Postado em 01/03/1998
MAURÍCIO LOUREIRO GAMA
Entre os críticos e filósofos que mais trabalharam pelas mudanças estruturais que se operaram no Brasil, nos anos 20, estava Cândido Mota Filho firme. As metamorfoses político-sociais, as mudanças culturais não se fazem sem sacrifício, sem polêmica, sem cultura, sem o repúdio às fórmulas importadas, sem a extirpação do verbalismo inútil, sem o retorno às nossas verdades primárias e existenciais. Quem o afirma é Cassiano Ricardo, que saudou Cândido Mota Filho na Academia Brasileira de Letras.
Entre os escritores da nova geração que mais lutaram em favor do modernismo, estava Cândido Mota Filho. Crítico durante dez anos no "Correio Paulistano", autor da campanha pela arte moderna no "Jornal do Comércio", diretor do "S. Paulo – Jornal", fundador da revista "Klaxon", autor de todo um elenco de trabalhos de pensamento e de observação entre os quais figuram ensaios dos mais lúcidos, que estão a exigir reedições. É o caso, por exemplo, da "Introdução ao estudo do pensamento nacional". E cumpre relembrar o perfil perfeito que Cândido Mota Filho delineou em Alberto Torres e o tema de nossa geração, complementado pela Introdução ao estudo da política moderna. Um incansável trabalhador intelectual.
O grito de rebeldia
Quando irrompeu a ruidosa revolução literária de 22, Mota Filho também deu o grito valente de rebeldia e desassombro. Na hora certa. Estava ele ao lado dos grandes nomes que rasgaram a perspectiva reformista: Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Graça Aranha e outros espíritos ágeis e vivos. É interessante notar desde logo (a observação é do poeta de Martim Cererê) que Cândido Mota Filho, como Ronald de Carvalho e Agripino Grieco, era menos iconoclasta e mais construtor: "A sua corajosa atividade crítica, em meio da tempestade literária que ajudou a desencadear, era a de disciplinar os valores, a de combater o que houvesse de excesso de intelectualismo, a de evitar que as velhas fórmulas fossem substituídas por outras, eivadas do mesmo mal". Enquanto Tristão de Athaide aconselhava um "passeio aos clássicos", Cândido Mota Filho insistia na sua tese original, que era também por um trabalho de reconstrução e de disciplina. A função crítica preconizada por Cândido Mota Filho destaca-se pelo estudo, pela observação atilada e pela compreensão consciente. Não podia confundir-se com a crítica passadista, madrasta e rabugenta. Sobravam-lhe o verdadeiro entendimento crítico e o dom hegeliano da polêmica. Possuía ele os requisitos que, como auxiliares da criação literária, têm sido dados a artistas imaginosos como Goethe e inovadores arrebatados como Zola. Daí a conclusão que se impôs a Cassiano Ricardo: apoiado em críticos da envergadura do autor de Alberto Torres e o tema de nossa geração, o movimento modernista se alastrou pelo Brasil inteiro. Podemos proclamar com segurança esta verdade: Cândido Mota Filho foi o grande crítico da chamada "batalha sem sangue" do modernismo, que nasceu e se fortaleceu em São Paulo e nos demais recantos de Pindorama, espraiando-se pelo Brasil inteiro.
Jornalismo de idéias
Raros, raríssimos os que cultuam hoje em dia o jornalismo de idéias, ou mesmo o jornalismo investigativo. Cândido Mota Filho, autor de vários estudos que podem ser lidos ou relidos nas coleções de velhos jornais, foi também um repórter de alto nível. Que o digam os que puderam ler suas memórias, onde há um capítulo primoroso dedicado a Santos Dumont. Parece que o vejo peripateticamente caminhando ao lado de Santos Dumont, nos jardins do Palácio dos Campos Elísios, em plena revolução de 1932. A entrevista é um mergulho de corpo inteiro na alma inquieta do mineirinho que um dia assombrou Paris, com seus inventos geniais. Santos Dumont sai do contexto dessa entrevista revelando o lado trágico de sua existência. Pura psicanálise. Dir-se-ia que naquele instante em que os brasileiros de São Paulo lutavam de armas em punho contra a ditadura Vargas, o mineirinho inventivo programava, no universo íntimo, o vôo até o final da existência, na decolagem pungente do suicídio.
O mais moço dos modernistas
Motinha foi, seguramente, o mais moço dos modernistas de 1922. Sinto saudades dele enquanto meus olhos passeiam pela velha fotografia amarelecida. Ao lado de Mário de Andrade, líder incontestável do movimento, aí aparece ele enxutinho no seu jaquetão elegantíssimo. Concluíra havia pouco tempo o curso no Largo de São Francisco, onde o pai, Cândido Mota, fora mestre idôneo e lhe abrira, pelo nobre exemplo, o caminho do magistério superior.
O velho Cândido Mota optou pelo Direito Penal.
Cândido Mota Filho deu aulas memoráveis de Introdução à Ciência do Direito, no Curso Pré-Jurídico e, depois, lecionou Direito Constitucional. Recordo um ciclo de estudos que promoveu sobre a obra do jurista Hans Kelsen e, depois, sobre o pensador espanhol Ortega y Gasset, de cujos ideais foi seguidor, mormente no plano da sociologia.
Esperança de dias melhores
Foi deputado estadual pelo Partido Constitucionalista, integrando o colegiado seletivo da Constituinte paulista. Chefe de gabinete do ministro Honório Monteiro e, a seguir, ministro do Trabalho na administração Dutra. No governo Café Filho, galgou o Ministério da Educação e Cultura. Foi ministro do Supremo Tribunal Federal, auge da luminosa carreira jurídica. Pertenceu, primeiro, à Academia Paulista de Letras e, depois, à Academia Brasileira de Letras.
Com Menotti del Picchia, Mário e Oswald de Andrade, tomou parte na Semana de Arte Moderna, vulgarizando pelos jornais e revistas a filosofia mutante do modernismo.
Integrou, também, o Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.
Agora, no final destes apontamentos, recordamos o mestre humanista. Caminhando pelo salão nobre do Supremo, Cândido Mota Filho citava Daniel Reps, no seu desalento: "Não se protesta mais: o nosso tempo perdeu a capacidade de indignar-se".
E acrescentava com seu doce sotaque de paulista cujas raízes mergulhavam na terra boa de Porto Feliz, numa volta à esperança de dias melhores: "Não suportamos mais o convencionalismo. Rompemos todas as comportas da alma. A sinceridade é a revolta do ser, que se desfigura pelas misérias da vida injusta, numa sociedade injusta".