Postado em 04/06/2012
Um dos mais renomados estudiosos da literatura do país, Davi Arrigucci Jr. foi professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP) de 1972 a 1996.
O especialista em literatura e experiência histórica, poética da narrativa curta, narrativa e lírica hispano-americanas, teoria do romance e lírica brasileira moderna e contemporânea é autor de Humildade, Paixão e Morte: a Poesia de Manuel Bandeira (Companhia das Letras, 1990), Coração Partido – Uma Análise da Poesia Reflexiva de Drummond (Cosac Naify, 2002), Ugolino e a Perdiz (Cosac Naify, 2003), Rocambole (Cosac Naify, 2005), entre outros.
Em entrevista à Revista E, o crítico literário analisa o legado da Semana de Arte Moderna na literatura contemporânea e fala sobre a crise do romance. “A crise (...) é um pouco esta dificuldade de você criar uma resposta complexa que possa lidar com esse mundo sem ficar repetindo comercialmente ou através do kitsch, o que já foi feito”, diz. A seguir, trechos.
Olhando para a poesia brasileira do século passado, a obra de Carlos Drummond de Andrade é a que mais reúne modernidade e inovação?
Ele é o poeta emblemático da modernidade no Brasil. Não creio que o Manuel Bandeira seja um poeta inferior, mas ele é um poeta da passagem do século 19 ao 20, o poeta da modernização, e o Drummond é a experiência central da modernidade no Brasil. Não há questão, conflito ou contradição que a gente tenha vivido no século 20 que não esteja contido na obra dele.
Ele reúne lirismo, drama e pensamento. De certa forma, o Drummond virou quase um oráculo quando queremos entender o que a lírica quer dizer sobre o mundo contemporâneo. Desde que apareceu Alguma Poesia, na década de 1930, já se sentiu o tamanho dele, ele foi se firmando ao longo dos anos e acompanhando ?a história política brasileira.
É um poeta público, cuja dimensão de poesia social é muito forte. Tudo o que no Drummond vem de fora repercute muito intensa e reflexivamente dentro. Não há acontecimento exterior que não seja moído e refletido interiormente. Ele é um poeta do dizer ensimesmado. Topar com uma pedra é refletir na interioridade. Essa ligação entre o de fora e o de dentro é poderosíssima nele.
Para mim, ele é o poeta meditativo por excelência. A lírica meditativa é uma das grandes heranças do romantismo na contemporaneidade. Ele é o principal poeta ligado ao Mário de Andrade, que foi um centro desse movimento de atualização da inteligência brasileira – o modernismo. Com o adensamento dos anos 1930, depois 1940 e o pós-guerra, isso vai adquirir uma espessura extraordinária, por isso A Rosa do Povo [1945] é um livro emblemático, em que os grandes acontecimentos da ordem mundial são também grandes acontecimentos da alma.
Havia uma polarização entre os que preferiam a poesia de João Cabral de Mello Neto e os que preferiam a de Carlos Drummond de Andrade. Como você vê essa diferença?
O João Cabral dizia que descobriu a possibilidade de fazer poesia quando leu Não Sei Dançar, o poema do Manuel Bandeira que abre Libertinagem [1930], o primeiro grande livro modernista do Bandeira. O Cabral, que se destinava à crítica de poesia, quando leu aquilo, verificou que ele também poderia fazer um poema.
Em 1952, em uma conferência sobre poesia e composição, em São Paulo, ele opõe os poetas de inspiração aos poetas de trabalho de arte, que seriam os não inspirados, aqueles que compõem como o resultado de uma construção consciente, no qual o Cabral se coloca. Ele é muito drummondiano por essa questão de debruçar-se sobre essa dificuldade de chegar ao poema.
Ele é um pouco herdeiro dessa geração primeira, do Bandeira, e também um poeta que se distingue; ele vem dessas várias dicções e forjou uma própria. Curiosamente, um poeta que fala contra o ato de poetizar o poema, como se vê em Alguns Toureiros [do livro Paisagens com Figuras, de 1956]. O modo de fazer no Cabral é decisivo, ele medita muito sobre o gesto construtivo.
Ao mesmo tempo, ele tem um senso plástico extraordinário, nisso ele saiu de uma costela do Murilo Mendes. O Cabral vai se desenvolver no sentido construtivo cada vez mais a partir de Pedra do Sono [1942]. O Drummond e o Cabral são poetas muito diferentes, mas têm muitas afinidades também. Em ambos, a lucidez quanto à linguagem é fundamental.
Essa tensão para o gesto construtivo no Cabral, pelo modo de compor, modo de fazer, que deriva do modernismo em princípio, vai numa direção diferente da do Drummond, em que a experiência complexa é, sobretudo, debruçar-se sobre as contradições do mundo contemporâneo e sobre as contradições internas dele.
Em termos de descendência, poderíamos dizer que a poesia contemporânea vem dessas duas raízes?
Hoje você tem poetas que derivam da leitura do modernismo diretamente, mas que tiveram a vantagem de nascer em outra época. Todo poeta tem uma diferença em relação aos antecessores, que é o fato de seu mundo não ser o mesmo, então ele tem um assunto que é diferente do de seus antecessores.
O Francisco Alvim, por exemplo, um grande poeta, que absorveu profundamente a experiência modernista, mas certamente o mundo dele é outro. Já não estamos mais diante daquela euforia modernista, a descoberta do mundo que tem algo de eufórico no modernismo. Pelo contrário, ele é muito disfórico, certamente a leitura do Drummond para ele foi decisiva, assim como a do Bandeira e do Ferreira Gullar.
No Gullar isso foi importantíssimo, ele teve uma juventude provinciana, leu os parnasianos até que leu os modernistas, isso deve ter representado para ele uma transformação total da visão da poesia, como aconteceu com Cabral quando leu Não Sei Dançar. A experiência do modernismo foi decisiva para todos os contemporâneos, nota-se na obra do Armando Freitas Filho, do Carlito Azevedo, do Cacaso.
A influência do Murilo Mendes é muito menor do grupo modernista de primeira ordem, ele é o poeta mais difícil, de beleza mais exigente para você chegar até ele. Ele é um poeta de regiões culturais, do surrealismo, de pintores, é um poeta da cultura. É uma beleza de difícil acesso, embora a plasticidade comunique muito.
O Jorge de Lima ficou muito restrito, um pouco também pelo próprio universo de referências dele, o mundo ficou cada vez mais laico, caminhamos para um mundo dessacralizado e na poesia dele a questão do sagrado é muito forte. No Murilo também, mas no Murilo o sagrado é muito contraditório, tem um erotismo que puxa para a materialidade do mundo, é um catolicismo mais misturado. O moderno é o lugar do desencantamento do mundo.
Como você avalia a permanência da poesia concreta hoje?
O concretismo representou um ponto de vista em um determinado momento, que de certa forma se afastava muito da experiência modernista. Nem o Haroldo de Campos, nem o Augusto [de Campos] no final de carreira são mais concretos, são outra coisa.
A experiência dos anos 1950 e começo dos 1960, aquele lado doutrinário, muito afirmativo, e o lado polêmico, aguerrido deles, fizeram do concretismo uma espécie de reduto extremo de uma radicalidade que o colocou como uma coisa à parte, criou uma escola realmente, com derivativos e com muitas rupturas posteriores.
O concretismo materializou ainda mais esse espaço significativo do branco na página e da ruptura do verso, os poetas se tornaram mais conscientes do valor da disposição das palavras no espaço, de um lado plástico, figurativo da poesia. Isso foi incorporado pelos poetas, mesmo os que não são dependentes da doutrina concreta no sentido estrito.
Os neoconcretos passaram por isso também, certamente o Gullar hoje não está mais preocupado em fazer os poemas neoconcretos que fez. Aquilo foi uma coisa pela qual ele passou, um momento. É um momento muito antimodernista. O Oswald de Andrade é o que se destaca, que é tomado como um padrão do poema pílula, da condensação extrema, que é um lado da doutrina concreta.
Na sua opinião, o que apareceu na literatura brasileira após de Clarice Lispector?
A literatura hoje perdeu o lugar de hegemonia que teve no século 19. No início do século 20, ela disputa lugar com a pintura, com as artes plásticas, com a música, embora continue tendo muita importância. Ao longo do século 20, esse papel foi se deslocando muito até que no século 21 ela perdeu a hegemonia. Isso significa muitas coisas.
Um gênero como o romance, que demorou séculos para se formar, se transformou em um instrumento para investigação do espírito burguês, para a afirmação da cidade moderna, foi o grande instrumento de investigação da interioridade e da experiência individual na grande cidade capitalista.
Ele sofre uma crise decisiva no século 20, em que são escritos vários romances para acabar com o romance, como Ulisses [do irlandês James Joyce, publicado em 1922], ou romances em que a lente de aumento necessária para se ver é gigante, como em Proust.
Depois dali, o romance deu muitos frutos no século 20, como William Faulkner [escritor norte-americano, viveu entre 1897 e 1962, autor de Uma Fábula, Os Desgarrados, entre outros], Thomas Mann [romancista alemão, viveu entre 1875 e 1955, autor de Doutor Fausto, A Morte em Veneza, entre outros], que podemos considerar romances súmula de experiência, em que aparece uma visão da experiência humana como totalidade.
Hoje é difícil um texto dessa ordem, porque houve uma fragmentação brutal da experiência; nós não temos um lugar do qual falar, o romance tem uma ligação muito profunda com a experiência histórica e com a organização e uma certa ordem da experiência.
É difícil você encontrar uma perspectiva adequada da qual tratar a matéria heterogênea. Muitas das disciplinas que o século 20 desenvolveu tomaram o espaço do romance: a sociologia, a psicanálise. As ciências humanas desenvolveram muito do conhecimento que fazia a espessura do romance do Joyce, do Balzac [escritor francês, considerado o fundador do realismo na literatura moderna, viveu entre 1799 e 1850, autor de A Mulher de Trinta Anos, Ilusões Perdidas, entre outros], do Proust [escritor francês cuja obra mais conhecida é Em Busca do Tempo Perdido, viveu entre 1871 e 1922].
A informática, a revolução dos computadores, trouxe uma nova dimensão de linguagem, de fragmentação, o Twitter. É difícil você dar unidade a isso. O cinema é uma arte narrativa e nasceu do fragmentário, porque ela é uma junção de fragmentos. Ele exerceu um grande papel no século 20, mas, mesmo no cinema hoje, é difícil ter obras realmente complexas. Porque na fragmentação se perdeu muito da densidade da experiência, do que se vai contar.
No poema, no Gullar, por exemplo, acontece uma condição pascaliana [referente ao mistério da natureza humana, o termo tem origem na obra do filósofo e matemático Blaise Pascal, que viveu entre 1623 e 1662] do universo e a solidão do indivíduo; nos últimos poemas do Gullar isso é uma constante.
O poema trata da universalidade mais abstrata e da singularidade individual. Como fazer isso no romance? É difícil. Não sei se o romance é um gênero que vai persistir, as narrativas curtas hoje parecem mais eficazes. A biografia hoje ocupou o espaço romanesco, sem dúvida. Há uma curiosidade em saber como as pessoas são, que era respondido pelo romance.
Você acha que o romance está experimentando essa crise por sua maior ligação com o mercado?
O romance vira mercadoria com mais facilidade, se degrada rapidamente, isso desde o começo. O romance trata das coisas novas, do presente, foi o primeiro gênero moderno por causa disso, pois tratava do mundo inacabado do presente.
Ele é o gênero mais moldável às mudanças históricas. A lírica precisa da iluminação do instante e a epopeia de um passado absoluto. O romance parecia o mais adaptado para enfrentar as perplexidades do mundo moderno e de fato ele veio fazendo isso, até que as crises do início do século 20 começaram a colocar em xeque sua capacidade de totalização do conhecimento, a ideia de uma suma da existência, você responder com o sentido de uma vida; mas o sentido de uma vida, onde está?
A crise que o romance pode estar vivendo é um pouco essa dificuldade de criar uma resposta complexa que possa lidar com esse mundo sem ficar repetindo comercialmente ou através do kitsch, o que já foi feito. Quando apareceu o romance, com a história de uma existência individual, o Walter Benjamin disse que o gênero estava refletindo uma crise da narrativa oral, porque já não era um saber comunitário que estava em jogo, mas um herói solitário para um leitor solitário. O sentindo da vida individual hoje é difícil de ser apreendido. Ou seja, pode ser sintoma de uma coisa nova que se está gestando.
“O modo de fazer no Cabral é decisivo, ele medita muito sobre o gesto construtivo. Ao mesmo tempo, ele tem um senso plástico extraordinário, nisso ele saiu de uma costela do Murilo Mendes”
“(...) o Drummond é a experiência central da modernidade no Brasil. Não há questão, conflito ou contradição que a gente tenha vivido no século 20 que não esteja contido na obra dele. Ele reúne lirismo, drama e pensamento”
“(...) o romance deu muitos frutos no século 20, como William Faulkner, Thomas Mann, que podemos considerar romances súmula de experiência, em que aparece uma visão da experiência humana como totalidade. Hoje é difícil um texto dessa ordem, porque houve uma fragmentação brutal da experiência”
“A literatura hoje perdeu o lugar de hegemonia que teve no século 19. No início do século 20, ela disputa lugar com a pintura, com as artes plásticas, com a música, embora continue tendo muita importância. Ao longo do século 20, esse papel foi se deslocando muito”
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