Postado em 29/07/2010
JOSÉ STERZA JUSTO
ADRIANO DA SILVA ROZENDO
MARIELE RODRIGUES CORREA
Ao se falar da velhice, hoje, é lugar-comum se evocar o estiramento da longevidade e o aumento da proporção dos mais velhos na pirâmide populacional como indicadores do peso e da importância desse segmento no cenário social. Indubitavelmente, o aumento da proporção dos mais velhos na pirâmide populacional foi o fato desencadeante da visibilidade social da velhice, mas o impacto maior dessa alteração demográfica são as mudanças qualitativas que inevitavelmente desencadeiam.
Mais do que um contingente populacional que passa a onerar o sistema previdenciário, os serviços de saúde e outros setores da sociedade e do Estado, a ascensão dos mais velhos traz outra forma de olhar a vida e o mundo, outras práticas sociais, ritmos, valores, crenças, simbologias que modificam profundamente a cultura, a economia, a política e demais dimensões da sociedade. O Brasil, um país habituado e se ver e a agir como jovem, seguramente sofrerá um impacto profundo dessa inevitável revisão de si com a infiltração no seu interior de imagens ligadas à velhice, sejam elas quais forem.
O país que se via como jovem, e por isso mesmo se representava como país do futuro, da vitalidade, do dinamismo, da criatividade e assim por diante, terá agora de assimilar outras características e imagens trazidas pelo espectro do seu envelhecimento. Terá de integrar a velhice como parte de seu retrato, como parte do delineamento de suas feições e como partícipe da construção de seu destino. De bom grado ou não, a cultura brasileira terá de incluir a figura do idoso no cenário do protagonismo social, até então dominado pela personagem do jovem. Esta é a discussão que pretendemos realizar aqui: focalizar as implicações da inserção dos mais velhos como atores sociais.
Para levar adiante o propósito deste artigo e discutir o papel e a função social do idoso na atualidade, vamos operar com o conceito de protagonismo, bastante utilizado ultimamente em substituição à noção de sujeito. Por que protagonismo e não subjetivação ou outro conceito que permita pensar o idoso como parte ativa do processo social?
Protagonista e protagonismo são palavras comumente utilizadas no campo da literatura, empregadas para se referir a personagens de uma história e que são responsáveis pelo desenrolar do enredo. No campo das Ciências Sociais, essa palavra tem sido usada como uma variante do termo “sujeito” para designar grupos ou conjuntos de atores que desencadeiam ações, que se colocam ativamente na construção da história (MINAYO, 2001).
A própria expressão “atores sociais” está sendo amplamente usada também no lugar do antigo “sujeito”, numa referência clara ao entendimento de que a sociedade se caracteriza como um cenário de acontecimentos parecido com o de uma peça de teatro. Essa linguagem que tende a tomar emprestados alguns termos das artes dramáticas e da literatura não o faz por acaso. Pertence a teorias do campo da Sociologia ou da Psicologia que privilegiam a linguagem e a narrativa na constituição do homem e do seu mundo.
O construcionismo social pode ser tomado como exemplo dessas epistemologias que colocam a linguagem e a produção de sentido no centro da mundanalidade (GERGEN, 1982). Dessa perspectiva, a realidade como algo independente e apartado do homem falante, se existe, não pode ser conhecida. O homem não mantém contato direto com as coisas que o afetam ou com uma realidade extralinguística. O homem é investido e revestido pela linguagem de tal forma que seu contato com as coisas é um contato inevitavelmente mediado pela linguagem. Tal como enfatiza Merleau-Ponty (1999), até mesmo a mais elementar percepção vem acompanhada de significação, sem a qual o objeto não seria recortado e discriminado de um conjunto indiferenciado de coisas, como tal incapaz de ser capturado pelos órgãos do sentido.
O organismo, portanto, não age e reage aos estímulos que chegam a ele com suas propriedades físicas, mas sim reage ao sentido e o sentido depende da relação estabelecida entre ambos. Alegoricamente poderíamos dizer que o homem reage à conotação das coisas e não à sua denotação, ou seja, o homem é, sobretudo, o ser da subjetividade, esta entendida como um processo de apreensão, elaboração e devolução daquilo que transita no seu relacionamento com as coisas ou com os outros.
O universo do homem, como universo de signos ou da linguagem, coloca como tarefa primordial a organização das palavras no tempo e no espaço – base fundamental da experiência humana –, ou seja, a produção de narrativas. As palavras dispostas no tempo e no espaço, dentro das convenções de uma língua, formam as narrativas pelas quais o homem se apreende como tal e apreende seu mundo.
Os mitos antigos são os exemplos maiores de grandes narrativas que davam inteligibilidade ao próprio homem e ao seu mundo. Formavam a base do conhecimento, transmitida de geração em geração e preservada como fonte primordial de orientação dos povos no seu tempo e espaço, sem a qual a vida não seria possível.
Tal como enfatizam Goolishian & Anderson (1996), constituímo-nos e habitamos um mundo de narrativas, de histórias que nos dão a referência de quem somos, de nosso passado, nosso presente e nosso futuro. Segundo o autor, apreendemo-nos pelas histórias que contam sobre nós e pelas histórias que nós mesmos registramos em nossas vidas. A convivência com outros os inclui como participantes de nossas histórias, das narrativas sobre nós, da mesma forma que participamos das narrativas constitutivas dos outros.
Podemos pensar a vida como uma história, à semelhança dessas criadas pelos escritores em seus romances ou até mesmo daquelas criadas por diretores de novelas de televisão. Estamos no mundo como personagens de uma grande história, como atores de um drama ou de uma trama. Existem aqueles, tal como o diretor, que detêm um grande poder de escrever ou determinar o enredo, outros que podem exercer alguma influência e quem ocupa, na trama, o mero lugar de figurante.
A noção de protagonismo surge como consequência do entendimento do mundo como construído na produção de sentido que emerge das relações sociais estabelecidas nos enredos e nas narrativas que os homens vão construindo ao longo de suas vidas. O mundo, como grande cenário de acontecimentos que ora se tangenciam, ora se cruzam e ora se compõem numa grande narrativa – como a de uma revolução –, ganha mais sustentabilidade quando o relacionamos com a crescente presença das mídias na atualidade.
As narrativas são criadas e circulam com grande facilidade na chamada “sociedade da informação”, impulsionada pela sofisticação das tecnologias de comunicação. As mídias crescem em escaladas vertiginosas, interligando praticamente todo o planeta em tempo real; a produção de linguagem e a produção simbólica expandem-se abruptamente multiplicando e diversificando suas fontes.
A cultura é fortemente afetada pela explosão das tecnologias de produção e difusão simbólicas. As fronteiras da arte são profundamente abaladas e os polos de produção de sentido são descentralizados e pulverizados. Pela internet todos podem veicular suas criações de qualquer natureza (músicas, vídeos, performances, desenhos e outras), muitos conseguindo alguma notoriedade pelo número de acessos.
A visibilidade é o fundamento do sujeito, por isso mesmo a celebridade, como assinala Bauman (2007), é a expressão maior do sujeito contemporâneo. Neste mundo midiático-espetacularizado, podemos nos situar como coadjuvantes, figurantes, submetidos ao enredo dado, ou podemos tentar, como protagonistas, participar da narrativa, da construção da história ou do seu desenrolar.
O protagonismo social pressupõe que o ator não é capaz de atuar ou desempenhar seu papel sozinho (MACÊDO e BONFIM, 2003). Ele precisa dos outros para contracenar. Criar um papel ou imprimir alguma singularidade a um papel já dado caracteriza o protagonista, não como personagem principal, mas como aquele que, com outros protagonistas, é capaz de agir sobre a narrativa e dar a ela uma direção a partir do lugar e da função que ocupa na história.
Aquela imagem do idoso trancafiado em um asilo ou recluso nos espaços domésticos, às vezes sendo até escondido pelos familiares, está cedendo lugar para outras imagens, nas quais os idosos aparecem nas ruas, no comércio, nos clubes, salões de dança, em caminhadas, academias de ginástica, excursões, viagens de turismo, nas universidades abertas à Terceira Idade e em tantos outros lugares.
O aumento da proporção de idosos já é notado nos espaços públicos e nas famílias. A visibilidade está avançando rapidamente nos mais diferentes espaços sociais, até mesmo naqueles antes completamente vetados aos mais velhos, como o popular programa de televisão Big Brother Brasil. As políticas públicas e os programas de atenção voltados para os idosos são outra importante mostra da visibilidade adquirida pelos longevos. O Estatuto do Idoso é mais uma demonstração do reconhecimento social da necessidade de se retirar os idosos do limbo, do esquecimento e do silêncio e dar a eles uma condição social mais justa.
A visibilidade e o envelhecimento da população abrem possibilidades para que os idosos não sejam vistos e tratados como personagens secundários, necessitados de apoio, ajuda e complacência, mas para que se insurjam como protagonistas, como personagens capazes de exercer autonomamente papéis no cenário social e nos enredos que aí se desenrolam.
Passos importantes estão sendo dados para que os idosos venham a ocupar um lugar de destaque na sociedade. A saída da casa para a rua e o desvio dos asilos estão cada vez mais intensos. Dedicar-se aos afazeres domésticos e serem vovozinhos cuidando dos netos já não representam os ideais dos idosos. É possível localizar nas cidades lugares frequentados majoritariamente por idosos: associações, clubes e outras organizações que funcionam como espaço de encontro, de convivência e, eventualmente, de organização política.
No entanto, ainda resta muito para que a visibilidade e a presença dos idosos no teatro social se transforme em protagonismo. Ainda paira sobre eles uma atitude de benevolência e tolerância extremamente desqualificadora e despotencializadora. Tal atitude coloca-os no palco social como personagens agraciados por uma benevolência e caridade daqueles que comandam a cena, num autêntico processo de desculpabilização. O protagonismo social dos idosos é extremamente importante e necessário porque é nele que pode fluir, por mais paradoxal que possa parecer, uma crítica radical da sociedade e ações de mudança mais contundentes. Já foi o tempo em que os jovens queriam mudar o mundo e se sentiam com força para isso. Hoje, a juventude encontra-se não na oposição, mas sim na sustentação de todo o sistema econômico, social e político. Os jovens não representam mais uma força de mudança, ao contrário, estão tão aderidos que representam, isto sim, forças sociais conservadoras. Não foi à toa que uma ousada propaganda de sandálias, divulgada pela televisão em 2009 e brevemente retirada do ar, fez essa perspicaz inversão de papéis no diálogo entre uma avó e sua neta. A avó sugere à neta que deveria ser muito bom ficar com um formoso galã e a neta lhe responde que talvez nem tanto porque se casar com uma celebridade deve ter um alto preço. A avó, então, com ar de surpresa, diz para a neta que ela não estava se referindo a casamento, mas, sim, somente a fazer sexo!
Esse comercial de TV foi retirado do ar por protestos do público, que o considerou inapropriado por incentivar um liberalismo sexual a partir do conselho de uma senhora. Tal atitude do público mereceria um conhecimento melhor, pela suspeita de que talvez o desagrado não tenha sido provocado pela exaltação da sexualidade, mas justamente porque a exaltação partiu de um idoso, mais ainda, de uma senhora. Se fosse a jovem neta que tivesse proferido a frase escandalizadora talvez não tivesse provocado nenhuma reação, justamente porque a figura do jovem já não representa qualquer rebeldia ou, se subsiste algum resquício de rebeldia infundido aos jovens, já não representa qualquer ameaça. Os jovens encontram-se de mãos atadas pelo forte agenciamento do consumo, ou pela pressão da competitividade para a sobrevivência, expressa na disputa acirradíssima por um curso superior ou por um emprego. Eles não querem mais se confrontar, querem sim é entrar no frenesi das ofertas de prazer e das sensações extremas, num mundo que cultiva o excesso e a superação de limites.
No entanto, os idosos não assimilam com facilidade a lógica da aceleração do tempo, da efemeridade e do fugidio, incrustadas no consumismo, que tornam os personagens pas sageiros no palco, não lhes dando qualquer possibilidade de duração e permanência.
Os idosos não querem nem podem acompanhar a aceleração exacerbada do tempo na atualidade. Neste sentido, representam um poderoso freio para as pretensões da sociedade do consumo ou do mundo de produção toyotista. Apesar de toda a sedução do mercado que se pode observar nos idosos, sobretudo naqueles de mais idade, subsiste uma certa precaução com o endividamento e uma certa resistência ao consumo. Ainda vivem a lógica da poupança, da acumulação, da redução de gastos que traduz mais profundamente uma experiência do tempo e do espaço diferente da que está sendo disseminada. Apreciam a durabilidade das coisas e a permanência, demonstrando uma preferência por um tempo cadenciado e por um espaço que possa ser habitado como um lugar, no qual seja possível fincar algumas raízes e produzir fixação ou se criar territórios identitários.
A recusa à compressão do tempo e do espaço, que torna a vida acelerada e desterritorializada, talvez seja angustiante para os idosos porque não viveram assim na infância e na adolescência, mas, mais ainda, pelo temor diante da percepção da iminência da morte. Para quem a morte se aproxima não interessa acelerar o tempo, nem se expor aos perigos da transumância ou dos deslocamentos constantes de um lugar a outro.
Entre tantas outras subversões possíveis de se imaginar pela via do protagonismo dos idosos, a subversão da experiência do tempo e do espaço, tal como está dada na atualidade, é a mais contundente e radical. Somente deles pode partir o brado da bandeira da desaceleração do tempo e da identitarização do espaço, fundamental para a retomada das rédeas da vida e do mundo. O protagonismo social precisa tomar como foco o controle do tempo e do espaço considerando que o poder, hoje, reside no controle dessas duas dimensões básicas da vida e do homem, como enfatiza Virilio (1993, 1996).
As possibilidades de exercer o protagonismo social pelos idosos, além das que foram enumeradas, também passam pela questão jurídica, na garantia da exequibilidade de leis já instituídas e na luta e participação para garantia de outros direitos, tal como será discorrido adiante.
Assim como o “protagonismo”, o tema “controle social” tem sido bastante abordado por vários pesquisadores das Ciências Sociais no Brasil, principalmente ao tratarem da democracia. As Ciências Sociais definem o termo “controle social” como participação da sociedade na formulação, no acompanhamento e na verificação das políticas públicas (STOTZ, 2006; ANDRADE, 2007). O assunto também entrou na agenda do Estado, sendo destacado como tema principal da VII Conferência Nacional de Assistêcia Social, realizada no período de 30 de novembro a 3 dezembro de 2009 em Brasília, intitulada “Participação e Controle Social no Sistema Único de Assistência Social”.
Dentro da abrangente temática “controle social”, os conselhos surgem como o principal canal democrático para o exercício da democracia, da cidadania, do protagonismo e da participação social. De acordo com Luz (2000), o controle social do cidadão ficou garantido por meio de sua participação nos conselhos, nas diferentes esferas da administração pública. Segundo Andrade (2007), os conselhos passaram a representar uma nova forma de interação entre Estado e Sociedade Civil, atendendo a “uma antiga demanda dos movimentos sociais que lutaram durante os anos de 1970 pela restituição dos direitos civis e políticos, pela ampliação dos direitos sociais e pelo direito de participar na administração da sociedade” (ANDRADE, 2007, p. 16). Na atualidade, os conselhos, tal como os Conselhos do Idoso, são compreendidos como espaços de democracia alternativos aos da representação formal que ganham crescente legitimidade pelo potencial de aumentar a transparência da gestão das políticas sociais (ANDRADE, 2007).
O Conselho Nacional do Idoso foi criado pela Lei Federal no 8.842, de 4 de janeiro de 1994, intitulada Política Nacional do Idoso – PNI. A referida lei, entre outras providências, estabeleceu diretrizes sobre a composição dos Conselhos do Idoso em todas as esferas da administração pública:
Art. 6o - Os conselhos nacional, estaduais, do Distrito Federal e municipais do idoso serão órgãos permanentes, paritários e deliberativos, compostos por igual número de representantes dos órgãos e entidades públicos e de organizações representativas da sociedade civil ligadas à área. (BRASIL, 1994)
A composição dos Conselhos do Idoso, dada pela PNI, é um bom objeto de análise. Como se pode observar no artigo 60, assim como nos demais artigos da PNI, não há menção, ou garantia, acerca da participação dos próprios idosos nos Conselhos em questão. Seguindo as diretrizes da PNI, os referidos Conselhos acabam se constituindo como órgãos de gestão da velhice, de controle sobre ela e de tantas outras possibilidades que não coadunam com o significado do termo “controle social”, proposto pelas Ciências Sociais, que deveriam ser efetivados nos Conselhos do Idoso.
Ao excluir os mais velhos da gestão dos seus próprios interesses, deixando-os de fora dos Conselhos do Idoso, o Estado acabou revelando sua subestimação das idades avançadas da vida, enxergando-as como limitadas e dependentes, relegando-as a passividade e resignação.
Alguns Conselhos do Idoso criaram seu próprio regimento interno e passaram a criar cotas para garantir a participação de longevos, como é o caso do Conselho Estadual do Idoso de São Paulo. Todavia, essas reservas, na prática, muitas vezes acabam sendo ocupadas por idosos representantes das classes dominantes, ou ainda por membros de instituições e órgãos públicos diretamente envolvidos na prestação de serviços. Muitos desses conselheiros, apesar de idosos, privilegiam interesses pessoais e/ou institucionais em detrimento de interesses da população idosa em geral. Desse modo, a participação dos mais velhos nos Conselhos do idoso, quando raramente ocorre, acaba sendo motivada e determinada por fatores sociopolítico-econômicos.
Outro problema, em relação aos Conselhos do Idoso, foi abordado por Andrade (2007). Segundo a autora, a criação de espaços participativos por iniciativa do governo tem originado diversas críticas, por serem espaços criados de cima para baixo, chamados de invited spaces (espaços a convite). Com isso, existe o risco de excessiva burocratização da participação nesses espaços assim como o risco de deslegitimação de outros espaços participativos espontaneamente criados por dada comunidade (ANDRADE, 2007, p. 38). Talvez a criação de espaços espontâneos e independentes, como aponta a autora, sem intervenção política ou estatal, seja a garantia mais viável para o exercício da cidadania e do controle social pela Terceira Idade. Assim, poderíamos começar a construir novas formas de protagonismo com os próprios idosos ocupando a agenda de discussões e reivindicações coletivas da categoria, atuando como atores políticos no cenário social.
O Estatuto do Idoso, Lei no 10.741, de 1 de outubro de 2003, assume um papel fundamental na maneira como a velhice é tratada e vista na sociedade brasileira. A pesquisadora Anita Neri publicou, em 2005, na revista A Terceira Idade, o artigo, intitulado “As políticas de atendimento aos direitos da pessoa idosa expressas no Estatuto do Idoso”. Nesse trabalho, Neri fez um amplo levantamento histórico das políticas públicas para idosos no Brasil, mapeando concepções “negativas” sobre a velhice, no passado e no presente, na figura do Estatuto.
A fim de mapearmos as formas de participação e o protagonismo social nas idades avançadas da vida, realizaremos uma breve análise do Estatuto do Idoso. Para realizarmos a tarefa proposta, fomos buscar, na referida legislação, palavras e termos que tratassem do assunto em questão.
Apesar de a palavra “protagonismo” não ser mencionada no Estatuto do Idoso, a prática do protagonismo pode ser considerada garantida pelo Artigo 10:
Art. 10 - É obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis. (BRASIL, 2003)
Já a palavra “participação”, que poderia ser considerada homóloga ao termo “protagonismo”, foi bastante utilizada no Estatuto, conforme destacamos a seguir: participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações (Art. 3, inciso IV); participação na vida familiar e comunitária e participação na vida política, na forma da lei (Art. 10, inciso V e VI; Art. 49, inciso VI); participação dos idosos em atividades culturais e de lazer – mediante descontos de pelo menos cinquenta por cento nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer, bem como o acesso preferencial aos respectivos locais (Art. 23); participação do idoso no custeio de entidade de atendimento, de no máximo setenta por cento do valor total de qualquer benefício recebido pelo idoso (Art. 35, parágrafos 1o e 2o) (BRASIL, 2003).
Como podemos observar, nos trechos acima extraídos do Estatuto, o termo “participação”, na maioria de suas ocorrências, tem um caráter de cuidado e proteção. A participação do idoso na vida familiar e comunitária, no convívio com as demais gerações, em atividades de lazer e culturais com descontos nos ingressos e acesso preferencial, ou a participação do idoso asilado nos custos da instituição. Estas concepções de participação denotam uma velhice bastante limitada, digna de cuidados e de tutela.
É certo que devemos celebrar as muitas conquistas assinaladas no Estatuto do Idoso. No entanto, muitas vezes essa legislação acaba por tolher e minimizar a participação e o controle social dos idosos, invertendo a lógica democrática que a fundamenta. O Estado, por intermédio do Estatuto do Idoso, pretende, assim, exercer o controle sobre os longevos mediante a tutela e a propagação de concepções da velhice como uma fase da vida bastante fragilizada e dependente.
Conclusão
No desenrolar da existência humana, somos incitados a nos desenvolver, a adquirirmos independência física e econômica, a tomarmos as rédeas de nossa própria vida e importantes decisões, seja no âmbito pessoal ou coletivo. Tudo isso faz parte de um projeto de construção da subjetividade e do tornar-se sujeito.
No entanto, percebemos que, na atualidade, essa mesma sociedade que nos incita a sermos protagonistas de nossas próprias histórias acaba, muitas vezes, por nos atribuir o papel de personagens secundários. Isso acontece quando delegamos ao outro o poder de tomar as decisões por nós, ou quando nos omitimos diante de importantes questões sociais e também pessoais, ou, ainda, quando um personagem ou uma classe se sobrepõe à outra.
É certo que, ao vivermos em sociedade, devemos aprender a respeitar e conviver com diferentes papéis e protagonistas do cenário social. Mas em muitas situações esse ideário de existência e convivência deixa a desejar. No caso dos idosos, essa questão é bastante elucidativa.
Hoje, assistimos a um momento muito singular na história de nosso país, com o crescente envelhecimento da população. No cenário atual, temos a forte presença de atores sociais idosos, contribuindo com o fortalecimento da economia brasileira, com a renda familiar, participando no mercado de trabalho e em Conselhos municipais, atuando em programas e atividades para essa faixa etária e contribuindo em tantas outras situações.
A Terceira Idade entra em cena e começa a mostrar suas múltiplas faces e papéis. Mas precisamos, ainda, escutar mais a voz desses atores sociais, que protagonizaram tantas histórias de vida imersas na vivência do tempo.
Hoje, é tempo propício para inaugurar não uma simples “idade de ouro da velhice”, mas para abrir espaço para o palco da vida onde caiba a subversão da velocidade dos dias atuais, a participação ativa no cenário das preocupações sociais do momento, a possibilidade de experimentar diferentes formas de envelhecer, desde as mais arrojadas até, por que não, as mais comezinhas...
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