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Conto
Decibéis

Postado em 01/04/2000

Adélia Prado


O doente delirava um pouco e insistia para que o informassem sobre o que acontecia à porta do seu quarto. Para ele, seguramente um protesto com alguém gritando palavras de ordem, colhendo assinaturas, solicitando adesões para uma causa ligada aos motivos de seu drama pessoal.
Eu o visitava nos dez minutos permitidos aos internados no CTI de um grande hospital e verifiquei com desgosto que nem ali uma pessoa - no caso, o próprio doente - pode se valer do benefício do silêncio.
Não havia comício à sua porta, mas conversas animadas, um crente distribuindo jornais de sua igreja e ruídos, ruídos. Uma das estações do inferno é certamente o barulho, o horrendo suplício de sua eterna intermitência, a impossibilidade de concentração. Acredito que o inferno já chegou, já estamos nele. Não há dentista, elevador, hospital, igreja, corredores, sala de espera, táxi, que se preste apenas à sua função. Todos têm um rádio, um gravador, impedindo-me - na maior parte dos casos - de sofrer.
Todos acreditam ou são impelidos a crer que "uma música suave" vai me relaxar, predispor-me sorrindo à injeção, ao motor, à perigosa travessia de nossas ruas.
O taxista parece civilizado quando exibe a plaqueta "obrigado por não fumar". Eu não fumo, mas me obrigo, porque tenho medo de irritar taxistas, a ouvir junto com buzinas e carros com descargas sôfregas, a programação de nossas rádios e seus locutores desvairados.
Dos programas de auditório, passando pelo alto-falante anunciando frutas e eventos, até o animador de missas, uma categoria relativamente nova, somos impedidos de estar conosco, com o outro, com Deus. Há um perigo real no silêncio, o perigo desse encontro de salvação e crescimento, permanentemente adiado. Se nos calarmos nos ouviremos e não quero ouvir-me, é muito desconfortável. Mais tarde, talvez.
Até os funerais contaminaram-se. Não se pode chorar, alguém se encarrega de preencher hora por hora, até a pá de terra final, com uma cadeia de cânticos e orações que, longe do espírito da resignação cristã, não quer que eu veja como a morte é pálida, fria, como a orfandade nos faz dar gritos e pedir socorro e colocar só em Deus nossa esperança. Tenta-se maquiar a morte, o sofrimento, a consciência incômoda.
Você vai fazer retiro? Cuidado. Várias casas de oração agora inventaram de constelar seus belos jardins com placas e blocos de pedra onde se lêem salmos, provérbios, advertências, louvores, com a impertinência de uma empregada silenciosa que a todo momento entra na sala onde você quer estar só e espana um cisco, ajeita um quadro na parede e traz a bandeja com o lanche.
Certamente este é um texto ruidoso de adjetivos, também ele afetado pela síndrome do ruído, perturbado pela angústia de que será abafado no alto volume da balbúrdia ambiente. Por isso eu vou gritar, gritemos todos juntos, alto, bem alto, mais alto ainda: silêncio.

Adélia Prado é escritora, autora de Manuscritos de Felipa, entre outros

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