Postado em 29/03/2011
JOSÉ CARLOS FERRIGNO
Após séculos de lentas transformações ao longo da Idade Média, profundas mudanças estruturais ocorreram na civilização ocidental durante a chamada Era Moderna, tanto na sociedade em geral quanto na família em particular. Como efeito, novos padrões de relacionamento entre as gerações foram construídos. Aliás, até a própria noção de geração foi construída, pois esta não existia no mundo feudal (ARIÈS, 1981, p. 275-279), ao menos como a concebemos hoje. Naquela época, crianças e adultos misturavam-se no cotidiano e nas situações de festa e de trabalho. A segregação geracional em espaços sociais exclusivos não era conhecida. Até o século XVIII as fases da infância e da adolescência se confundiam. Nos colégios as palavras latinas puer e adolescens eram empregadas indistintamente. Foram conservados documentos de alunos em que um jovem de 15 anos é descrito como um bonus puer, ao passo que outro, mais novo, de 13 anos, é tido como optimus adolescens (ARIÈS, 1981, p. 41).
As gerações passam a ser mais estudadas no período moderno (FEATHERSTONE, 1998, p. 10). Primeiramente é a infância que adquire visibilidade e, como consequência da preocupação em dela cuidar, incentiva-se a escolarização. Na segunda metade do século XIX, Stanley Hall elabora uma psicologia da adolescência e a repercussão de suas teorizações colabora para uma maior visibilidade social das pessoas dessa faixa etária. No século XX a velhice é objeto de atenção com o desenvolvimento da Gerontologia e a criação dos centros de convivência e das escolas específicas para essa faixa etária. A partir de meados do século XX, uma determinada coorte de velhos é elevada à condição de terceira idade, conceito de origem francesa que traz promessas de um envelhecimento prolongado, ativo e saudável, se determinadas condições de vida forem alcançadas.
Mais recentemente, outro período da vida é problematizado, tornando-se alvo de estudos e intervenções: a meia-idade, longo período situado entre os 40 e os 60 anos, transição para a velhice, marcada culturalmente por uma suposta crise de identidade, tal qual tenderia a ocorrer em outro período transicional: a adolescência. Meia-idade, aliás, representada pelos pais de adolescentes, em uma relação frequentemente caracterizada por determinados conflitos, tema que discuto exaustivamente em outro trabalho (FERRIGNO, 2009). Na Era Moderna, essa mais nítida delimitação etária permitiu a instauração de específicas normas de conduta para cada idade e para cada sexo.
A diferenciação conceitual e a normatização das gerações na modernidade refletem o afã da ciência positivista de promover a seriação e a classificação das pessoas e das coisas. Essa tendência se aplicou bem à formação do conceito recente de geração ao longo do ciclo vital. Tais considerações históricas nos chamam a atenção para a transitoriedade das formas de interação entre os grupos etários: elas variaram e, certamente, prosseguiram mudando no mesmo compasso das demais relações sociais.
Na contemporaneidade, além da normatização do comportamento esperado para cada geração, os valores da sociedade de consumo parecem colaborar para o distanciamento social entre as gerações. O consumismo, a mercantilização das relações sociais, a exacerbação das qualidades da juventude e o desprezo pelas tradições culturais, típicos do ideário capitalista, afastam velhos e jovens. Consequentemente, temos um distanciamento emocional e mesmo uma compartimentalização geográfica das faixas de idade, uma segregação geracional em espaços exclusivos. Crianças no espaço escolar, jovens com suas “tribos” em seus pontos de encontro, adultos com seus pares no trabalho e idosos em grupos de convivência e associações assemelhadas para a prática do lazer. Mesmo na família, onde a proximidade física é inevitável, o diálogo entre pais e filhos e avós e netos é parco, empobrecido ou até inexistente.
No entanto, embora atualmente prevaleça uma distância intelectual e afetiva, experiências demonstram que há um rico potencial de trocas afetivas e de conhecimento entre as gerações desde que se efetivem determinadas condições facilitadoras. Entre tais condições, uma das mais básicas e importantes é a presença de interesses comuns, que valem, evidentemente, para a boa qualidade das relações interpessoais de modo geral. O contrário, ou seja, o conflito de interesses, dificulta a aproximação. Identidade de valores cria laços de amizade entre pessoas jovens e pessoas mais velhas que, por sua vez, possibilitam uma relação coeducativa. Para isso é preciso que haja um clima solidário, de confiança mútua em que a cooperação ocupe o lugar da competição.
Quando pensamos em motivos de afastamento, constatamos a presença do preconceito, que pode estar em qualquer um dos dois lados. Tanto o idoso pode discriminar o jovem quanto o inverso. Os preconceitos etários são mútuos. Evidentemente, há idosos que valorizam o contato com gente jovem, muitos dos quais conheci em meu trabalho e que são grandes incentivadores de programas intergeracionais. Da mesma forma, várias crianças e adolescentes com quem tive contato demonstraram um vivo interesse pelos velhos, gostam de conversar com eles e de ouvir suas histórias.
Parece de vital importância considerar sob quais parâmetros as interações entre jovens e pessoas maduras podem ser potencializadas. Nas atividades intergeracionais, segundo o que temos observado, certas condições, como dissemos, intensificam a relação entre jovens e pessoas maduras na perspectiva do desenvolvimento das trocas de experiências e do fortalecimento de laços afetivos. Alguns fatores detectados (e detalhados em FERRIGNO, 2009) foram: o estabelecimento de interesses comuns; o prazer proporcionado pelo lúdico em decorrência de suas características singulares; a predominância de relações igualitárias entre mais velhos e mais jovens; a suficiente duração do processo grupal e, portanto, do convívio para a formação de amizades; a salutar iniciativa dos mais velhos para a aproximação com os jovens; a participação democrática e coletiva sobre como planejar, executar e avaliar as tarefas; e, finalmente e muito importante, a condução segura e competente dos programas por educadores preparados teórica e praticamente, e, sobretudo, conscientes da importância de tradições populares sua missão. Aliás, a formação de recursos humanos nessa área certamente será, ao lado da sensibilização de gestores de instituições públicas e privadas, o grande desafio para o desenvolvimento do campo intergeracional, como bem argumenta Juan Sáez (2007, p. 192-210).
Um contexto alternativo para o encontro de gerações (e, aliás, muito alternativo, considerando as atuais feições do cotidiano na sociedade globalizada e de consumo em que vivemos) é o do universo da cultura popular. Nas tradições populares os velhos possuem os conhecimentos necessários para a preparação e execução de rituais e eventos festivos de suas comunidades. Por isso são vistos como importantes e são reconhecidos e prestigiados pelos jovens. No meio rural, nas cidades pequenas e em algumas periferias dos grandes centros urbanos, sobrevivem ainda festas comunitárias como as festas juninas, entre tantas outras. No Brasil, do pouco que restou de tais manifestações nas grandes cidades, o Carnaval, sem dúvida, se destaca. De fato, nas escolas de samba, ao menos nas mais tradicionais, os velhos compositores, puxadores de enredo, músicos e passistas são muito respeitados pelos mais moços, que muito aprendem com eles. É importante notar que nas autênticas manifestações populares a comunidade se apresenta para si mesma e, de certa forma, a participação é de todos os presentes. Já na cultura de massa, na cultura do espetáculo, a marcada divisão entre palco e plateia, entre artistas e espectadores, dificulta a integração entre os participantes.
Os movimentos sociais dos anos de 1960 deflagraram importantes mudanças de valores e comportamentos, inclusive na indumentária das gerações. O modo de vestir tem nos dado uma pista sobre uma progressiva indiferenciação das idades e dos gêneros nas décadas recentes. Não somente homens e mulheres atualmente se vestem de modo parecido, mas também jovens e velhos. É claro que, acompanhando a indiferenciação das roupas, há uma aproximação de valores e comportamentos. Curiosa situação esta que vivemos, na qual os mais velhos querem parecer mais jovens, ao passo que crianças e adolescentes se esforçam para obter um visual de pessoas adultas. As meninas, muitas vezes equivocadamente estimuladas por suas próprias mães e pela mídia, vestem-se como mulheres em miniatura, num processo de precoce erotização de comportamento. Como resultado desses fenômenos, temos as gerações com uma aparência menos desigual que no passado, a começar por seu figurino, mas principalmente por sua identificação com os padrões de consumo impostos pela lógica do capital. Os rituais de passagem da infância para a vida adulta não mais existem. As fronteiras demarcatórias das fases do ciclo vital são mais tênues. Por exemplo, já não se fazem mais bailes de debutantes, ocasiões em que as famílias da classe média, ao apresentarem suas filhas à sociedade, veladamente, as ofereciam para casamento.
Os discursos das ciências da saúde e de setores empresariais incentivam os velhos a adotarem um estilo de vida parecido com o dos jovens. Como consequência, constatamos que aquela figura provecta, sisuda e contida de um “velho de 50 anos”, presente nos romances de Machado de Assis e no imaginário popular em décadas passadas, contrasta com a representação e mesmo com o comportamento dos idosos do século XXI que voam de asa delta e praticam outros esportes radicais. É bem verdade, no entanto, que grande parte dos velhos tem uma vida bem mais prosaica e dificultada por doença, pobreza e solidão. Mas, de fato, há novas imagens de velhice circulando e criando novas mentalidades.
Para vários autores (MOODY, 1993; HELD, 1986; BOUTINET, 1995, apud DEBERT, 1999, p. 19) estaríamos vivenciando um momento de “apagamento dos comportamentos tidos como adequados às diferentes categorias de idade”, “uma descronologização da vida”, “um embaçamento das gerações”. Nestes novos tempos é possível criar ou experimentar novas sexualidades e identidades etárias tanto na vida real como no mundo virtual. Nos relacionamentos pela internet um homem pode se fazer passar por mulher e vice-versa. Um velho por um jovem ou um jovem por um velho.
Bauman (2005, p. 69-77), ao analisar as transformações da identidade social, usa a expressão “liquidez das coisas”, quando comenta sobre a volatilidade de valores, atitudes e comportamentos na chamada pós-modernidade. Estará, então, havendo algo semelhante com a identidade etária, uma “confusão das idades”, reflexo das múltiplas oportunidades de escolha de estilos de vida? As mudanças de comportamento na velhice determinando uma nova identidade de velho, a crescente proximidade entre as gerações (embora ainda pouco expressiva, mas já notada em determinados contextos), em que medida alteram a chamada identidade de velho e de jovem? De que modo podemos situar o conflito e a cooperação entre gerações em um novo contexto de mudanças na identidade etária? Possivelmente, a reaproximação das gerações passe pela redefinição das identidades etárias, sendo realmente causa e consequência dessa ampla transformação de valores, atitudes e comportamentos. O que se espera é que o resultado desse processo favoreça o desenvolvimento do respeito e da solidariedade entre pessoas de todas as idades.
A mudança de ventos é perceptível e favorável. Dos anos de 1990 para cá, educadores, especialistas da área social e instituições de educação formal (universidades) e não formal (instituições culturais, ONGs) começaram a perceber de maneira cada vez mais nítida a importância da aproximação das gerações, na perspectiva do desenvolvimento de relações solidárias, isto é, de relações menos distantes, menos conflituosas, menos competitivas (FERRIGNO, 2009, p. 271-287). Iniciativas institucionais, então, passaram a se multiplicar em vários países, inclusive no Brasil.
Os Estados Unidos são pioneiros em ações intergeracionais. Desde os anos de 1970, em iniciativas públicas e privadas, o trabalho voluntário tem aproximado gerações. Assim, por exemplo, supervisionados por escolas do Ensino Médio, adolescentes prestam serviços a idosos dependentes em instituições de longa permanência. Reciprocamente, ocorrem experiências em que idosos saudáveis e com boas condições de vida mantêm ações de cuidados voltados a crianças carentes institucionalizadas ou a dolescentes em situação de fragilidade social. Segundo Sally Newman, a primeira iniciativa da qual se tem registro ocorreu em 1963, promovida pela Universidade da Flórida e que consistiu em visitas de crianças pequenas a uma instituição que abrigava idosos (NEWMAN, 1997, p. 63).
Os programas intergeracionais passaram a se multiplicar na Europa durante os anos de 1990. Como reflexo dessa nova preocupação, os países da Comunidade Europeia estabeleceram o ano de 1993 como o Ano da Solidariedade entre as Gerações. Na Espanha, para marcar esse ano, o governo federal promoveu um amplo concurso para premiar os melhores projetos sociais no campo das relações intergeracionais (MORAGAS, 1995, p. 88-89). Os resumos das centenas de projetos intergeracionais inscritos nesse concurso (em sua maioria, 61%, na área de educação, cultura e lazer) podem ser visualizados em publicação da Fundação “A Caixa”, de Barcelona (FUNDACIÓ “LA CAIXA”, 1994).
Na América Latina, é também durante os anos de 1990 que programas intergeracionais, promovidos por instituições privadas e governamentais, começam a ser desenvolvidos de modo mais sistemático e com uma intencionalidade mais clara. No Brasil, igualmente em 1993, o Departamento Nacional do Serviço Social do Comércio (Sesc) lançou o projeto “Era uma vez... Atividades intergeracionais”, que tem como objetivo aproximar idosos e crianças por meio da contação de histórias baseadas na literatura infanto juvenil.
O reconhecimento da importância do convívio intergeracional como possibilidade de inclusão do idoso na comunidade é deflagrador de ações e reflete-se em resoluções nacionais e internacionais promovidas por governos e por entidades não governamentais. Em Madri, no ano de 2002, a Segunda Assembleia Mundial sobre Envelhecimento, promovida pela ONU, em suas conclusões ressalta “a necessidade de fortalecer a solidariedade entre as gerações e as associações intergeracionais, tendo presentes as necessidades particulares dos mais velhos e dos mais jovens, e de incentivar as relações solidárias entre as gerações” (NAÇÕES UNIDAS, 2002).
No Brasil, a chamada Política Nacional do Idoso, de 1994, estabeleceu direitos aos idosos, buscando garantir sua inclusão na vida social por meio de ações intergeracionais. O Estatuto do Idoso, de 2003, baseado na mesma lei, ressalta a importância da “viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso, que proporcionem sua integração às demais gerações” (BRASIL, 2004, p. 6).
No Brasil, à semelhança de outros países, pesquisas e ações no campo da intergeracionalidade têm sido empreendidas em diferentes áreas das ciências sociais, mas sobretudo por gerontólogos e demais profissionais que trabalham com pessoas idosas. A necessidade de integração social dos velhos, incluindo-se aí a integração etária, como vimos expressa no próprio Estatuto do Idoso, constitui forte motivação para ações de aproximação intergeracional.
Ainda que haja resistências a serem vencidas, parece que essas iniciativas estão sendo facilitadas por uma certa abertura dos idosos às gerações mais jovens. Reportando-nos às novas experiências que uma parcela dos velhos têm vivido em instituições culturais e acadêmicas, desde os anos de 1960, quando tais oportunidades começaram a ser criadas no Brasil, podemos pensar que alguns passos foram importantes para a referida abertura às gerações mais jovens.
Os grupos de convivência quebraram o isolamento de muitos velhos. As faculdades e as universidades abertas à terceira idade forneceram às pessoas idosas uma preciosa oportunidade de aquisição de novos conhecimentos e de atualização cultural. O empenho de várias instituições no incentivo ao trabalho voluntário do idoso e de seu engajamento social ensejou também o florescimento de sentimentos solidários, de doação ao outro e à coletividade. Esse conjunto de ações ao longo das décadas recentes parece ter preparado os velhos para o encontro com os jovens.
Num saudável movimento dialético, os jovens, por sua vez, têm se mostrado mais motivados a interagir com os idosos, a partir da nova disposição destes. Uma nova e mais positiva imagem de velhice parece estar sendo construída. Mas cabe observar que, se por um lado os grupos de convivência foram preciosos por romperem o isolamento dos idosos, muitos deles fecharam-se para o contato com as demais gerações. Por isso ainda há resistências e, portanto, mentes e corações a serem conquistados.
Desde os anos de 1980, diversas instituições brasileiras de Ensino Superior abriram espaço para cursos específicos voltados aos idosos nas chamadas Faculdades da Terceira Idade. A grande maioria dessas iniciativas é de ações exclusivas para esse grupo etário, embora haja uma interessante relação intergeracional com os professores de tais cursos, já que geralmente esses docentes são pessoas jovens. Uma relação desse tipo eu tive a oportunidade de estudar mais detidamente. Ela envolveu um processo de coeducação entre idosos da Escola Aberta do Sesc SP e seus jovens professores (FERRIGNO, 2003). Os dados coletados permitiram estabelecer alguns conteúdos geracionais específicos que são intercambiados e que permitem a ampliação do universo cultural dos envolvidos nessas trocas.
A Universidade Aberta à Terceira Idade, promovida pela Universidade de São Paulo, diferencia-se das demais. Nela, além de cursos e oficinas exclusivas, os idosos podem se inscrever como alunos ouvintes nos cursos de graduação, compartilhando aulas com os jovens colegas. Esse convívio possibilita interessantes e produtivas trocas de experiências.
Investigações acadêmicas sobre intergeracionalidade aparecem em dissertações de programas de mestrado e doutorado nas diversas áreas das ciências sociais. Mais frequentemente surgem em cursos de especialização lato sensu e programas de mestrado em Gerontologia. Neste último caso, destacam-se os programas da PUC São Paulo e da Unicamp. Alguns estudos ocorrem em trabalhos de alunos de cursos de graduação em Gerontologia, como o curso da USP.
De modo geral, as pesquisas na área ainda são escassas no Brasil. Os tipos de investigação científica mais comuns são: 1) estudos sobre as relações intergeracionais na família ou entre gerações não consanguíneas em espaços sociais como os de lazer, trabalho e estudo; e 2) estudos sobre representação recíproca que levantam atitudes positivas e negativas (o que os velhos pensam sobre os jovens e o inverso). As pesquisas, em geral, são estudos qualitativos transversais que coletam dados com base em entrevistas e observações de atividades em pequenas amostras de sujeitos.
As relações intergeracionais mais presentes nos estudos e nas práticas institucionais são: 1) avós e netos no contexto familiar e 2) idosos e crianças (sem laço de parentesco) em situação de lazer e de educação não formal em oficinas culturais. Outras relações que são objeto de investigação ou de ações institucionais são: idosos e adolescentes, crianças e adolescentes, terceira e quarta idades (cuidado e cuidador, mais frequentemente mulher cuidadora, filha ou esposa de idoso fragilizado).
No ambiente da escola formal, em instituições de Ensino Fundamental e Médio, na esfera pública e particular, há poucas ações. Mais que resultado de políticas institucionais, há esparsas e episódicas iniciativas de diretores e professores que trazem pais e avós para o espaço escolar e desenvolvem atividades desses adultos com alunos, crianças e adolescentes.
A presença do Estado é ainda incipiente nos programas intergeracionais brasileiros. Nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), equipamento estatal de base municipal e integrante do Sistema Único de Assistência Social (Suas), há Grupos de Convivência Intergeracionais envolvidos com atividades culturais e de lazer. Em geral, as políticas nesse setor passam por Ministérios e Secretarias de Cultura, Lazer, Esportes e Saúde.
Nas políticas de Estado a intergeracionalidade esporadicamente ocorre como tema transversal. Na Assistência Social, a proteção é objetivo prioritário. A família aparece como objeto de atenção, podendo haver aí uma ação indireta em prol da cooperação intergeracional no âmbito familiar. Na área da Saúde, orientações e recomendações em prol de um envelhecimento saudável incluem o convívio com as demais gerações. Na Educação, como vimos, a intergeracionalidade aparece nas Universidades e Faculdades Abertas para a Terceira Idade, nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Gerontologia, nas teses e dissertações em múltiplas áreas sociais e da Saúde. Nos Direitos Sociais, a participação e a integração social, inclusive por meio do convívio com outras gerações, estão expressas, conforme já mencionamos, como direito da pessoa idosa na Política Nacional do Idoso (Lei no 8.842, de 1994) e no Estatuto do Idoso (Lei no 10.741, de 2003).
Nessa categoria, considero instituições como ONGs e organizações como Sesc, Sesi e similares. Frequentemente trabalham com programas de lazer, cultura e preservação ambiental, em processos de educação não formal. Inúmeras delas recebem subsídios do Poder Público, como aqueles advindos das Leis de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura. Em geral, são projetos comunitários nos quais o desenvolvimento da qualidade de vida e a cidadania são objetivos principais. A integração etária, sob a égide da inclusão social para jovens e velhos, é um dos objetivos das ações, ainda que muitas vezes não explícito, aproximando velhos e jovens das comunidades, em geral, carentes.
Como exemplo, há o projeto Ação Griô Nacional, iniciativa de valorização dos anciãos das comunidades na perspectiva de aproximá-los das novas gerações para o repasse de seus conhecimentos. Integra os Pontos de Cultura vinculados ao Ministério da Cultura, “cuja missão é criar e instituir uma política nacional de transmissão dos saberes e fazeres da tradição oral um diálogo com a educação formal, para o fortalecimento da identidade e ancestralidade do povo brasileiro, por meio do reconhecimento do lugar político, econômico e sociocultural dos griôs, das griôs, mestres e mestras de tradição oral do Brasil” (AÇÃO GRIÔ NACIONAL, 2009/2010).
Em 2003, o Sesc São Paulo organizou um evento inédito quanto à sua temática e abrangência: o Congresso Internacional Coeducação de Gerações. Nele foram apresentados dezenas de trabalhos empreendidos por instituições sociais e culturais, públicas e privadas. Na ocasião foi lançado um novo programa intergeracional da instituição: o Sesc Gerações. De lá para cá, tem sido notável a riqueza de experiências permutadas entre jovens e idosos durante o exercício conjunto de práticas de lazer em situações de cursos e oficinas culturais. Uma constatação importante tem sido a possibilidade concreta de se estabelecer expressivos processos de coeducação entre pessoas de diferentes idades.
O lazer e a prática desinteressada de atividades culturais, por seu caráter de ocupação livremente escolhida e, por isso mesmo, geralmente prazerosa, podem se constituir em preciosa ferramenta para aproximar as idades. No cotidiano desses grupos plurietários, o processo de integração é fortemente educativo, não apenas recreativo, pois, além do conteúdo específico que a atividade enseja, a formação de vínculos de amizade propicia o clima de confiança necessário para as trocas de experiências de vida.
A riqueza de conteúdo das atividades de cultura e lazer constitui um precioso arsenal de possibilidades à disposição dos educadores para aproximar gerações. Desde a implantação do programa Sesc Gerações, em 2003, até o momento, inúmeras experiências tiveram lugar nas unidades da instituição, espalhadas pela capital e pelo interior de São Paulo. É bem verdade que, nos centros culturais como os do Sesc, sempre há oferta de atividades normalmente abertas a todas as faixas etárias. Todavia, aqui me refiro àquelas intencionalmente construídas para aproximar gerações.
A mais antiga experiência registrada ocorreu em 1977, no Sesc Consolação, a partir de uma pesquisa sobre brinquedos populares. Idosos foram convidados a desenvolver suas habilidades em oficinas de criatividade. Posteriormente em um evento chamado “Encontro de Gerações”, realizado em comemoração à Semana da Criança, esses velhos assumiram o comando de uma oficina, ensinando às crianças a confecção de brinquedos artesanais. Essa experiência possibilitou uma interação muito rica entre velhos e crianças e estimulou a criação de oficinas de criatividade em vários centros de atendimento da capital e do interior de São Paulo.
Com o objetivo de restabelecer a comunicação entre velhos e crianças, o Sesc da cidade de Ribeirão Preto, interior paulista, criou no início dos anos de 1980 um grupo de teatro de idosos, “Os Contadores de Histórias”. A partir de estórias e lendas da época de suas infâncias, os idosos escolheram o teatro de bonecos para atenuar o constrangimento de enfrentar um palco, pois, caracterizados com fantasias, puderam ocultar suas identidades. Tal estratagema serviu também para surpreender o público, pegando as crianças de surpresa ao descobrirem seus próprios avós como atores, ao final do espetáculo. O grupo escolheu os personagens, elaborou o texto, confeccionou as máscaras, o vestuário e a trilha sonora. Durante e depois das apresentações, a interação com as crianças foi muito intensa. Em decorrência do sucesso alcançado, esse e outros grupos de teatro formados por idosos passaram a ser convidados para se apresentar em creches, orfanatos, escolas, pré-escolas, comemorações de Dia ou Semana da Criança, Natal, feiras populares, festivais de teatro, entre outros eventos. Ainda na área teatral, em 2001, no Sesc Consolação, em São Paulo, uma interessante experiência juntou as oficinas de teatro de adolescentes com a oficina de teatro de idosos. Durante meses, adolescentes e idosos se encontraram para estudo e seleção de textos de grandes dramaturgos e, posteriormente, para os ensaios e as apresentações.
Também tendo por conteúdo a contação de histórias, como já mencionamos, o Sesc Nacional implantou em vários estados brasileiros o projeto “Era uma vez... Atividades intergeracionais”, que busca a aproximação entre idosos, estes na condição de narradores, e crianças por meio da literatura infanto juvenil. Nessa mesma área, o Sesc Santo Amaro, em São Paulo, promoveu em 2004 um concurso literário que, por meio da temática proposta, estimulou a reflexão de crianças e adolescentes sobre o envelhecimento e incentivou os mais velhos a pensarem nas gerações mais novas.
As áreas de fotografia e vídeo também foram contempladas com interessantes projetos. No Sesc Itaquera, em São Paulo, em 2004, uma oficina fotográfica propiciou, aos jovens que fotografaram idosos e aos idosos que fotografaram jovens, refletirem conjuntamente sobre suas representações acerca da outra geração. Houve um “antes” e um “depois”, isto é, as primeiras representações demonstravam desconhecimento e, por isso, continham um olhar equivocado. Após, as imagens já evidenciavam um maior conhecimento do outro e, portanto, uma ideia mais realista a respeito da outra geração.
No mesmo ano, o Sesc Pompéia, em São Paulo, realizou uma oficina de vídeo em que adolescentes montaram uma produção sobre o “Amor na terceira idade”, ao passo que os idosos retrataram o “Amor na adolescência”, atividade que gerou uma riquíssima discussão. Nela, os adolescentes tiveram a oportunidade de superar a visão estereotipada de uma velhice não desejante e assexuada. Na mesma linha temática, essa mesma unidade do Sesc promoveu outra oficina sobre moda, assunto que ensejou a reflexão de idosas e moças adolescentes sobre as transformações de seus corpos e dos preconceitos e constragimentos a eles relacionados.
Um projeto de longa duração aconteceu no Sesc Taubaté, em São Paulo, em 2004. “Um caipira no cinema” versou sobre a obra e a vida do cineasta Mazzaropi1 e foi composto por contação de histórias, atividades de teatro, cinema e vídeo, ao longo de 11 meses, envolvendo crianças, adolescentes e idosos. A extensa duração da experiência propiciou muitas trocas entre os participantes.
Outro original projeto multimídia teve lugar no Sesc Consolação, em São Paulo, no mesmo ano: “Coletor de imagens”, um videodocumentário sobre a memória do bairro de Vila Buarque, elaborado por jovens e velhos com base na exposição de fotos e outros objetos de moradores dessa região da capital paulista. O grupo percorreu as ruas do bairro munido de um carro com alto-falantes, convidando a população a participar emprestando fotos e objetos pessoais que contassem histórias de vida para a montagem de uma exposição.
Mais recentemente, no Sesc Pompéia, também na capital paulista, idosos e adolescentes há cerca de 3 anos vêm desenvolvendo o Trilhos e trilhas, projeto multimídia envolvendo teatro, memória cultural, meios de comunicação como jornal e vídeo. Vínculos fraternos e aquisição de conhecimentos são os principais resultados conquistados pelos participantes.
A breve menção a alguns projetos intergeracionais creio que permite visualizar a ampla dimensão de horizontes possíveis para o estabelecimento de relações entre pessoas de diferentes idades sem relação de parentesco, num contexto simultaneamente lúdico e educativo. As instituições de lazer podem ser uma alternativa de espaço compartilhado também pelos membros de um grupo familiar. Por exemplo: para o encontro entre pais e filhos fora do ambiente doméstico. E, historicamente, entidades como o Sesc recebem muitas famílias nas férias ou nos finais de semana.
O sucesso alcançado pelo Seminário Encontro de Gerações, promovido pelo Sesc São Paulo em 2010, espelha o crescente interesse pelos estudos e programas intergeracionais no Brasil. Além das conferências internacionais e dos relatos de trabalho de instituições brasileiras que demonstraram a evolução do campo intergeracional em nosso país, um dado auspicioso foi a disposição de profissionais brasileiros de trocarem sistematicamente informações por meio da formação de uma rede de trabalho, a exemplo de algumas já existentes, unindo profissionais de diversos países, como a Red Intergeneracional (http://www.redintergeneracional.es), criada em 2005 pelo IMSERSO, órgão de governo da Espanha.
A proliferação de projetos intergeracionais nas áreas do lazer, da cultura e do voluntariado pode corresponder a uma tendência crescente de aproximação (ou de reaproximação, se quisermos, considerando o modus vivendi do passado) entre as gerações. Tais iniciativas baseiam-se na riqueza das trocas afetivas e de experiências entre jovens e idosos. Essas experiências de aproximação entre mais jovens e mais velhos, ou seja, entre gerações diferentes, têm apontado um caminho interessante para o arrefecimento do preconceito etário. É possível que visões reciprocamente estereotipadas possam se dissipar por intermédio do convívio.
Em nossa experiência, constatamos que idosos que tiveram a oportunidade de desenvolver atividades com adolescentes passaram a vê-los como pessoas capazes e responsáveis. Por seu lado, os adolescentes constataram a capacidade de realização dos idosos, ao invés de considerá-los seres decadentes. Uma admiração mútua ocorreu em determinados encontros. Relembro uma das condições que penso ser indispensável para um resultado assim tão bem-sucedido: a do igualitarismo, condição sem qualquer forma de opressão, de autoritarismo. Ecléa Bosi traduz muito bem o que quero expressar a respeito, ao nos ensinar: “Quando duas culturas se defrontam, não como predador e presa, mas como diferentes formas de existir, uma é para a outra como uma revelação” (BOSI, 2003, p. 175). Uma revelação é algo que nos acrescenta, que nos modifica, mas sem imposição porque nos dá a oportunidade de incorporarmos os novos conhecimentos ao nosso universo cultural sem destruí-lo.
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