20 anos, era menino.
Antes de falar da Adozinda professora, como era a Adozinda aluna?
A Adozinda aluna foi tão normal, porque eu amava a escola como todo mundo, naquele tempo era um prêmio ir para a escola. Lembro do primeiro dia de aula, foi em Guaratinguetá. Eu tive uma professora chamada dona Alicinha. Eu morei na rua Tamandaré, e lá que aprendi a ler, com a dona Alicinha. A gente se desenvolvia com tanta naturalidade como se fosse uma coisa que estava ali, pronta para você. A escola era enorme, depois fomos para Penápolis, estudei em Lins... Eu gosto de contar porque eu sou do tempo da Escola Normal. Eu tenho só a Escola Normal. Depois eu fiz outros cursos, mas isso é uma coisa decorrente. Para falar do que você fez, você tem que falar do que estudou, onde você aplicou isso, porque você estuda, obviamente, mas você vai idealizando o que você vai fazer com isso que está aprendendo. Sempre você procura fazer mais do seu modo, você tem que ser um pouco independente com as coisas que você faz, até com sua profissão...
Tem que ter criatividade...
Cada professor deixa uma marca. Eu recebo aqui em casa muitas pessoas, sabe, no dia do meu aniversário umas 400 pessoas daqui do bairro passaram por aqui, entre elas muitos ex-alunos. Alunos que eu alfabetizei, que ensinei a ler e que hoje são adultos, porque dou aula há mais de 70 anos. Trabalho com crianças com dificuldade de aprendizado e isso que faço é a coisa mais fantástica que você pode fazer. Você vê nos olhos da criança que ela conseguiu aprender. Isso não tem método, não tem nada, porque nós somos únicos. Cada um de nós é único, não tem ninguém igual a você. Somos únicos e você sempre teve a sua personalidade.
Você se lembra de seus professores?
Lembro assim, lembro da dona Alicinha que eu já falei, lembro de dona Mercedes Dias Aguiar, nome pomposo, foi minha professora de quarto ano primário, são professores que marcam você. Ela era uma pessoa linda, e, depois, os professores da Escola Normal. Alguns professores ficam na memória, principalmente quando você aplica a matéria que eles deram. Na hora que você vai usar a matéria, você diz, olha, foi o fulano que me ensinou, então, você se lembra sempre deles.
E você já tirou nota baixa?
Não, nunca tirei nota baixa. Meu pai nos jogava a responsabilidade, ele era professor. Ele dizia: “você não vai a um lugar para aprender apenas a metade do que eles estão falando para você, você está na vida para aprender tudo, todos os dias você aprende uma coisa”.
Embora, nem todos os alunos têm as mesmas condições de estudo...
Sim, às vezes, não tem as mesmas condições, as mesmas propriedades de aprendizagem, como falei para você, nós somos únicos. Agora, quando você vai para uma classe, você vai para aprender. E o professor vai para ensinar. Ele apresenta a aula dele, mas ele tem que fazer da aula dele uma coisa agradável. O professor tem que ser agradável e gostar das pessoas. Gostar das crianças.
E como lidar com a indisciplina?
Sabe, a indisciplina, muitas vezes, é uma coisa que vem de pai e mãe, porque quem não obedece aos pais, vai obedecer ao professor? O respeito... quando eu era menina, a criança obedecia aos mais velhos. Obedecia em termos, não era escravo, servil, mas era o respeito que a gente tinha pelos mais velhos. Você respeita os pais porque eles tem a capacidade de ensinar você, pela experiência. Não é que sejam mais inteligentes, eu tive dois irmãos inteligentíssimos. Eu era a mais burrinha da minha família. Talvez, a mais normal, mas eles eram muito inteligentes. Meu avô era engenheiro, ele foi o primeiro deputado naturalizado do Brasil, ele amava o Brasil. Ele adorava essa terra.
Qual seu ponto de vista sobre a educação hoje? Fazendo uma comparação entre a educação de quando a senhora era jovem e agora, que diferenças têm, o que aconteceu de lá para cá?
Olha, você, veja o quanto mudou, o quanto as coisas a sua volta mudaram, e assim acontece também com a maneira de educar. Como meu pai era educador, eu sempre achei que é fantástico aprender. Tem que incentivar na criança essa vontade de conhecimento. Tem que mostrar para a criança que é uma maravilha. Uma vez perguntaram para mim como era quando a gente não sabia ler? Peguei um jornal chinês e falei, era assim. A criança que sabe ler é dona do mundo. Eu trabalhei muito com crianças com dificuldades maiores, tipo síndrome de Down, paralisia cerebral, e a paralisia cerebral têm inúmeras maneiras de se apresentar. Em geral, as crianças chegam analfabetas para mim, porque no ensino, a coisa mais assombrosa, o milagre do ensino é a alfabetização. Na hora que você alfabetiza, você se emociona, porque a criança lê. Eu me emociono até hoje. Principalmente uma criança, uma pessoa que você diz, eu alfabetizei. A Fernanda, eu alfabetizei com 17 anos. Ela tem síndrome de Down e hoje trabalha na Pizzaria Hut e é importante lá, dá ordens. Ela é fantástica.
A senhora se lembra do primeiro dia de aula como professora?
Não sei ao certo, mas desde cedo eu já ensinava as empregadas aqui de casa com o alfabeto. Antigamente, primeiro você fazia o concurso para escola rural, tinha estágios, primeiro, segundo e terceiro estágios e, nas fazendas, tinha as escolas rurais para os filhos dos colonos. Às vezes não tinha carteira, não tinha nada, não era organizado, mas ali tinha todos os ramos de aprendizado, tinha meninos analfabetos, adultos analfabetos, e a gente colocava os analfabetos para um lado, não dava para colocar por idade. Você começava a ensinar.. foi muito interessante. Ensinar é um dom divino que a gente tem, eu agradeço isso a Deus.
Que disciplina você ensinava?
Eu ensinava e ensino a ler. Mas, eu ensino de tudo. Não existia especialização. Agora tem professor de matemática, português, história. Antigamente, o professor primário dava tudo. Hoje cada professor dá uma matéria.
Isso é pior, ou melhor?
Não sei o que se é pior, ou melhor. Acho que o professor que fica com apenas uma matéria, fica meio frustrado. Às vezes, a criança não gosta do professor e às vezes não gosta da matéria, depende da afinidade. Não sei o que é bom para um e o que é bom para outro. O importante é que todo professor faça com que a criança goste do que está fazendo, goste do que está aprendendo.
A relação entre professor aluno é fundamental, não é?
Por certo! E ela deve ser bem cuidada. Sempre o que se faz gostando, se faz melhor. Não é verdade? Eu dou aula porque eu gosto, a vocação é uma coisa importante, mas você não vai escolher apenas pessoas que nasceram para ser professor, qualquer um pode ser professor, depende de como você se oferece para fazer isso.
Hoje em dia, muitos professores se queixam das condições de trabalho. Elas pioraram? Como você vê isso?
Veja, você é dono do que faz, eu já falei que tudo que você faz gostando, você faz melhor, então, eu não acho justo que o professor fale que não tem mesa na escola. Não faz mal, você põe um caixote, pinta o caixote, você dá para a criança, no interior é assim, você não deve se queixar da escola. Na sua profissão, você sempre arruma um meio para fazer o melhor possível. Todo mundo faz o seu melhor possível. Então, não se queixe da sua profissão. “Ah, porque eu ganho pouco, professor ganha pouco”, não, sou professor... Eu fiz uma poesia sobre ser professor. Ser professor é uma glória! Eu fiz essa poesia, porque eu tenho essa qualidade de fazer versinhos. Eu fiz acróstico até para Deus.
A senhora tem uma relação muito forte com a música, não é?
Estávamos falando sobre inspiração. Eu acho muito difícil fazer uma coisa sem inspiração. Para mim, vem música e letra, daí eu canto. Não toco nenhum instrumento, mas, minha mãe era pianista ,ela me ensinou um pouco, eu conheço piano, sei onde estão as notas, mas eu nunca tive esse dom divino que um irmão meu tinha. Ele tocava qualquer instrumento.
Como é viver essa fase do envelhecimento. Como você se sente aos 94 anos de idade?
Você vai vivendo e vai envelhecendo, e vai notando o que a idade dá a você cerceamento de capacidades. Você tem aquele apogeu físico, mas depois envelhece. Claro que eu não posso mais jogar amarelinha, porque eu não pulo mais em uma perna só, mas eu sei como jogar amarelinha. Posso ensinar jogar amarelinha transmitindo essa experiência de vida para você. Viver é bom, é abrir os olhos de manhã cedo e comemorar porque aos 94 anos de idade, cada dia é dia de cantar parabéns. Eu cantava parabéns apenas no meu aniversário, agora eu canto todos os dias e conforme o que eu vivo nesse dia,
ainda canto pique pique. É uma verdade, porque eu ainda sou quem eu sou e eu sei quem é você, isso é a melhor coisa do mundo depois de certa idade. Você vê algumas pessoas com o olhar de abobado. Essas já não estão vivendo. Eu, não. Eu dou minhas aulas ainda. Eu procuro entender as pessoas, eu faço, eu converso, é muito bom e vocês tratem de viver bastante, vocês têm regalias, viver é muito bom.
Como é o seu relacionamento com os jovens?
É fantástico! Tenho muitos netos. A maioria das pessoas que vêm à minha casa, mais da metade é formada por jovens. E os meus netos e bisnetos dizem assim para mim, ao me convidarem para as festas: Ah! Se você não for não terá graça. O relacionamento com jovens faz um bem danado. Você aprende muito com os jovens, com qualquer geração diferente da sua, você aprende muito.
Como são teus hábitos do dia a dia? Sai para passear?
Não tenho nada programado, não tem nada metódico, meu programa é diferente de um dia para outro. Passeio muito, todos os dias, vou a todo lugar, aqui na região todo mundo me conhece. Hoje vou fazer mercadinho. Tem um que é ótimo, abriram na esquina, chama-se Chocolândia. Eu não tomo condução, porque agora, todo mundo que me convida e vem me buscar. Recebo tantas homenagens... Querem ver? Esses retratos foram pintados, quando eu fiz noventa anos, fizeram uma linda homenagem, disseram que só eu e Marilyn Monroe tiveram essa homenagem, vinte artistas pintaram meu retrato. Aquele é um, aquele é outro, esses dois ganharam prêmio. Na hora que eu começar me queixar da vida, podem me internar. Agora quando fiz 94 anos, fecharam a rua. Chegou muita gente, de um ônibus, desceram 40 crianças. A coisa melhor é lidar com jovens. Elas vieram para cantar para mim. O prefeito também veio. Essa turma toda veio, essa foto é dos meus netos. As pessoas entram e saem de minha casa. Eles sentam pelos corredores, pela sala.
O que você pensa a respeito sobre a morte, tem medo dela?
Hoje mesmo conversei sobre isso. “Não temas a morte. Não chore meu filho, que a vida é luta renhida/ viver é lutar. Não temas a morte, que a morte há de vir”. Então, essa é a verdade. Eu não tenho medo da morte. Desde que você nasce já começa a morrer. Cada dia que você vive é um a menos da sua vida. Não é um mais. Essa parte é importante. Não tenho medo de morrer, mas sei que estou mais para lá do que para cá. Fiz uma poesia: Quero que quando eu me for/ que me encham de cor/ das cores do arco-íris/ que a gente vê e sente/ E o sentimento é tão grande/ Tem tanta força e ternura/ Que toda alma se expande/ E assim vivendo/ Assim irei voando/ Voando e podendo ver lá de cima/ todos que eu amo/ Então/ abrindo meu coração/ Direi baixinho/ bem baixinho/ Ao pé de ouvido/ Como foi bom ser amado/ Como foi bom ter vivido. Então, eu estou de bem da vida. Claro, mais velhinha, tenho que tomar mais cuidado, porque não é brincadeira. Eu me assusto às vezes quando me perguntam, quantos anos a senhora tem e eu respondo, noventa e quatro. Noventa é um número muito alto. Ela tem trinta, trinta é menina-moça, recém-nascida.