Postado em 01/04/2000
Nas reflexões que envolvem os 500 anosde descobrimento, a modernização do Estado brasileiro étema constante na agenda nacional. Se é corrente o entendimentoque as estruturas políticas devem ser reformuladas, não há consenso sobre como proceder tais mudanças. Algumas considerações sobre democracia, sistemade governo e formas de representação são debatidaspor especialistas em artigos exclusivos
Marco Maciel
As mudanças econômicas e as transformações sociais não esgotam o processo indispensável para a adaptação do Brasil às novas exigências de um mundo em que a competição e a integração se tornaram inevitáveis. Temos de completar essa obra com a reforma da estrutura política institucional, opinião que expomos, insistentemente, antes mesmo da realização do plebiscito de 21 de abril de 1993, no qual o povo se pronunciou pela manutenção do regime republicano e do sistema presidencialista. Isto implica a necessidade de se promover a refundação do Estado, o que significa republicanizar o regime e, ao mesmo tempo, reestruturar o sistema federativo. Não se trata apenas de operar algumas mudanças formais e limitadas deste ou daquele poder. É preciso algo mais abrangente e profundo em relação aos três ramos especializados de atuação do Governo.
Urge uma reforma legislativa que implique, concomitantemente, a alteração dos mecanismos decisórios da representação política, para que possamos, a partir daí, consumar a reforma do próprio Legislativo, em todos os níveis, tornando-o mais ágil e ajustável, em consonância com as mudanças que se operam na sociedade à revelia do Estado. O mesmo se pode dizer em relação ao Judiciário. Tão importante quanto dinamizar e tornar mais acessível a proteção jurisdicional dos juízes e tribunais é o desafio de ajustar a lei aos imperativos da justiça, sem que isso implique diminuir o respeito ao devido processo legal e ao direito de defesa. Para tal, é imprescindível que os órgãos da Justiça tenham um poder decisório mais eficiente, com autonomia na garantia efetiva dos direitos coletivos, quer no campo econômico, quer no âmbito social.
No âmbito do Executivo, temos de tornar mais eficiente a capacidade de operação das diferentes áreas em que se exige a proteção ou a intervenção do Estado, não em favor do seu próprio fortalecimento, mas na tutela dos direitos do cidadão, definindo suas atividades em setores de atuação direta e, ao mesmo tempo, estabelecendo o exercício de um poder regulatório ágil e célere.
Outro ponto relevante é a reforma dos três sistemas do regime democrático, que chamaremos operativos - o sistema eleitoral, o sistema partidário e o sistema de governo. É preciso compatibilizarmos o sistema eleitoral e o partidário, com o objetivo de garantir a representatividade e aumentar a governabilidade. No sistema eleitoral, não basta a existência de um processo estável e permanente que ponha fim à prática da elaboração de uma nova lei, para cada eleição. Devemos mudar o próprio modelo proporcional de listas abertas, hoje existente em apenas dois países do mundo, um dos quais o Brasil. Temos de escolher, entre as inúmeras modalidades e alternativas de correção que estão sendo aperfeiçoadas ao longo do tempo, aquela que evite a proliferação de partidos, o que descaracteriza e compromete o quadro partidário. Ao mesmo tempo, é preciso que o próprio período eleitoral e os métodos de financiamento, tanto das eleições quanto dos partidos, sejam ajustados à rotina da vida civil, para que não perturbem a normalidade do exercício da cidadania.
O sistema de governo, que resultará fatalmente desses novos modelos, terá de se ajustar às exigências da democracia participativa, em que as normas, as regras e a própria atuação do poder público respondam à cidadania, servindo à sociedade e não servindo-se dela. Esse enfoque implica um sistema tributário simplificado, não regressivo e correspondente à capacidade contributiva do cidadão.
Sem essas mudanças, não colheremos os efeitos de um processo de transformação que está apenas começando e que não pode ser interrompido, sob o risco de frustarmos, mais uma vez, as aspirações manifestadas pela sociedade brasileira em inúmeras eleições, cujos resultados são indicativos seguros dos rumos a serem trilhados pelo Brasil.
Marco Maciel é vice-presidente da República
Alaôr Caffé
Por que é necessária a representação política? Quem representa, representa alguém ou um grupo de pessoas em relação a algum assunto ou interesse. Uma representação política é pertinente à direção dos negócios públicos de interesse de todos, usando, se necessário, a força para a obtenção de resultados segundo os valores e aspirações sociais da comunidade representada. O exercício do poder, em geral, pressupõe sempre uma inequação, uma desigualdade básica em virtude da qual uma parte se sobrepõe à outra, seja por razões de conhecimento (razões ideológicas), seja por razões econômicas (razões materiais), seja, ainda, por razões de poder exercer a força (razões de violência). O poder político implica o poder de exercer, em última instância, a força, a violência. Seu artifício, entretanto, é a manipulação ideológica para obter a inclinação das vontades que representa. Neste caso, há uma violência simbólica, em que cada um tem de aceder às decisões do poder legítimo, porque este foi escolhido para representar a comunidade. Se maior a identidade dos valores, menor será a violência simbólica. Por isso, supõe-se que a democracia, na qual existem eleições de representantes e todos os valores são discutidos, seja a melhor forma de representar a sociedade em sua direção política. Entretanto, ela também não prescinde do exercício da violência, quando necessária. Por isso, se justifica ao Estado a instituição de forças armadas ou policiais, detentoras da possibilidade de reagirem legitimamente com atos de violência. Com esta força, contudo, vem a pergunta: quem verifica se o poder está efetivamente sendo exercido segundo as aspirações de todos? Quem controla os controladores? Aí está a questão chave da representatividade. Se a sociedade não é um todo uníssono, visto haver interesses divergentes e até antagônicos, com diferentes capacidades de se fazerem presentes, como é possível a representação ser legítima? Na Idade Média, não havia necessidade de representação política, pois o poder econômico vinha integrado com o poder político. O senhor feudal agia no âmbito econômico, comandando a produção da vida material, bem como no âmbito político, exercendo a força sob todos os ângulos possíveis (jurídico, militar etc.). Nos tempos modernos, com o advento do capitalismo, o poder político se separou do econômico, devendo ser exercido com autonomia em relação a este último. Aparece o poder político centralizado e personalizado na figura do Estado, encarnando os ideais da comunidade pública, separado da sociedade civil, de caráter mercantil, onde permanecia a fornalha das atividades econômicas sob valores egoístas. Diante da fragmentação da sociedade civil, como exercer em nome de todos o poder político? A sociedade é fragmentada em inúmeros interesses, muitos deles poderosos economicamente e que, por isso, podem se fazer representar mais e melhor do que outros na máquina político-burocrática do Estado. Neste sentido, com profundas diferenças na distribuição e na participação das riquezas produzidas, como pode haver autêntica representação política na condução dos negócios públicos? Parece, na verdade, que a separação entre o político e o econômico não é tão definida como os nossos ideólogos nos fazem crer. É, na verdade, uma separação de fachada, uma separação ideologicamente preparada pelas forças hegemônicas da sociedade, para induzir ao engodo da neutralidade da ordem política, entendida como orientação democrática e igual para todos. Hoje, com o fenômeno da globalização, a questão se torna mais visível ainda. Cada vez mais observamos a utilização da máquina estatal para o atendimento dos propósitos privados das grandes corporações mundiais, unificadas e fusionadas, sem nenhum escrúpulo dos governantes, que passam a representar muito mais a mediação entre o povo e essas corporações, para o melhor proveito destas, do que os reais interesses das grandes populações "representadas". Diante disso, qual o valor do voto universal, do voto distrital, do voto misto, da representação democrática, dos mecanismos dos partidos, das instituições políticas tradicionais de rua etc.? A meu ver, a instituição da mera representação política, mesmo com a alternância assegurada, está longe de contribuir para a solução justa da governabilidade política das comunidades. Para isto, é preciso uma diuturna participação do povo nos negócios comuns da comunidade. É preciso inaugurar uma nova democracia, a democracia participativa. Para sua eficácia, será necessário estabelecer formas não tradicionais de representação mediante redes organizadas de representações, onde as instituições culturais, produtivas, religiosas, profissionais, de vizinhança, de lazer etc. tenham vinculações diretas ou indiretas com o poder político, alijando a influência absoluta dos partidos políticos. A representação deve ser apenas um meio para garantir a efetiva participação das instituições sociais e dos homens concretos no governo das comunidades. Somente assim é possível assegurar, acreditamos, a força e a universalidade necessária para contrabalançar o imenso poder econômico privado surgido com a globalização.
Alaôr Caffé Alves é professor associado da Faculdade de Direito da USP
Celso Fernandes Campilongo
A representação política é uma característica e um sintoma da sociedade moderna. Os povos antigos não a conheceram. Com o advento da modernidade, enquanto no plano jurídico estabilizou-se a universalização do Direito, no campo político afirmou-se a democratização da participação. Direito universal é direito posto por decisões. A participação democrática, por seu turno, é premissa para que decisões coletivas sejam tomadas. Tudo isso pressupõe um excesso de possibilidades de escolha, vale dizer, alternativas para o direito a ser positivado e opções entre diferentes linhas políticas. Só com a modernidade essas condições estruturais foram oferecidas aos sistemas jurídico e político.
Escolher, selecionar ou optar - numa palavra: decidir -, nas condições da sociedade moderna, é o mesmo que expor o direito e a política à constante variabilidade. O ilícito de ontem transforma-se no lícito de hoje. A oposição atual poderá ser o governo de amanhã. A isso dá-se o nome de contingência do processo decisório. Fica claro que a instabilidade não é o defeito nem o vício da democracia moderna. Ao contrário, manter abertos os caminhos para novas alternativas é da essência democrática. Por isso se diz, sem nenhum demérito, que amar as incertezas é condição para a democracia. Talvez, pela mesma razão, desde as origens da modernidade fala-se de "crise da representação política". Afinal, as instituições representativas são os veículos dessas variações e instabilidades.
Universalização do direito e democratização da política - especialmente quando se sabe que, na democracia representativa, a lei deve ser a expressão da soberania popular - sugerem uma enorme interdependência entre os sistemas jurídico e político. Isso de fato ocorre: a representatividade é dependente das regras fixadas pelo direito e vice-versa. Porém, o que caracteriza a modernidade, até mesmo como decorrência desse grande intercâmbio dos sistemas, é a separação de funções entre o direito e a política. As instituições representativas podem criar o direito novo, desde que, no processo legislativo, respeitem os limites impostos pelo próprio direito. Os tribunais também podem tomar decisões de cunho político inovador, desde que, no processo judicial, observem as balizas estabelecidas pelo sistema político.
Quando os papéis se invertem e os juízes se avocam na condição de representantes do povo, ou os políticos pretendem amordaçar o Judiciário e submetê-lo à lógica do consenso popular, criam-se bloqueios que impedem o funcionamento tanto do sistema jurídico quanto do sistema político. O mecanismo pensado para impedir a politização do direito e para proteger a representação das intromissões de um Judiciário que pretende substituir os políticos é a Constituição. Cabe à Constituição sensibilizar um sistema em relação ao outro e, principalmente, delimitar o território funcional de cada um.
Sem autonomia funcional, a representação política e o direito perdem sua capacidade de garantir procedimentos decisórios que mantenham abertas e crescentes as possibilidades de escolha, variação e construção de alternativas. Enfim, a representação política não pode tudo. E muito menos é capaz de transformar os grandes ideais em realidade. Mas, sem ela, perde-se uma peça fundamental para a manutenção da democracia.
Celso Fernandes Campilongo é professor de Teoria do Direito na pós-graduação da PUC-SP e autor do livro Representação Política (Ática, 1988) e Direito e Democracia (MaxiLimond 2000)
Edson Passetti
A representação política pode ser um simulacro. O que dizer de uma representação política na qual o exercício do voto ainda é uma obrigatoriedade? Se a democracia moderna supõe o voto facultativo, estamos distante dessa experiência suprimida desde o Golpe de Estado de 1964.
Entretanto, a questão se encontra atravessada por uma novidade. A ditadura militar introduziu o horário obrigatório nas emissoras de tevê com o objetivo de comunicar nacionalmente sua política de segurança. A partir do momento em que a televisão passou a ser a principal fonte de lazer, o lúdico e o político ajustaram linguagens. Os tediosos minutos assistindo os candidatos restritos à representação política direta para o legislativo, balbuciando seus encômios e resmoneios, foram superados pela crítica aberta, pioneiramente veiculada pelo MDB nas eleições de 1974. A televisão passou a ser divulgadora dos feitos de governo e palanque eletrônico para os oposicionistas legalmente investidos. Mas não tardou para que o tempo franqueado aos partidos políticos fosse ocupado por programações mais leves, próximas ao gosto da audiência, roteirizadas e dirigidas como publicidade visando a transformar o espectador em eleitor potencial. Os candidatos passaram a apresentar-se como anchormen, traduzindo suas propostas em jogos, pequenas cenas dramatizadas e reportagens-clipes. Ao eleitor coube encontrar seus representantes políticos espelhados no desempenho artístico do candidato ao Executivo. A República, que atravessou o século patenteando o brasileiro como um devoto do Executivo, encontrou um novo jeito de manter o efeito oligárquico de suas origens, suprimindo a importância do partido em função do desempenho do candidato.
A televisão como produtora de verdades políticas trouxe a praça para o interior da sala, cozinha ou quarto do espectador. O palco em espaço aberto onde nos encontrávamos com políticos ou ditadores ao lado de artistas, policiais e pessoas influentes, praticamente desapareceu. A era do teatro político se encerrou. Soturnos e solitários, comemos e oramos perante essa fabulosa vigilante formadora de condutas.
Hoje em dia, a boa representação política deve ser antecedida pela representação artística. Não se trata de uma arte disposta a convulsionar, provocar o eleitor em suas convicções ou responsabilidades, mas vulgarizar a democracia como um "você decide". Nos tornamos telecidadãos. Atônitos, na terra brasilis, constatamos que foi a ditadura militar a introdutora da novidade, o que gera novas suspeitas acerca da atual representação político-democrática.
Elisée Reclus, um eminente geógrafo do início do século 20, afirmou que o voto significa abrir mão do próprio poder, criar traidores e fomentar deslealdades. Insistiu para que pensássemos sobre o que significa depositar num representante o poder de ser senhor sobre os homens livres e de abrir mão da própria liberdade. Espera-se que um dia o cidadão diga um não para afirmar um sim. Até lá, o rebanho prostrado e ordeiro defronte ao televisor assinala seu voto, obrigatório ou facultativo, aderindo à midiatizada democracia. Simulacro.
Edson Passetti é Cientista Políticodo Departamento de Política, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e coordenador da NU-SOL (Núcleo de Sociabilidade Libertária) da PUC-SP
Fernando Limongi e Argelina Figueiredo
Em fevereiro, o Presidente da República voltou a mencionar a necessidade de promover a reforma política, isto é, de alterar as leis que regulam a vida eleitoral e partidária do país. Em entrevista recente, o presidente de honra do PT, Luís Inácio Lula da Silva, também defendeu o mesmo ponto.
As reformas políticas são sempre lembradas. O tema é trazido à baila nas mais diversas ocasiões e por quase todas as correntes políticas. O apelo às reformas se banalizou de tal forma que as relações de causa e efeito deixaram de ser mencionadas. Para sustentar a necessidade de reformas não basta dizer que o sistema político brasileiro funciona mal. É necessário que esses males possam ser creditados à legislação vigente e que saibamos que a legislação proposta será capaz de contribuir para saná-los.
Um exemplo dessa falta de precisão pode ser encontrado no ardor com que se defende a substituição do sistema proporcional pelo sistema distrital misto com o objetivo de reduzir o número de partidos que obtêm representação política.
Um dos problemas do Brasil seria o excesso de partidos. O fato é que, antes de mais nada, sequer podemos ter certeza que temos um paciente a ser tratado. Não existe, se analisarmos a experiência das democracias, um número ideal de partidos ou mesmo um limite a partir do qual possamos dizer que há partidos em excesso. A idéia de que sistemas pluripartidários são instáveis, suscetíveis a crises, baseada na experiência de alguns poucos países europeus no Entre-Guerras, foi abandonada há muito tempo. Governos apoiados por coalizões partidárias são a norma em um grande número de democracias e isso também tem ocorrido no Brasil. Não sabemos ao certo porque seria necessário diminuir o número de partidos.
O Brasil tende a ser caracterizado como uma verdadeira aberração. As leis em vigor não barrariam a entrada de forças sem a necessária representatividade no sistema político. O número de partidos teria atingido um nível verdadeiramente patológico inviabilizando o funcionamento efetivo do governo, que seria presa do poder de minorias.
Nosso país não detém o recorde mundial de partidos. Nos últimos anos, esse número vem caindo. Em meados de 1990, havia 23 partidos representados na Câmara dos Deputados. Hoje, há 17. Se contarmos os partidos conferindo pesos de acordo com seu tamanho (um partido com cem deputados deve contar mais do que um único membro), verificaremos que o número de partidos efetivos chegou a ser superior a 11,1 no final de 1991, e hoje é de 6,8. Várias democracias convivem com esse número de partidos que, na verdade, está caindo - e deve continuar a cair nos próximos anos - sem a mudança da legislação.
No Brasil, ao contrário do que se apregoa, não há grande facilidade para que novos partidos tenham sucesso na arena eleitoral. Desde 1979, quando foi abolida a legislação autoritária que impôs o bipartidarismo, cerca de 76 partidos lançaram candidatos em pelo menos uma eleição. No mais das vezes, esses partidos têm tido vida efêmera e poucos provaram ser viáveis. Na última eleição, trinta partidos lançaram candidatos.
Em boa medida, o sistema partidário atual é controlado pelos partidos herdeiros do bipartidarismo imposto pelo regime militar. O PFL e o PPB nasceram da Arena, enquanto o PMDB e o PSDB foram formados a partir do MDB. Juntos, esses partidos controlam 69% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 78% das do Senado. Esses partidos controlam ainda a Presidência da República e elegeram 21 governadores no último pleito.
Dos partidos que procuraram entrar por meio da arena eleitoral, somente o PT pode ser classificado como bem-sucedido. O PT obteve 13,7% dos votos para a Câmara Federal em 1998 (é o quarto maior partido do país nesse nível da disputa eleitoral) e conquistou três governos estaduais. Nem mesmo o PTB (6% dos votos) e o PDT (4,6%), criados em 1979, conseguiram obter um apoio sólido e consistente em um grande número de estados. Nesse aspecto, o Brasil segue a norma mundial: novos partidos encontram dificuldades para "entrar" e conquistar um lugar no mercado eleitoral. É assim no mundo inteiro e o Brasil não foge à regra.
Para que a legislação eleitoral leve à redução do número de partidos se faz necessário que os votos dos eleitores não sejam aproveitados e/ou que os eleitores, ante a possibilidade de desperdiçar seus votos, não votem nos partidos que realmente preferem mas sim nos que têm mais chances de eleger um candidato. Parece duvidoso alegar que por meio desses mecanismos o sistema se tornaria mais representativo.
Em uma palavra, não é tão claro que tenhamos um diagnóstico acertado dos males que afligem o sistema político brasileiro. Quando abandonamos o folclore e recorremos a levantamentos empíricos sistemáticos, vemos que o sistema político brasileiro funciona melhor e mais adequadamente do que se supõe. O Executivo não é paralisado por minorias. De fato, ele é o principal legislador e conta com o apoio disciplinado de sua base de sustentação.
Não temos um paciente terminal e é duvidoso que ele esteja precisando de uma terapia intensiva. A legislação eleitoral e partidária é acusada de provocar males que não são revelados em um exame apurado. O diagnóstico parece ser construído com base em sintomas mais aparentes que reais. Razão mais do que suficiente para desconfiar da terapia recomendada.
Fernando Limongi é professor do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador do Cebrap
Argelina Figueiredo é professora do Departamento de Ciência Política da Unicamp e pesquisadora do Cebrap
Mário Eduardo Martinelli
O Estado brasileiro, até antes de 1930, ainda puramente liberal, jamais interferiu nas relações entre o trabalho e o capital, nem se envolveu em questões sociais, como a educação e a saúde.
O movimento revolucionário de 1930, que dissolveu a Primeira República brasileira, instaurou a ditadura do Governo Provisório, encabeçada por Getúlio Vargas. Muitas leis da primeira ditadura de Vargas possuíam alto teor social. A política revolucionária dessa época criou o Ministério do Trabalho, demonstrando que a questão social não era mais caso de polícia, como fora para os últimos governos da República Velha. A Constituição de 1934, fruto do movimento de 1930, das mudanças operadas pelo Governo Provisório e da Revolução Constitucionalista de 1932, inaugurou o Estado social brasileiro.
O Estado social caracteriza-se pela intervenção definitiva nas ordens econômica e social. Esse tipo de Estado apodera-se do controle do crédito, da moeda e do câmbio para conter a inflação. Ele cria leis tributárias de incentivo à iniciativa empresarial. O ensino gratuito passa a ser generalizado em benefício das classes mais desfavorecidas. Esse Estado intervencionista principia a interferir no contrato de trabalho, antes livremente estipulado entre o trabalhador e o empregador, obrigando este último a conceder uma série de direitos ao proletário. Enfim, o Estado social é um instrumento de justiça social.
O arcabouço normativo de proteção ao trabalhador brasileiro em 1934 era muito avançado, contrastando com o pequeno grau de progresso econômico. A economia brasileira estava ainda por se modernizar e assentava-se sobre bases sociais arcaicas. A Constituição social de 1934 sucumbiu ante esse descompasso. Implantou-se, então, o Estado Novo com todos os seus mecanismos de repressão.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 redemocratizou o país, pondo termo à ordem jurídica de exceção, vigente desde o golpe de Estado de 1937. A Constituição de 1946 resultou do compromisso entre forças conservadoras e progressistas, o que fez dela um sistema ambíguo, contraditório, anacrônico e falho, que combinava técnicas liberais, de contenção do poder estatal, com objetivos socializantes, dependentes de crescente intervenção estatal.
As técnicas liberais da Constituição de 1946 embaraçavam a ação do Poder Executivo que, então, passou a adotar caminhos ilegais para a consecução de suas tarefas. Esse desvio ensejou, depois, uma série de aventuras econômico-financeiras que desencadeou a espiral inflacionária, cujo estancamento foi um dos ideais do movimento militar de março de 1964.
O longo governo militar promoveu a necessária modernização da economia nacional, com a constituição de grandes empresas privadas nacionais, com o estabelecimento em território nacional de grandes empresas estrangeiras e com a expansão do crédito. Por outro lado, impacientava-se o anseio popular pelo fim da ruptura da democracia.
Em 1977, iniciou-se um lento e gradual processo de transição para a democracia, que durou dez anos. Além da campanha por uma Assembléia Nacional Constituinte, estava também nas ruas a campanha pelo voto direto na sucessão presidencial. As Diretas-Já não ocorreram em 1985, mas a eleição de Tancredo Neves foi o último ato de poder do colégio eleitoral da ditadura.
Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, na qual consagraram-se os princípios do Estado social democrático dos dias atuais.
Mário Eduardo Martinelli é advogado e mestrando da Faculdade de Direito da USP