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A paisagem em que vivemos

Postado em 01/05/2000

A arte de aliar estética e recuperação ambiental, em palestra do arquiteto Fernando  Chacel

Reprodução da exposição e do debate sob o tema "Ecogênese como fator de identidade da paisagem", realizados no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac no dia 9 de dezembro de 1999

FERNANDO CHACEL – Todos nós estamos inseridos numa paisagem, que é um patrimônio, uma herança constituída basicamente pela conjuntura geográfica, histórica e cultural de cada país, onde, da superposição dos fatos da natureza e dos homens, surgem tessituras diferenciadas: de um lado, restos de paisagens naturais ameaçadas e, de outro, um complexo mosaico de paisagens culturais com maior ou menor grau de transformação em função do acúmulo de implantações tecnológicas. Dentro dessa ordem de idéias, eu me permitiria afirmar que a grande busca seria o equilíbrio entre as paisagens cultural e natural. E hoje em dia essa é uma das grandes preocupações, sobretudo daqueles que defendem o desenvolvimento sustentável.

Evidentemente o desenvolvimento sustentável tem várias facetas e interpretações em função de ideologias e interesses, e eu diria que deve haver controvérsias mesmo nas organizações não-governamentais ecológicas. De passagem, posso citar duas delas que acredito que tenham posturas diferentes. Imagino que as posições defendidas pela ONG de Israel Klabin em relação ao meio ambiente não sejam as mesmas da ONG do poeta Gilberto Gil. Só por aí a gente já começa a ver a dificuldade de definir realmente o que é esse desenvolvimento sustentável. Acredito, no entanto, que a difícil tarefa de conciliar de maneira racional ações desenvolvimentistas e preservacionistas passará certamente por um processo de planejamento, onde haverá de se incluir novos parâmetros, ou não tão novos assim, porque são idéias dos anos 70, de um grande planejador escocês radicado nos Estados Unidos, Ian McHarg. Ele escreveu um livro que é uma espécie de bíblia dos planejadores ambientais e dos paisagistas que trabalham em grande escala. Foi justamente no Design with nature, um livro muito interessante editado pelo Museu de História Natural de Nova York, que ele chamou a atenção para a importância de inserir no planejamento e nos estudos clássicos de viabilidade físico-financeira novos parâmetros que considerem tanto a parte biótica quanto a social, e que esses novos parâmetros tenham tanta importância quanto os outros já cultuados dentro do processo de estudo de viabilidade de qualquer empreendimento.

Naturalmente há também a questão da legislação. A brasileira (embora extremamente complicada, com uma superposição pouco desejável das legislações federal, estaduais e municipais) é uma das mais bem elaboradas que conheço. Isso se deve ao trabalho muito fecundo de um eminente paulista chamado Paulo Nogueira Neto, o qual foi chamado a implantar, em 1974, a Secretaria do Meio Ambiente (ver Problemas Brasileiros no 329). Devo dizer que não foi tarefa fácil, pois estávamos em plena ditadura, e a doutrina que norteava todos os princípios era a do desenvolvimento e da segurança nacional. Depois que Nogueira Neto assumiu, fui visitá-lo uma vez. Encontrei uma sala bem pequena, onde, além dele, trabalhava apenas uma secretária. Naquela época, o governo criou a secretaria como uma resposta à Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada em 1972 em Estocolmo, mas não havia real interesse pelas questões ambientais. Tanto é que o Brasil só veio a ter uma política ambiental definida em 1986.

Paulo Nogueira Neto, por sua vez, foi trabalhando em silêncio, cuidadosamente, e a cada dia esboçava uma lei, um decreto, e com isso foi montando uma estrutura, um arcabouço muito importante de legislação ambiental. É evidente que se trata de uma legislação complexa, às vezes de difícil interpretação, porque existem muitos mitos, muitos prejulgamentos, e por vezes há pouca base técnico-científica nas discussões, além de posições de certa forma ortodoxas, provenientes de visões até um pouco acadêmicas do problema. Tanto que o diálogo não é fácil entre os órgãos licenciadores, as organizações ambientais, a iniciativa privada e os próprios profissionais que trabalham na área. De qualquer maneira, apesar de todas as dificuldades, esse foi um grande serviço prestado ao país.

Hoje acho que estamos começando a caminhar rumo a uma série de soluções, que passam primeiramente pela legislação ambiental, dentro da qual foi instituído um ferramental muito importante, que nem sempre é visto com bons olhos, constituído pelos Estudos de Impacto Ambiental, pelos Relatórios de Impacto de Meio Ambiente e, ao lado disso, pelas Áreas de Proteção Ambiental (APA). Estas costumam causar um certo frisson em quem possui grandes porções de terra, porque são as únicas unidades de conservação em que o poder público não é obrigado a fazer desapropriação. Quer dizer, ele pode criar uma APA sem investir nada nela. Se há interesse paisagístico ou ecológico numa área, o poder público pode simplesmente decretar uma APA. Por outro lado, a gente vê muitas vezes que há grandes benefícios não apenas sob os pontos de vista ecológico e paisagístico, que são importantes, mas também sob a perspectiva empresarial, na criação de novas fórmulas que representam grandes possibilidades dentro de um mercado às vezes já saturado, com modelos cansados. Hoje, o que se verifica é que o gesto paisagístico tem de vir impregnado de intenções ecológicas, de medidas compensatórias em relação aos impactos causados por qualquer obra. Seja pequena, média ou grande, qualquer obra causa impacto na paisagem, modificando-a, e esse impacto pode ser positivo ou negativo. E a paisagem também não é única. Por exemplo, no Brasil temos domínios paisagísticos os mais diferenciados: a floresta Amazônica, a caatinga no nordeste, a floresta costeira, a mata atlântica, o cerrado – e estou falando só das paisagens naturais –, os campos do sul do país, a zona do Pantanal. Enfim, há uma diversidade fantástica de ecossistemas, que esperam por um gerenciamento correto, o qual pode trazer grandes dividendos para o Brasil. Se o país pretende realmente ter como uma de suas vocações o turismo no processo de desenvolvimento, aí está uma indústria a ser implementada.

Também é muito difícil para o arquiteto paisagista trabalhar em todos esses ecossistemas; por isso acredito na regionalização da profissão. Já trabalhei em várias dessas áreas, com equipes multidisciplinares, mas sou um paisagista do sistema vegetal atlântico, a mata atlântica da restinga e do manguezal. Nas outras posso trabalhar, desde que bem assessorado, mas vou ter dificuldades. Por isso acho que os estados devem investir na formação desse profissional, e não em nível de pós-graduação, mas de graduação. Infelizmente, não há na universidade a graduação do arquiteto paisagista. O que existe nos cursos de arquitetura, como em outros países, são alguns créditos na cadeira de paisagismo, mas isso é pouco, porque na realidade o arquiteto paisagista, que é um profissional de síntese, precisa ter conhecimento técnico-científico de várias áreas. Não vou fazer um discurso sobre o currículo do arquiteto paisagista, mas se olharmos a complexidade das paisagens naturais, e a isso somarmos a diversidade cultural brasileira, com suas diferenças sociais, veremos que o Brasil é um país muito diversificado e por isso mesmo tem uma paisagem extremamente complicada.

Quando se fala em paisagismo no Brasil, há uma figura maior que não podemos deixar de citar e de cultuar, que é Roberto Burle Marx. Vou me permitir voltar um pouco no tempo, aos anos 50, época em que fui aceito para integrar sua equipe como estagiário. Lembro-me de que minha primeira impressão, diante dos projetos e desenhos de Burle Marx, foi de fascínio pelas cores, formas e desenhos. Mas o tempo foi passando, e eu fui percebendo outras coisas no trabalho de Burle Marx: que por trás daquelas cores, daqueles desenhos caprichados, daquelas formas, existiam plantas, árvores, texturas, enfim, havia volumes, e que a composição dele para mim já começava a sair das duas dimensões para uma terceira. Mais do que isso, que a paisagem era o grande elemento onde ele iria colocar sua arte. Comecei a perceber como ele manejava os desenhos e que era necessário um conhecimento de botânica ligado à parte artística. Burle Marx, pintor de formação, era também botânico autodidata e possuía um fantástico domínio dessa área. Então fui começando a compreender o trabalho dele e que cada vez mais ele se voltava para a parte ecológica.

Dentro do nosso tema, vamos falar em ecogênese, idéia que impregnava as concepções de Burle Marx, e que ficou patente num de seus projetos mais importantes, feito há muitos anos, mas que infelizmente não se concretizou: o Parque de Araxá. Nesse trabalho, desenvolvido em conjunto com o botânico Mello Barreto, que ele considerava seu mestre em botânica, a proposta era exatamente representar os diversos domínios da paisagem brasileira. O parque teria cerrado, caatinga, uma amostra da mata amazônica, enfim, seria uma espécie de mostruário da paisagem brasileira. Evidentemente seriam utilizadas espécies autóctones, e eles trabalhariam em todos os seus estratos, não apenas na arborização mas também no estrato arbustivo e herbáceo, formando ambientes paisagísticos exatamente como eles aparecem na natureza. O que era isso? Era um processo de "recriação" da natureza. Para mim esse trabalho foi, dentro da obra de Burle Marx, aquele que já apresentaria uma grande relação com a ecologia. Infelizmente, não foi concluído, ou melhor, foi parcialmente implantado, e hoje se perdeu no Hotel de Araxá. Era um projeto caro e difícil. O hotel estava sendo construído para ser um grande cassino, e com a proibição do jogo tudo isso se perdeu. Hoje o Hotel de Araxá é uma espécie de elefante branco na paisagem mineira.

Falamos em ecogênese, e acho que essa idéia talvez seja uma das mais interessantes para explorarmos. É evidente que, quando se fala em ecogênese e recriação de paisagem, não podemos pensar que vamos recriar o ecossistema perdido. O ecossistema não se recria, porque, mesmo dentro de um processo de regeneração natural, hoje as situações de clima seriam certamente diferentes, porque temos condições mesológicas muito diversas das originais. Então a ecogênese, que é uma forma de recriação de paisagens, cria um ecossistema antrópico com base no ecossistema natural. Mas ela é forçosamente mais conciliatória e mais eficiente do que um simples trabalho de recuperação estética. É nesse sentido que gostaria de mostrar o que estamos fazendo na Barra da Tijuca.

Desde 1938, quando a Barra da Tijuca ainda estava dividida em glebas, a Fazenda da Restinga, que era propriedade de Salvador Correia de Sá e Benevides, se manteve intacta, porque havia a famosa Lei do Morgadio, que não permitia divisões. Pela lei, o morgado tinha obrigação de cuidar dos interesses da família até as últimas conseqüências. Porém, a partir da queda da lei, já começou a haver parcelamento da terra, promovido pelos herdeiros. Assim, da grande Fazenda da Restinga foram surgindo glebas, que se conservaram por muito tempo. Quem conhece bem o Rio de Janeiro deve se lembrar de como a Barra ainda era protegida, até 20, 25 anos atrás, devido ao acesso muito difícil. Nessa época a Barra da Tijuca era um grande mar de dunas, com lagoas intermináveis e manguezais, um lugar lindo, com uma paisagem extremamente agreste, selvagem, e era quase uma aventura andar por lá. Porém, de todas aquelas glebas, restaram apenas duas, as demais foram loteadas, parceladas e já estão ocupadas. Na Barra da Tijuca ocorreu talvez o maior boom imobiliário que já houve no Rio de Janeiro, e em cerca de 20 anos tudo aquilo se transformou de forma brutal, sem levar em conta a paisagem. Com isso, perdeu-se a oportunidade de criar algo muito especial, um exemplo único no mundo, onde se poderia tentar um modelo auto-sustentável e, mais do que isso, com um produto final paisagístico e arquitetônico de imenso valor, que, acredito, seria também um sucesso comercial muito grande.

A Barra da Tijuca esteve protegida até o momento em que o Departamento de Urbanismo abriu uma avenida, que foi chamada de auto-estrada Lagoa–Barra. Isso decorreu da mentalidade de uma época em que no Brasil a rodovia era vista como solução para quase tudo. O diretor do departamento adotou uma postura muito interessante e disse: "Vou fazer túneis e viadutos. Vou abrir uma grande planície e não sei o que vai acontecer, então tenho uma grande responsabilidade". Foi assim que ele chamou Lúcio Costa para fazer o projeto da Barra da Tijuca. Como havia relações muito fortes entre o mestre Lúcio e as idéias de Le Corbusier, houve certa tendência para a verticalização, com o propósito de liberar espaço. O que aconteceu foi que se perdeu o controle, e a Barra teve um crescimento brutal.

Qual foi o problema do modelo adotado? Uma vez criado um sistema altamente rodoviário, o automóvel passou a ser ao mesmo tempo herói e vilão. Herói porque não dá para viver sem automóvel na Barra da Tijuca, onde tudo é perto de carro e longe a pé, talvez porque o modelo, que lembra um pouco Brasília, tenha levado a isso. Então, o que era necessário? Áreas para deslocamento e, mais importante do que isso, estacionamento para os automóveis. Nesse sentido, as famílias da Barra, mesmo aquelas que não são as mais abastadas, em média chegam a ter quatro carros. Onde guardar? No subsolo. E o que acontece? Num empreendimento desse tipo, as garagens ficam sob lajes, e nesse processo não há como segurar a estrutura superficial da paisagem, que vai embora. Então as dunas, a vegetação, tudo foi desaparecendo.

No caso da gleba A, o processo de ocupação eliminou dunas, matas e restingas. Não estou dizendo que elas iriam permanecer, já que não se poderia deixar de ocupar essa área, mas apenas que o processo de urbanização foi extremamente violento. Hoje, discutir ecologia dentro de um modelo desses é praticamente impossível, embora existam áreas residuais onde se possam trabalhar intenções ecológicas. É o caso, por exemplo, do grande parque que foi criado, com 6 milhões de metros quadrados: o Parque Municipal Ecológico de Marapendi. Eu diria que essa área, em que metade é água e metade é terra, será o parque do milênio, uma espécie de floresta da Tijuca na zona litorânea e com flora do litoral, o que representa um grande ganho para a região.

O interessante é que Lúcio Costa foi o primeiro defensor dos manguezais. Como tinha visto que as garças ficavam dentro deles, concluiu que era onde faziam seus ninhos. O manguezal é muito mais do que local de ninho das garças, mas, de qualquer maneira, há mérito na visão de Lúcio Costa, que os defendeu. Depois eles foram protegidos por lei, amparados inclusive pela Carta Magna brasileira. E quase todos estão em muito bom estado, percebe-se que foram bastante preservados.

A gleba E, uma das últimas daquele tempo, fica na Barra Nova (fotos às págs. 2, 4 e 5). Esse também é um empreendimento imobiliário, residencial e comercial, que vai acontecer dentro de 1,2 milhão de metros quadrados, no qual 500 mil metros quadrados são de áreas verdes e com uma densidade relativamente baixa, de 250 habitantes por hectare, o que é bastante razoável para a Barra da Tijuca.

debate

 

Nota do Editor: as colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para serem respondidas de forma concentrada.

JOSUÉ MUSSALÉM – Fernando, seu currículo nos deixa a certeza de que estamos diante de um dos grandes paisagistas brasileiros, quem sabe latino-americanos, ainda que eu ache que a questão da formação acadêmica seja secundária nesse ponto. O próprio Burle Marx não tinha, pelo menos ao que me consta, uma formação de arquitetura ou qualquer outra de nível superior, e foi o grande paisagista do século 20. Isso demonstra que o que importa é o saber feito de experiência, o que, aliás, se aplica muito bem a você.

Gostaria também de falar sobre o domínio do conceito ecológico no mundo e no Brasil. De dez anos para cá a ecologia tomou fôlego, por uma questão de sobrevivência universal e acho que até por razões ideológicas. Essa discussão gerou várias organizações não-governamentais (ONGs), algumas de picaretas, como a gente diz lá no nordeste, outras sérias, criou vários tipos de ecólogos: o ecochato, o ecoburro, o ecossujo, pessoas que ficam brigando por ecologia sem saber o que é. E em Pernambuco existem muitas ONGs de defesa do meio ambiente, algumas, eu repito, sérias. Um amigo meu que estuda essa questão ideológica diz: "A esquerda está se voltando para a ecologia porque depois da queda do Muro de Berlim ficou sem discurso. Então, agora vai atazanar na parte ecológica, criando problemas para o desenvolvimento e assim por diante". Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso.

O Recife tem, como você sabe, restos de mata atlântica. Quando fui presidente de uma empresa de urbanização, Jaime Lerner e Cássio Taniguchi, hoje o governador do Paraná e o prefeito de Curitiba respectivamente, foram meus consultores, e eles me diziam que Recife tinha uma densidade ecológica ou paisagística muito pequena em relação a seus habitantes. Se você voar de helicóptero sobre Recife, verá uma grande mata na cidade, mas são apenas restos dos quintais patriarcais do século 19 nas casas, e não estão à disposição da sociedade.

Burle Marx, de quem você tanto falou, deu uma grande contribuição ao Recife, com projetos e conferências. Temos a Praça da Casa-Forte, de 1939, a Casa dos Jardins Dolores Salgado, que hoje pertence à Fundação Joaquim Nabuco, de 1940, os jardins da Companhia Energética de Pernambuco, do Centro de Convenções de Pernambuco e também do edifício-sede da Sudene. Então hoje temos uma boa lembrança de Burle Marx, o homem que ajudou o paisagismo do Recife.

Outro ponto que gostaria de levantar se refere aos jardins europeus. A Europa leva muito a sério a questão do paisagismo. Estive na Euroflora 96, realizada em Gênova, e lá um amigo que morou em Londres comentou que nessa cidade estão os melhores jardins da Europa, porque não são planejados. É o caso do parque St. James e do Hyde Park. Ele dizia não gostar dos jardins franceses, por serem planejados. Na minha opinião, o importante não é o fato de ser planejado ou natural, mas sim a área verde estar à disposição da sociedade.

E a pergunta final: o que faria a formação de um arquiteto ou de um paisagista no nordeste? Como você defendeu a regionalização, o que seria a formação de um paisagista numa zona seca ou semi-árida?

MALCOLM FOREST – Sou ambientalista e, como tal, estamos sempre frente a frente com a destruição, com problemas aparentemente sem solução. Mas comungo da opinião de que, mais do que defender a natureza, devemos lutar pela restauração. O Brasil é um país extremamente solar, essencialmente florestal, e essa é uma vocação natural. Acho inclusive que é um diferencial econômico, turístico e cultural muito forte, um tesouro que ainda não conseguimos explorar muito bem.

Havia em São Paulo, há alguns anos, um projeto chamado Floram, no qual trabalharam o professor Aziz Ab’Sáber e o doutor Mauro Victor, entre outros, que visava à aplicação dos excedentes de capital ou de recursos da Agenda 21 do Primeiro Mundo na restauração lato sensu da flora brasileira com essências nativas. Era um projeto concentrado, que envolveria todo o Brasil, mas infelizmente não prosperou. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso e também sobre como poderíamos agora clonar, expandir, promover e disseminar esse tipo de trabalho que o senhor faz por todo o Brasil com alguma estratégia, com a colaboração de todos. E se alguma idéia já existe nesse sentido, porque achei maravilhoso.

ARY ALBANO – Tenho até certa inveja, ao saber o que foi feito no Rio de Janeiro. Acho que a questão da paisagem urbana, da importância do meio ambiente nas metrópoles, não é acessória. Ainda hoje eu estava conversando com um engenheiro, e ele dizia: "A gente sobrevoa Londres e vê claramente que logo depois da cidade existe verde". Na região metropolitana de São Paulo não existe isso. Talvez por ter sido capital da República, o Rio possua maior tradição na área de urbanismo. O Departamento de Urbanismo da prefeitura do Rio de Janeiro foi chefiado, durante muito tempo, por Afonso Eduardo Reidy, um dos maiores arquitetos brasileiros. Em contrapartida, em São Paulo nosso departamento de urbanismo projetava sistemas viários, o que era um absurdo. O complexo de avenidas adotado por Prestes Maia, infelizmente, apesar das boas intenções, foi uma catástrofe, porque se baseou nos fundos de vales, que ficaram impermeabilizados, além de outros problemas criados por esse processo de urbanização. E no Rio de Janeiro sempre houve uma continuidade, pelo que sabemos e pelo que você contou. A administração tem se socorrido de pessoas competentes como você.

Há algum tempo ouvi, não sei se foi Marcelo Coelho, falar sobre os atentados à paisagem em São Paulo, que é um absurdo, um caos. A paisagem urbana é uma confusão tremenda, e existe uma comissão da paisagem urbana que é dominada pelos lobistas de outdoor. Comenta-se que um painel em áreas residenciais e em grandes avenidas chega a custar até R$ 250 mil. É o custo de um outdoor em áreas proibidas. Prosseguindo, ele dizia que talvez tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro tenham acontecido coisas tremendas devido à especulação imobiliária. Por exemplo, em Ipanema houve três processos de urbanização. Em São Paulo, onde existiram dificuldades maiores, jamais tivemos um projeto de recuperação como esse que aconteceu no Rio. Fala-se nas marginais, mas para se construir mais pistas, quando devíamos regular o uso do solo e tentar recuperar alguma coisa.

Por outro lado, no Rio de Janeiro a paisagem é tão exuberante que, a despeito dos desmandos de alguns administradores, o cidadão luta, tem consciência dessa paisagem. Os referenciais urbanos do Rio são da natureza, é uma coisa maravilhosa. Os de São Paulo são alguns prédios, é a verticalização, o que é uma pobreza, e o sítio natural da cidade não era assim. É que a mentalidade da administração pública em São Paulo tem sido provinciana. No Rio, Eduardo Reidy, como diretor de urbanismo durante mais de dez anos, criou uma escola. É mais ou menos o que está acontecendo em Curitiba com a área de planejamento.

Ao que parece (não sou expert no assunto), em termos de espécies, a mata atlântica tem uma biodiversidade muito maior do que a floresta Amazônica. E um dos poucos referenciais urbanos que ainda teríamos, a serra da Cantareira, está sendo comido pelas beiradas. Temos lido nos jornais sobre invasões estimuladas por políticos, por vereadores. Mas o Ministério Público está agindo. Recentemente administradores regionais, engenheiros, arquitetos e fiscais que compactuavam com isso foram indiciados. E o que aconteceu em São Paulo? No ano passado a enchente na Zona Leste foi a maior já ocorrida, mas este ano vai ser ainda pior. Por quê? Por causa do desmatamento das fraldas da serra. Magda Lombardo disse que, se a serra fosse toda desmatada, a Zona Leste ficaria inundada o verão todo. Ouvimos falar em obras contra a enchente. Mas e a prevenção? Por que o solo é impermeabilizado continuamente e se desmata? Este ano, mesmo com o piscinão que estão construindo em Aricanduva, a Zona Leste vai ficar inundada. E a gente não vê mudança de mentalidade, isso não é apresentado como um problema crucial da cidade; mas é, assim como transporte e habitação.

Gostaríamos de compartilhar a idéia de organizar um seminário e implantar a legislação que foi proposta da reserva da biosfera. E queríamos contar também com seu apoio e experiência, porque você conseguiu no Brasil uma coisa fantástica. Burle Marx foi um sujeito extraordinário, também fui discípulo dele, mas você fez mais, só em quantidade já fez mais. Somos considerados meio loucos, mas agora somos mais guerrilheiros urbanos, não estamos do lado da administração, pelo contrário, faço parte de movimentos que denunciam e criticam a administração, problemas como o da invasão de área de mananciais, etc., que são rotina.

Ontem, participei de uma reunião onde se discutia segurança com um candidato a prefeito num bairro de zona 1, na Zona Sul, Jardim Marajoara, Brooklin Velho. As pessoas eram muito politizadas e estavam lutando pela preservação de seus bairros. E com razão, porque se pretende até acabar com o zoneamento, para fazer prédios onde ainda não existem. Nessa reunião se falou em segurança, e alertei que não adianta centrar essa discussão nos bairros, porque o problema de segurança vem do processo de urbanização, e essa violência é gerada nas periferias. Então planos, projetos como o Viva o Centro não têm sentido, se não cuidarmos da periferia. E isso tem relação com a paisagem e com uma coisa que aconteceu em São Paulo e no Rio de Janeiro, que foi a omissão da classe média. No Rio, com a implantação do sistema viário, os desalojados subiram os morros e lá se instalaram.

FERNANDO – Primeiro vou falar sobre a formação profissional. Considero o autodidatismo a maneira mais difícil, mais penosa de formar um profissional. A formação universitária é um modo de ganhar tempo. Porém, a universidade precisa se rever, perder seus medos e se abrir, deixando de ser tão corporativista. É necessário que esteja mais ligada à sociedade, aos seus interesses, pois a verdade é que nossa universidade é extremamente fechada. Mas acho que é na graduação que se vai formar esse profissional. A pós-graduação já encontra o profissional formado em outra área; então, é preciso que haja graduação para o arquiteto paisagista. Não estou inventando essa profissão nem essa graduação, que existe desde o século 19. A primeira escola que graduou arquitetos paisagistas – o que é interessante, porque o título é arquiteto paisagista, mas a escola era de agronomia – ficava na Alemanha. Qualquer arquiteto, agrônomo ou geógrafo, qualquer profissional que trabalhe na área de paisagismo forçosamente tem de fazer uma revisão técnico-científica de sua atuação e formação, abandonando uma série de conceitos. Evidentemente, se você me perguntar se ser arquiteto me ajudou, ajudou muitíssimo, mas me faltou muita coisa, e tive que ir revendo uma série de posições, conceitos e até ideologias. Falando em ideologia, não creio que seja uma questão de esquerda ou de direita. O movimento ecológico, a ecologia, os problemas de trato com a natureza pós-industrial nem a esquerda nem a direita nunca levaram em conta.

MUSSALÉM – Não é levar em conta, Chacel, desculpe.

FERNANDO – Tanto a esquerda quanto a direita sempre trataram mal o meio ambiente. Para mim, o movimento ecológico é extremamente político, porém apartidário.

ISAAC jardanovski – Aliás, as maiores tragédias ecológicas ocorreram nos países socialistas, no Leste Europeu.

FERNANDO – Mussalém atribuiu uma série de adjetivos aos ecólogos, mas se esqueceu de incluir o ecocompetente.

Sobre a regionalização do profissional, eu a considero fundamental. Pode-se ter a metodologia, consultores de outros lugares que tragam uma série de informações, mas quem conhece a sua região é o próprio habitante, o nativo. Estamos falando do mesmo país, da mesma língua, mas de uma realidade paisagística, cultural e social bastante diferenciada. E é importante que equipes locais sejam formadas para poder lidar com isso. Nesse sentido, Mussalém indagou o que seria um paisagista formado no Recife. Acho que o paisagista do nordeste, de toda aquela região que envolve o semi-árido, a caatinga, a partir do momento em que o projeto paisagístico, por lei, foi elevado à categoria de ação mitigadora, tem de ser um gerente de recursos naturais, tem de trabalhar nesse sentido, buscando ações compensatórias de recuperação dos ecossistemas.

Quanto à cultura dos jardins europeus, discordo de seu amigo quando ele diz que os jardins de Londres não são planejados. São superplanejados. Em Londres, Sir Lancelot Brown, conhecido como Capability Brown, um profissional extremamente capaz, foi o autor de grandes projetos. E não só os jardins, mas toda a paisagem inglesa é planejada. Existe a Countryside Commission, que cuida da paisagem rural. É na Inglaterra que se vê a melhor fusão entre a paisagem rural e a periurbana, com as áreas de jardins dentro do tecido urbano. Eles controlam absolutamente tudo, planejam a paisagem até os últimos detalhes. É verdade também que lá a paisagem foi bastante destruída. Mas talvez exatamente por causa dessa destruição exista esse culto pela natureza construída, a cultura do jardim, do espaço verde. Nós ainda não temos isso, estamos formando. Acho que muita coisa já mudou, há reuniões das quais eu nem participaria dez anos atrás. Hoje há uma compreensão e uma busca de uma linguagem comum entre os profissionais de diferentes disciplinas. Há a busca de um trabalho interdisciplinar, sem o que não se pode fazer nada, porque todas as pessoas atuam na paisagem, não só o paisagista: o engenheiro, assim como o arquiteto, o agrônomo, o engenheiro florestal, o grande empreendedor, todos eles têm gestos em relação à paisagem. É importante buscar uma linguagem comum em que as pessoas se entendam, e isso é extremamente difícil. Então acredito nessa interdisciplinaridade.

Com relação ao nordeste, penso que o arquiteto paisagista tem de investir na própria graduação, pois pode importar metodologia, mas não solução. As soluções são locais. Acho que é fantástico você ter professores vindos de diversos países, que tragam experiências diferentes, mas não para trazer modelos da terra deles e tentar implantá-los aqui, porque não vão conseguir.

Ao Malcolm, quero dizer que considero muito importante a criação de uma sociedade florestal. Vamos falar não de ecologia, de defesa do meio ambiente, mas de sobrevivência de um estado. Nisso tenho uma experiência pessoal, com o estado do Acre, que é extremamente complexo. Lá existem seis bacias transversais, de seis rios com regimes de estação seca e chuvosa, cujas diferenças são enormes, com pequenos cursos de água que se transformam em rios caudalosos, o que é incontrolável. A prova é que, se você quiser ir de Rio Branco, capital, para Cruzeiro do Sul, não consegue utilizar a estrada existente. As ligações são muito mais com o Amazonas do que entre as cidades do próprio Acre. Se não cuidar de suas bacias hidrográficas, de suas florestas protetoras e não se preocupar em ver que tipo de produtos se pode extrair, que manejo se pode fazer nessas florestas, o estado estará fadado ao desaparecimento, porque o problema é muito sério. Essa é a razão por que não se desenvolveu. Se desmatar no Brasil é crime, no Acre é mais crime ainda, porque lá, mais do que da defesa do patrimônio, estamos falando da defesa da sobrevivência de um estado da federação.

Quando se mencionam reservas da biosfera, lembro-me do meu amigo José Pedro de Oliveira Costa, que batalha por essa questão em São Paulo. Mais do que uma unidade de conservação, a reserva da biosfera é uma experiência fantástica, um verdadeiro laboratório. É como uma Área de Proteção Ambiental, com um núcleo, uma zona de amortecimento e uma de transição, que é onde se instalam os projetos de desenvolvimento. Esse mix é que tem de ser estudado para ver como vai se sustentar. Acho que se devia encorajar muito esse processo de reservas da biosfera, que, infelizmente, existem só no papel, e na época da ditadura foram absolutamente proscritas, nem se podia tocar no assunto.

MALCOLM – O Brasil tem apenas três reservas da biosfera reconhecidas pela Unesco. Existem projetos, um dos quais estou liderando, de tombamento de toda a região da chapada Diamantina histórica como patrimônio cultural e ambiental da humanidade. Isso já está em franco andamento. O México tem 20 reservas da biosfera, e é a prioridade número um do Ministério do Turismo. É um assunto que afeta o desenvolvimento, não a defesa ambiental.

FERNANDO – Você veja, por exemplo, o Pantanal: existe lá um empreendimento hoteleiro modelar, ao qual ninguém consegue ir, a não ser os estrangeiros, porque fica superlotado o ano inteiro e a hospedagem custa uma fortuna. Na Amazônia também há alguns empreendimentos hoteleiros que utilizam passarelas e as copas das árvores, para fazer com que as pessoas se sintam na selva. Com o processo de globalização, essas paisagens vão ficando tão mais valiosas quanto escassas. Então é necessário saber como tirar partido disso. Tenho a impressão de que esses são os novos modelos do terceiro milênio, mas já estão sendo pensados agora, porque, na realidade, não podemos esquecer que todo projeto que mexe com a natureza, sobretudo de recuperação, precisa de tempo, possui uma quarta dimensão, que é a temporal.

MALCOLM – E quanto ao Floram?

FERNANDO – Esse é um projeto modelar, um exemplo a ser seguido. Foi feito por uma equipe extremamente competente e acho que precisava ser ressuscitado.

Com relação ao Rio de Janeiro e a São Paulo, quero só dizer que os processos de ocupação das duas cidades são absolutamente iguais. O que é a obstrução obstinada da paisagem. Um exemplo: estamos no espigão da Paulista, com uma vertente para lá e outra para cá, e o que vemos? Espigões, vertentes e vales tratados da mesma maneira, com uma uniformidade total, o que levou a essa descaracterização. A cidade se espalhou como uma imensa mancha de óleo, incontrolável, e acho que é justamente na periferia que se podem encontrar algumas soluções, para melhorar essa situação, com a instalação de sistemas de parques. Isso também acontece no Rio, onde estamos espremidos entre a montanha e o mar. Agora, na Barra da Tijuca, o modelo é exatamente igual ao de São Paulo, tal e qual. No Rio, desfiguramos o centro, derrubamos vários morros, como o do Castelo, o de Santo Antônio, tudo para ganhar terras ao mar. Felizmente, tivemos nesse ganho parques e não ocupações urbanas pesadas, mas o mar se afastou brutalmente. Veja o passeio público, que antes ficava junto ao mar. Se olharmos hoje, veremos que a distância entre o contato terra-água e o início do passeio público aumentou muito com o aterro.

Além dessas questões, temos um problema de explosão demográfica, tanto no Rio quanto em São Paulo, que são pólos de atração. E, como nosso país é desequilibrado, há uma corrida para as grandes metrópoles. Então, as mesmas pessoas que gritam pela proteção à natureza estão pedindo casa, hospital, escola, e é preciso que se construa tudo isso. Essa é a grande dificuldade. Por isso acho que devemos buscar soluções, e talvez a melhoria da paisagem da periferia possa ser uma solução para São Paulo. Lembro-me de um ilustre paulista que falou certa vez que São Paulo precisava parar, e acho que isso não foi entendido. A gente está vendo que as cidades do interior do estado estão florescendo e criando alguns pólos. Com isso, a cidade já tem melhorado.

Considero muito sério o problema da impermeabilização. No Rio, temos a água que desce das montanhas. É verdade que as montanhas, bem ou mal, ainda têm alguma proteção florestal, sobretudo nas zonas inacessíveis, que funciona como uma grande esponja, segurando a água. Todo gesto urbanístico provoca impermeabilização. Assim, se não deixarmos espaços permeáveis, começaremos a ter esses problemas, que se tenta resolver através de tecnologia cada vez mais complexa, com custos inimagináveis, chegando a um ponto em que não há mais retorno.

EDUARDO SILVA – Acho muito importante valorizar a figura do desenho, que é a nossa melhor linguagem. É a antevisão daquilo que realmente vai ser e a maneira mais eficaz de impressionar as pessoas. Não o desenho que representa algo impossível, mas simplesmente aquilo que vai ser. Então, em vez de nós, como arquitetos e engenheiros, só fazermos longos discursos sobre o "dever ser" das coisas, se pudéssemos mostrar como as coisas serão, através de nossa linguagem, seria muito mais fácil a arregimentação de apoios e o convencimento das pessoas.

Quero dizer também que as atividades de arquiteto, paisagista ou ecologista, hoje em dia, felizmente, já são consideradas uma espécie de pré-requisito para os projetos, e não mais apenas para a fase de acabamento. Acho que isso é um enriquecimento. De modo que minha visão é otimista, apesar de todo o alcance da devastação. Temos um potencial muito grande, não sei se de recuperação das áreas, mas de implantação correta dos novos projetos.

CLÁUDIO CONTADOR – Como evitar a redegradação? A área da Barra, parte da zona oeste do Rio de Janeiro, tem grande valorização imobiliária. Por mais que os atuais proprietários dessas áreas represervadas tenham interesse, certamente não podem garantir nada a respeito de seus sucessores e descendentes. Então essa é uma questão fundamental. Sua visão da Barra é muito romântica. O deslocamento lá é literalmente um inferno. E sempre fica a pergunta: por que o transporte coletivo é tão precário naquela região? Já existem várias propostas. Uma delas foi a do trem de levitação magnética, além de uma série de outras que não andam, não vão para a frente.

JOSEF BARAT – Eu queria fazer uma pergunta que está um pouco sintetizada na fotografia da página 10 da revista Problemas Brasileiros no 336. Essa foto retrata bem a contradição urbana brasileira, a dualidade riqueza e pobreza e ao mesmo tempo preservação e degradação. A Favela da Rocinha não existia há 40 anos. Houve até um episódio curioso na época, quando o então prefeito foi alertado para o fato de que havia a construção de alguns barracos nessa encosta, e não deu atenção ao problema, como não se dava de modo geral. Em menos de 40 anos ali surgiu a maior favela do país. Somos muito indulgentes quanto à degradação do meio ambiente que é provocada pela pobreza, até porque não há como controlá-la, e muito rigorosos quanto à preservação que poderia eventualmente ser feita pela ocupação da classe média ou classe média alta. É uma contradição da própria urbanização também. A pergunta que faço é a seguinte: há como recuperar o que foi devastado? Estamos entrando num outro século, essa paisagem da favela é recuperável a longo prazo? Há alguma coisa que possa ser feita no futuro em favor disso ou é uma causa perdida?

SAMUEL PFROMM NETTO – Devemos comemorar os 500 anos do descobrimento do Brasil ou prantear os cinco séculos de destruição da nossa terra? Há uns três ou quatro anos, percorríamos no Japão o belo Jardim Imperial de Tóquio, na companhia de um grupo de professores brasileiros. O passeio do jardim do imperador é recoberto de pedregulhos soltos, e um dos membros da nossa comitiva, acidentalmente, chutou um pedregulho, que caiu sobre a grama do jardim. Atrás de nosso grupo caminhava um ancião japonês, apoiado numa bengala, que se dirigiu ao ponto em que o pedregulho tinha caído sobre a grama, curvou-se, apanhou-o e o recolocou no passeio, no mesmo lugar em que se encontrava antes do chute acidental.

Esse episódio tão singelo, a meu ver, retrata um ponto que desejo ressaltar aqui e justifica minha indagação. Quero referir-me a esse amálgama de educação de um povo, com valores, com atitudes ligadas ao xintoísmo e ao budismo, com o respeito sacrossanto à vida em todas as suas manifestações: seres humanos, animais e vegetais. O que chamamos paisagem pertence por um lado à esfera da ação da natureza e mais nada, e por outro à ação do homem na perspectiva do que o Prêmio Nobel e psicólogo Herbert Simon denomina as ciências do artificial. Simon insiste muito em que o mundo em que vivemos é maciçamente artificial, sob todos os aspectos. Quando conduzida de modo inteligente, consciente e lúcido, a intervenção humana na paisagem vai desde a simples eliminação das ervas daninhas no jardim doméstico e o cultivo seletivo de flores, arbustos, árvores, etc., até macrointervenções como essas tão bonitas que você nos apresentou aqui na urbanização, no curso dos rios, na extensão do solo, em áreas até então ocupadas pelo mar e assim por diante. Transformamos pois artificialmente o globo terrestre. Construção e destruição acompanham a aventura da espécie humana desde a noite dos tempos. O problema, entretanto, surge quando pessoas ou conglomerados humanos ignaros, insensíveis ou totalmente alheios às conseqüências de suas ações nefastas intervêm de modo destrutivo na paisagem, seja de maneira declaradamente predatória, seja pela incorporação à paisagem de verdadeiros mostrengos, de insultos ao bom gosto e à consciência ecológica, de poluição visual com grafites, outdoors, faixas, placas, etc. com propósitos publicitários ou como simples manifestações de primarismo boçal.

Serão suficientes para mudar esse estado de coisas as doses homeopáticas da educação ecológica que viceja por aí? Ou, pelo contrário, urge ampliar e aprofundar muitíssimo mais na população como um todo e particularmente nas crianças e nos jovens conhecimentos, valores, atitudes, consciência ética, espiritualidade, cultura genuína da valorização do que é belo, do que é bom e do que é justo, lamentavelmente ausentes na formação de milhões de brasileiros? Bastam os cursos superiores de paisagismo? Ou, pelo contrário, é necessário promover uma educação paisagística generalizada, o preservacionismo, através de convicções e práticas ligadas ao respeito à vida a que eu me referia e sintetizadas no gesto tão humilde do frágil e idoso japonês que mencionei inicialmente?

O segundo ponto é quanto à regionalização da formação do especialista. Não lhe parece que há vantagens mas também riscos nessa postura, já que, nestes tempos de globalização e de Mercosul, quem se forma em São Paulo passa a trabalhar em Pernambuco e vice-versa? Quem acabou de se formar na USP está trabalhando agora no Canadá, e assim por diante. Aliás, a edição no 336 de Problemas Brasileiros traz a reportagem "Pátria distante", na qual informa que há 2 milhões de brasileiros trabalhando fora do Brasil. Não lhe parece, portanto, que é um tanto complicada essa proposta de limitarmos a formação profissional em paisagismo ou em outras áreas a uma versão regional? Ou, pelo contrário, é forçoso ampliá-la e aprofundá-la muito mais? Eu me refiro à formação básica, proporcionando assim uma base multiabrangente de conhecimentos e práticas que não perca de vista que esta é uma terra só.

MÁRIO AMATO – Penso que não adianta ser só acadêmico, é preciso que o profissional seja vibrante. Já dizia Bacon, em 1589 ou 1590, que a natureza não se vence senão quando se lhe obedece. Ela tem sido praticamente depredada pelos incultos, que a destroem em nome de suposta melhoria da condição de vida, causando verdadeiros desastres.

Também quero dizer que adoro São Paulo. Quando tomamos conhecimento de que só no mês passado mais de 30 mil migrantes entraram em São Paulo, sem eira nem beira, chegamos à conclusão de que, apesar de todos os defeitos, nossa metrópole tem a grande virtude de abrir o coração para todos os brasileiros, e parte de seu progresso vem exatamente dessa gente que convive conosco.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Minha preocupação é a seguinte: apesar de todo esse esforço, se não houver uma contrapartida, uma ação forte da autoridade, do poder, temo pelo insucesso de tudo o que se fizer. Dou apenas dois pequenos exemplos. As indústrias jogam esgoto em nossos rios, inviabilizando qualquer tipo de trabalho que vise à sua recuperação. Além disso, como conciliar os objetivos preservacionistas com o interesse das grandes empresas multinacionais, que poluem o pouco ar que ainda nos resta, e cujo perigo maior é o apavorante efeito estufa?

FERNANDO – Vamos começar pelo Eduardo. Evidentemente, o desenho é nossa ferramenta, um recurso para transmitir uma idéia. Só que esse desenho, além da representação, precisa ter coerência com essa idéia. O desenho só é bom quando tem esse conteúdo. Há grandes desenhistas, e também grandes faladores, com idéias brilhantes, mas que não conseguem materializá-las. Na realidade, o desenho é uma maneira eficiente que a gente tem de se expressar e de transmitir idéias aos outros. Essa transmissão é importante e nem sempre é fácil, porque, se você quer passar uma idéia e ser entendido, precisa dispor de um ferramental adequado, que pode ser a palavra ou o desenho. Mas o mais importante é que haja sempre coerência entre o que você desenha ou fala e o produto final.

Cláudio, você está preocupado, e com toda a razão, com a Barra da Tijuca. Se há um caso de perda de identidade arquitetônica e uma perda de identidade quase que da população, a Barra da Tijuca é um exemplo. Pode-se dizer que aquele lugar se transformou num amálgama de Miami com Las Vegas. Eu não diria que a culpa seja dos arquitetos, que têm tradição no Brasil. Quem foi à Bienal de Arquitetura de São Paulo pôde ver que essa tradição permanece, não se extinguiu nos grandes mestres que tivemos: Oscar Niemeyer, Afonso Eduardo Reidy, Lúcio Costa, Villanova Artigas, Eduardo Lins de Melo, entre outros. O que aconteceu na Barra foi que os arquitetos perderam sua posição dentro do processo para os corretores de imóveis. São eles que na Barra da Tijuca ditam o que é bom e o que é ruim. E tivemos uma triste substituição do sol e do sal por motores e concreto, de uma maneira brutal. O resultado é de muito má qualidade arquitetônica, em função de uma possível venda do American way of life para brasileiros. Miami, por exemplo, tem uma cara própria. Eu gosto de ir a Miami para vê-la. Agora, querer transferir Miami ou Cancún para a Barra da Tijuca é uma coisa quase que insana, não tem nada a ver. As pessoas começam a adquirir atitudes "miamescas" em função desse ambiente. Há até uma estátua da liberdade lá, de uns cinco ou seis metros de altura. Enfim, penso que é necessário um processo de melhoria ambiental nessas áreas que ainda não foram destruídas. E acho que há uma legislação muito forte para sustentar isso. Basta que se consiga uma coisa tremendamente difícil, que é o cumprimento da lei. Eu me lembro que havia um político que dizia assim: "Há leis que pegam e leis que não pegam". Se apenas se cumprir a lei, essa preservação estará garantida.

Quanto ao transporte coletivo, vamos chegar a um momento em que ninguém vai conseguir entrar na Barra ou sair dela. O que acontece é que o deslocamento se faz através de túneis e viadutos, e existe uma quantidade brutal de carros, sempre crescente. A Linha Amarela, que teoricamente deveria desafogar o trânsito, de certa forma cumpriu sua função, mas trouxe também uma população flutuante muito grande para a Barra. E o transporte coletivo não é ruim só na Barra, mas no Rio de Janeiro inteiro. Em São Paulo, pelo menos vocês têm um metrô melhor que o nosso.

ISAAC – Mas que muitas vezes está em greve.

FERNANDO – Alguém falou em trabalhar no Canadá, eu trabalhei, passei cinco invernos lá, peguei temperaturas de até 45 graus abaixo de zero. E lá também existe greve, só que na hora de ir para o trabalho e de voltar do trabalho o metrô precisa funcionar. A população não pode ser atingida, talvez até porque as pessoas morreriam geladas na rua. Enfim, acredito que o transporte coletivo é a única solução possível. É uma pena que no projeto inicial da Barra não tenha sido pensado o transporte coletivo, que certamente seria aéreo. Transporte coletivo subterrâneo na Barra seria complicado, já que existe um lençol freático próximo da superfície. Agora, também é misterioso esse negócio de transporte coletivo. Na realidade, há uma enorme quantidade de ônibus que trafegam muitas vezes vazios. Segundo me consta, eles seriam os grandes opositores do metrô. Esses problemas são de política e precisam ser enfrentados, o que até hoje uns mais, outros menos, estão tentando fazer. Mas é difícil para um jardineiro responder a isso.

BARAT – Contradição urbana, preservação, Rocinha, a indulgência com a cidade ilegal e o rigor com a cidade legal, a causa perdida das favelas. Eu me lembro de um urbanista inglês que foi ao Rio de Janeiro e lhe mostraram as favelas e as grandes construções que estavam sendo levantadas. Ao final, ele disse: "Onde vocês me mostraram soluções, eu vi problemas. Onde vocês me mostraram problemas, eu vi as soluções". A favela é um fato consumado. Um dos programas interessantes que se está fazendo é o Favela Bairro. Ninguém pode mais tirar a Rocinha dali. O problema é que ela está crescendo, já está passando para a outra vertente. Temos realmente uma coisa interna muito difícil, que é mexer com a classe desfavorecida, à beira da indigência, que não é mais tão indigente hoje. Como eles são os próprios construtores, já não fazem mais favelas de madeira, mas de alvenaria. Há prédios de quatro andares na Rocinha. Acho que não é uma causa perdida. Tenho certeza do seguinte: onde se construiu e há ocupação urbana, é muito difícil mudar, a não ser que haja uma guerra, o que espero que não aconteça. Muitas cidades foram reconstruídas a partir de guerras que as destruíram. Sobre os escombros foram trabalhadas situações novas de cidades, como no caso da Alemanha e da França. Espero que a gente continue longe dessa guerra.

ISAAC – É melhor ficar com a Rocinha.

FERNANDO – É preferível. Esse problema de preservação e degradação passa também pela educação das novas gerações, que já estão mais conscientes. Acho que haverá um processo de depuração, mas ele é lento, não é como a gente gostaria.

BARAT – Você acha possível, por exemplo, um processo de educação ambiental entre os habitantes de uma favela, considerada a degradação em que ela está?

FERNANDO – Já existe. Por exemplo, o uso de favelados para fazer mutirão é uma forma de educar. Agora, o perigo é dar a eles o título de propriedade. Sabe por quê? Eles vendem e vão favelizar em outro lugar. É o caso de dar um comodato ou algo desse tipo, ou seja, teriam direito ao uso mas não à propriedade.

Evidentemente, o processo de educação é fundamental. Mas a realidade é que estamos construindo um país de miseráveis. Essa é a grande verdade. Não estou com nenhuma visão de esquerda nem de centro-esquerda, é apenas uma constatação. Qual é a população miserável do Brasil? Ela cresce mais do que a que não é miserável. Esse é o grande problema. No entanto, há tanta coisa que poderia ser feita para melhorar a situação... Acho que é preciso investir nesse sentido.

Samuel, 500 anos de descobrimento ou cinco séculos de destruição? Daí talvez venha a nossa herança. Os colonizadores, talvez diferentemente de outros lugares em que foram para construir um país, aqui vieram para saquear. Infelizmente, é verdade. Nossa comemoração é um grande ponto de interrogação, concordo com o senhor. A cena a que o senhor assistiu certamente é um gesto comum na tradição japonesa, ligada a toda uma filosofia oriental do budismo e dos valores da natureza. Até a colocação das pedras é feita em torno da composição do jardim japonês.

Lembro-me de quando o comandante Fidel Castro abriu sua apresentação na Eco-92, falando assim: "Temos animais em extinção e podemos nós também nos tornarmos animais em extinção se não cuidarmos de nosso planeta". Acho que esse conceito é sério, e os desastres ecológicos já estão fazendo parte de nosso cotidiano. As enxurradas, os deslizamentos, o que a gente vê em nosso cotidiano é fruto exclusivamente de mau gerenciamento dos recursos naturais. O doutor Mário Amato fez uma observação que eu guardei: obedecer à natureza. É verdade, a natureza tem reações e uma força incontroláveis. Pode-se procurar soluções tecnológicas, mas estamos vendo que estão ficando cada vez mais difíceis, mais escassas. Esse problema de obedecer à natureza é uma questão de sobrevivência.

pfromm netto – E quanto à regionalização da formação?

FERNANDO – Concordo com todo esse aspecto global. Trabalhei na Universidade de Montreal, e na Escola de Arquitetura só queriam professores que falassem francês. Então, não havia professores americanos nem canadenses de origem inglesa. Eles saíram procurando pelo mundo profissionais que falassem francês. No corpo docente havia francês, belga, holandês, alemão e um brasileiro, que era eu. Cada um levou suas experiências. Trabalhei em 73, 77, 81, 84 e 85, por períodos. Em 85, meus auxiliares eram alunos que eu havia tido em 73. Considero essa troca de experiências extremamente frutuosa. Mas acho também que o conhecimento local é muito importante, sobretudo em se tratando de equipes interdisciplinares. Por isso estou falando na regionalização, pela dificuldade de trabalhar, no caso do Brasil, com ecossistemas tão diversificados. Não estou excluindo das escolas e das equipes os profissionais oriundos de outros locais, mas penso que é preciso fortificar o núcleo regional para que seja possível atender às demandas com visão regional. A globalização existe, mas, quando se trata da paisagem natural, surgem dificuldades que esbarram numa realidade de ecossistema.

Mário Amato fez uma série de observações e, com relação a São Paulo, concordo com ele que é o estado que talvez receba melhor as pessoas. Em minha experiência, aqui tive as melhores oportunidades e também recebi as maiores manifestações de apreço. Como vimos, os problemas ambientais são extremamente complexos e também políticos. Exigem de fato uma quantidade muito grande de profissionais que possam atuar de maneira interdisciplinar.

Quanto à ação forte da autoridade, quero dizer que considero essencial que a lei seja respeitada. Mas mais importante do que isso é criar o conceito de cidadania, pois é a maneira mais eficaz de garantir o respeito à lei. Acredito que, nesse sentido, a consciência ecológica e a não-aceitação de projetos tipo pacotes e sim de programas em que haja realmente participação cada vez maior da comunidade talvez sejam o caminho para conseguirmos construir algo melhor.

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