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Lições da pobreza

Postado em 01/05/2000

Crianças no ambulatório do Hospital Santa Marcelina, em São Paulo. Foto: Thomas Kremer

A experiência de um estudante de medicina alemão em São Paulo

THOMAS KREMER

Thomas Kremer é um estudante de medicina alemão que escolheu o Brasil para realizar seu estágio clínico. Foi parar no bairro de Itaquera, na periferia da maior cidade brasileira. Uma região densamente habitada e marcada por carências de todos os tipos.

O objetivo do futuro médico era aprender um pouco mais de seu ofício, mas longe dos sistemas sofisticados de sua terra natal. Em Itaquera pôde então tratar de doentes à moda antiga, com métodos há muito tempo em desuso nos países mais desenvolvidos.

De acordo com o depoimento, o resultado não poderia ser melhor. Nenhuma teoria em voga na universidade alemã poderia oferecer tal ensinamento ao jovem profissional. Sem esse estágio, Kremer também não descobriria outros valores da alma humana que somente uma situação de pobreza tem condições de revelar com toda a sua intensidade e crueza. Para ele, foram lições inesquecíveis. Para nós, brasileiros, resta um consolo: para alguma coisa útil serviu a miséria do país.

Leia nestas páginas o relato de sua experiência.

Sou estudante de medicina do terceiro semestre clínico na Universidade de Lübeck, na Alemanha. É uma cidade pequena, pacata, bem cuidada. E o curso é moderno, com métodos de diagnóstico avançados. Por esse motivo, resolvi procurar estágio em um país com condições diferentes de saúde, onde, por falta de equipamentos adequados, eu imaginava que poderia aprender a diagnosticar com os métodos clássicos de palpação, auscultação e anamnese.

Imaginava também que poderia encontrar um hospital para trabalhar com poucos meios mas muito idealismo, chegando assim mais perto do sentido hipocrático do exercício da profissão. Tinha idéia de que, com um estágio desse tipo, ficaria mais bem preparado para realizar um trabalho autônomo na Alemanha. Com essas expectativas, sem falar português e sem uma noção do que encontraria pela frente, parti para o Brasil.

O Hospital Santa Marcelina está encravado em um morro no bairro de Itaquera, na zona leste de São Paulo. É um bloco cinzento e faz parte de uma instituição com 2,5 mil leitos e um número incrível de pacientes e procedimentos médicos. O edifício me lembrava um convento medieval, cercado por muro e com portões de ferro bem guardados. Como na Idade Média, o Santa Marcelina representa uma fonte de sustento para muitos moradores da região. Não somente empregados, mas também vendedores ambulantes, lojas primitivas e pequenos restaurantes que subsistem graças aos recursos que o hospital atrai.

Quando entrei no prédio, fiquei atônito com a massa de pessoas circulando pelos estreitos corredores. Parecia um formigueiro. Todas as salas de espera estavam superlotadas e não havia nenhuma porta que não tivesse inúmeras pessoas diante dela.

A instituição é administrada por freiras da Ordem de Santa Marcelina, que construíram o hospital nos últimos 30 anos. Uma delas, a irmã Monique, foi quem me conduziu ao local de meu estágio, a Casa de Saúde Dom Angélico, um ambulatório que faz parte do Programa Qualis da ordem.

Esse programa é responsável pela criação de uma dezena de ambulatórios na região de Itaquera, que tem uma população de aproximadamente 2 milhões de habitantes. Cada centro ambulatorial atende entre 3 mil e 5 mil pessoas, oferecendo assistência básica. Ficam abertos cinco dias por semana, oito horas por dia. Cada equipe de atendimento, formada por um médico, uma enfermeira, duas auxiliares de enfermagem e quatro agentes comunitários, cuida de 200 a 300 famílias.

Os agentes comunitários são recrutados entre a população e treinados nas matérias básicas de assistência médica. Recebem ensinamentos sobre higiene, alimentação, vacinação, desenvolvimento de recém-nascidos, etc. Aprendem ainda sobre doenças transmissíveis, hipertensão, diabetes, etc. Eles são um elo importante entre o pessoal de saúde e a população. Visitam as famílias, contam as crianças e, quando preciso, induzem as pessoas a procurar o médico. Além disso, duas vezes por semana organizam encontros para discussão de problemas específicos daquelas famílias.

As auxiliares de enfermagem são responsáveis por atividades que na Alemanha nem as enfermeiras formadas podem exercer. Na equipe em que eu atuava, uma jovem auxiliar cuidava da vacinação das crianças contra difteria, tuberculose, caxumba, sarampo, rubéola e hepatite A e B. Elas fazem também visitas domiciliares e nessas ocasiões trocam cateteres vesicais, preparam curativos e controlam a pressão arterial, entre outras ações.

A enfermeira auxilia o médico. A médica que chefiava minha equipe relatava que o controle pré-natal e das gestações normais é feito pela enfermeira. Cabe ao médico, durante quatro dias da semana, realizar visitas domiciliares em sua área e participar das reuniões de grupo, ocasião em que esclarece assuntos relativos às doenças. O encontro se realiza na casa de algum morador da área. O resto do tempo o médico atende nos consultórios do ambulatório.

Otimismo

Todas as manhãs tinha que atravessar a cidade de metrô. Cada viagem era um acontecimento. Não se pode imaginar quantos milhares de pessoas utilizam o metrô diariamente. Todos os vagões ficam completamente lotados.

A caminho do ambulatório pode-se ver claramente que o grau de civilização decresce enquanto nos distanciamos das áreas centrais. Perto do metrô ainda existe infra-estrutura adequada, mas em "nossa área" as casas não têm reboque, há coberturas com chapas de zinco e muitas vezes apenas barracos de madeira em ruelas de terra, quase sempre não identificáveis.

Quatro dias por semana fazíamos visitas domiciliares. Para mim era extremamente excitante visitar as moradias. A princípio imaginava que seria muito deprimente verificar as condições de vida dessa população carente. Mas em geral ocorria o contrário. A impressão que me passavam era de famílias que, ao contrário das alemãs, lutavam contra a própria sorte, em geral com otimismo e alegria. Fiquei profundamente impressionado.

As casas eram muito desiguais. Algumas bem cuidadas, outras sujas. A região é muito pobre, e era difícil imaginar como aquela população conseguia seu sustento.

No ambulatório, minha tarefa era fazer o exame físico, enquanto a anamnese, por causa de meu pouco conhecimento de português, era feita pela médica. Aprendi muito nessa atividade. Os pacientes em geral procuram o médico relativamente tarde. Com sintomas já muito acentuados, mais que na Alemanha. Há também grande diversidade e um número muito alto de pacientes.

Os médicos do Programa Qualis são considerados médicos de família, pois atendem desde grávidas e recém-nascidos até idosos. Durante meu estágio tive oportunidade de examinar muitas gestantes e bebês. Com isso pude adquirir o senso do que é normal – com o tempo aprendi, dentro de certas limitações, a determinar pelo exame físico se o feto estava em posição correta ou não. Também no exame rotineiro de crianças podia avaliar, com o auxílio apenas das mãos, do estetoscópio, de uma balança e uma fita métrica, se o desenvolvimento era satisfatório. Penso que em nenhum outro lugar teria a oportunidade de aprender tanto.

Fiquei conhecendo também a importância dos métodos simples de diagnóstico, embora em certas situações seja necessário ter acesso a laboratórios modernos. O que existe de positivo no projeto Qualis é que os médicos iniciam o tratamento com os métodos simples, e a ligação que têm com o Santa Marcelina garante uma retaguarda segura, pois o hospital possui quase todos os requisitos da medicina moderna.

Cinco estrelas

Durante meu estágio passei dois dias no Santa Marcelina. É quase impossível compreender como esse hospital consegue funcionar. Às sete horas da manhã os pacientes já formam filas de centenas de metros. Diariamente são atendidas 4 mil pessoas no ambulatório. Quando entrei no Centro Obstétrico tive uma visão inacreditável: 30 parturientes, em estágios diferentes de trabalho de parto, deitadas uma ao lado da outra. E as obstetrizes cuidavam delas com muita calma.

Quando passei para a UTI de clínica médica, com 50 leitos, fiquei atônito. Ninguém poderá louvar suficientemente as irmãs do Santa Marcelina pelo que construíram ali. As despesas com os tratamentos são grandes e a população é pobre, não possui plano de saúde. O Estado paga apenas um valor simbólico. Resultado: todo mês elas enfrentam problemas enormes para financiar sua atividade.

Mais tarde pude conhecer outra face da medicina brasileira. Visitei dois hospitais destinados a pessoas ricas em São Paulo, o Sírio Libanês e o Albert Einstein. Um cirurgião, médico autônomo e professor, possibilitou-me a visita. Esses hospitais mais parecem hotéis cinco estrelas. Oferecem assistência com sofisticação pelo menos igual à da Europa. Possuem os equipamentos mais modernos, excelentes médicos (pelo menos é o que se afirma) e muito conforto. Diferenças que mostram muito bem os problemas sociais do Brasil.

Visitei também uma faculdade particular, situada em um bairro pobre da cidade. O pagamento feito pelos estudantes é em grande parte utilizado para garantir tratamento gratuito à população carente. Durante um ano acompanhei estudantes do quinto e do sexto ano que realizam atividades clínicas. Também pude participar de cirurgias em que os médicos se esforçavam para explicar tudo aos estudantes, permitindo sua participação prática onde era possível.

Carta em inglês

Durante o período em que estive no Brasil conheci muitas pessoas. Uma experiência fascinante. Como o país é formado por um caldeamento de povos, é impossível descrever um brasileiro típico. Há desde pessoas ruivas e loiras até gente de ascendência africana e indígena. Em todos encontrei muita hospitalidade e disposição para ajudar o próximo.

Fiquei particularmente impressionado com a população de Itaquera. Achei que ia encontrar pessoas deprimidas. Enganei-me. Apesar de sua miserabilidade, é uma gente otimista. Mesmo vivendo na pobreza, está disposta a ajudar os mais necessitados. Certa manhã, por exemplo, as agentes de saúde procuraram a médica para sugerir que um dos moradores mais pobres tratasse do jardim do centro. Em pagamento, dariam a ele parte de suas cestas básicas. Queriam fazer isso para ajudá-lo a alimentar sua família, e não simplesmente para oferecer-lhe uma esmola.

Outro exemplo: uma das agentes começou a ensinar-me português, pedindo-me em contrapartida que lhe ensinasse inglês. Alguns dias depois recebi dela uma carta em inglês, escrita com a ajuda de um dicionário. Fiquei impressionado. Na Alemanha, tempos depois, recebi um e-mail dela. Não posso imaginar como teve acesso ao computador.

Outro dia encontrei uma jovem mãe sentada numa pedra rodeada de lama, acompanhada de muitas crianças. Em suas mãos um livro: My first lesson in English. Uma situação que não esquecerei, principalmente porque era um bairro de analfabetos.

Mas existem também pessoas que vegetam sem nenhuma dignidade em sua pobreza. A situação é pior nas famílias onde o consumo de álcool (ou de drogas) é responsável pela degradação. Elas são, porém, uma minoria dentro do grupo que conheci, em número muito menor que imaginava. Assim mesmo representam um problema social para o país, especialmente se considerarmos que São Paulo é a cidade mais rica do Brasil, com uma das melhores assistências médicas.

O trabalho que as irmãs realizam é impressionante. Algumas coisas, porém, poderiam ser melhoradas. Um dos problemas do país é a alta taxa de natalidade. Uma política um pouco mais agressiva no campo do planejamento familiar, quem sabe, poderia ser vantajosa para a região.

Outro problema que me tocou foi o aspecto do bairro de Itaquera, muito feio, incluindo o Hospital Santa Marcelina e o Dom Angélico. Provavelmente há dificuldades financeiras para mudar isso.

Gostaria também de apontar uma falha importante do programa. Infelizmente, ele ainda cobre somente uma pequena parte de todo o processo básico de saúde. Há outros temas que necessitam de apoio, como ecologia, educação, atividades sociais, etc., coisas que merecem mais atenção. A assistência à saúde é, sem dúvida, muito importante, mas a longo prazo somente a educação e o cuidado com a natureza poderão assegurar a melhoria das condições de vida das pessoas.

O período que passei no Brasil foi o mais impressionante de minha vida e acho que me influenciará por muito tempo.

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