Postado em 02/05/2012
O artista gráfico Lourenço Mutarelli é conhecido pelos personagens sombrios, movidos a decepções, fracassos e insegurança, vivendo em um mundo sem ética nem moral. Além de 12 álbuns de quadrinhos, como O Rei do Ponto (Devir, 2000), A Caixa de Areia ou Eu Era Dois em Meu Quintal (Devir, 2005) e Quando meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente (Quadrinhos na Cia, 2011), é autor da coletânea de peças O Teatro de Sombras (Devir, 2007) e dos romances O Cheiro do Ralo (Devir, 2002), O Natimorto (DBA, 2004), A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (Companhia das Letras, 2008), entre outros. Mutarelli atuou nas adaptações de seus romances para o cinema O Cheiro do Ralo e O Natimorto, ambos dirigidos por Heitor Dhalia.
Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o convidado desta edição falou sobre seu processo criativo nos quadrinhos e na literatura. “Eu escrevo como o Marçal [escritor e roteirista Marçal Aquino] vê a escrita, parto de uma pequena centelha, de uma faísca que eu jogo e vejo se incendeia. O meu maior prazer em escrever é esse, pegar uma coisa e ir investigando, escolhendo quando aquilo vai se ramificar”, afirma. A seguir, trechos.
Inspiração
Eu tive uma infância muito sombria, as minhas primeiras impressões do mundo foram extremamente sombrias e até hoje é no que eu me inspiro. Meu trabalho me ajudou muito a suavizá-las. Escrevi O Cheiro do Ralo em cinco dias, minha mulher falou que eu escrevi em 30 e tantos anos, que eu tinha na época. E é isso, é uma mistura de milhões de coisas.
Trabalho com tinta e desenho, minha roupa é toda cheia de tinta, então, quando eu ia comprar alguma coisa em um comércio, era tratado como mendigo. Eu sempre me dava mal em negociações. O Cheiro do Ralo é isso, é a mistura do cheiro do banheiro de uma farmácia em que eu trabalhei quando era adolescente e de um prédio em que morei, que também tinha esse problema. Eu quis criar um personagem que era a minha antítese. Era ele quem humilhava e era um personagem que sabia negociar.
Música, literatura e desenho
Eu gosto muito do minimalismo, a música é a minha religião. Eu só desenho com música concreta e, quando escrevo, não consigo ouvir esse tipo de música. Antes de começar a trabalhar, eu escolho um CD, como se fosse uma oração, porque isso muda a minha frequência, me desacelera e aí eu começo a trabalhar. O próprio Philip Glass [compositor americano] não gosta do termo minimalismo, ele usa música com estruturas repetidas.
O meu último livro, Nada me Faltará [Companhia das Letras, 2010], é exatamente isso, é uma história contada por algumas pessoas e com o mínimo, são só diálogos, em nenhum momento eu cito nada. É um livro que eu construí e depois fui tirando para ver até quanto eu poderia tirar e ainda deixar a história em pé, como em um castelo de cartas. A literatura foi me fascinando por isso. Primeiro, tentar escrever mais da forma como a gente conversa, de uma forma que flua.
Eu escrevo para gente preguiçosa de certa forma, pois são livros curtos, porque não temos muito tempo. O que mais me fascina é encontrar uma cadência, esse movimento interno que faz o leitor ir embora. O desenho, a observação, isso contribuiu muito para a minha literatura. Depois de escrever estes seis ou sete livros, quando fiz este último quadrinho, vi como a literatura influenciou meu desenho. Tem páginas completamente silenciosas, onde só tem imagem, é difícil encontrar o silêncio na literatura. Essas coisas se complementam, sempre com essa regência musical.
Marcatti e o começo da carreira
Foi demais conviver com o Marcatti [cartunista brasileiro]. Eu tinha muito medo de procurá-lo, porque eu lia os quadrinhos dele que são profundamente doentios, escatológicos, pervertidos. Convivemos muito. Esse meu último livro que saiu é uma edição muito bonita, papel bonito, capa dura e alguém diz ‘você deve estar muito orgulhoso de ver o livro’.
Nada se compara ao meu primeiro fanzine, que eu montei na garagem, eu, ele, um filho dele de dois anos, outro de quatro, grampeando, aquele cheiro da tinta, o barulho da máquina, nunca mais eu vou ter uma emoção tão profunda assim. Editamos uma revista [Tralha] que era maravilhosa, era eu, ele e o Glauco Mattoso.
Bloqueio
O bloqueio criativo foi assustador. Eu brincava que sofria do contrário, eu tinha muitas ideias e não dava tempo para aproveitar todas elas. O bloqueio foi quando fiz parte dos Amores Expressos, um projeto da RT Features com a ?Companhia das Letras. Eles mandaram 16 autores para 16 partes do mundo, passávamos um mês na cidade e, na volta, escrevíamos uma história de amor que deveria se passar naquela cidade. Não era minha primeira encomenda, nem nada.
Eu tive que escrever uma sinopse e é isso que me matou – eu demorei para entender que era isso – essa sinopse tinha que ter começo, meio, fim e os personagens. A sinopse era o livro para mim. Eu escrevo como o Marçal [escritor e roteirista Marçal Aquino] vê a escrita, parto de uma pequena centelha, de uma faísca que eu jogo e vejo se incendeia. O meu maior prazer em escrever é esse, pegar uma coisa e ir investigando, escolhendo quando aquilo vai se ramificar. Pegar uma coisa que já está formatada e desenvolver não é criativo. E o livro não poderia ter nenhum personagem brasileiro. Isso me aleijou, eu não sei o que não é ser brasileiro. Eu travei por causa disso.
Processo criativo dos quadrinhos
Eu faço alguns estudos para chegar aos personagens, porque quadrinhos é uma coisa extremamente complexa e muito menosprezada, as pessoas não entendem que para criar uma história tenho que entender um pouco de arquitetura ou ter referências para construir esta cidade em que vai se passar a história, tenho que entender minimamente de cenografia para pensar os espaços, além de pensar nos personagens. Comecei a fazer caricaturas físicas e morais de amigos, tem muitos personagens meus que são amigos, pego alguma coisa deles e me aproprio.
Você tem que pensar como eles se vestem. Quando você tem imagem, você constrói subtextos, muita informação está sendo passada sem ser dita. Se um personagem usa relógio ou não, você já muda profundamente este personagem, são pequenas pistas. Meu traço é pesado, trabalho com bico de pena, aquela coisa medieval mesmo, que você molha na tinta e a partir da pressão da sua mão você alarga ou afina o traço.
Quero chegar a uma coisa próxima do que eram os livros medievais, as miniaturas, quero fazer um livro ilustrado, tipo uma bíblia antiga, todo manuscrito e venho tentando chegar a isso. Quero fazer uma tiragem independente, mínima, para que nunca mais seja reimpresso. Cada livro meu tem que ser uma experiência.
Novos quadrinistas
A autoedição é o futuro, é para onde a gente caminha. Nos anos 80, o fanzine tinha a forma do que é hoje o Facebook, mais ou menos. O blog é um caminho, tem muito autor que é descoberto pela internet. Quando eu comecei havia várias revistas em banca – a tiragem da Chiclete com Banana era de 100 mil exemplares por mês. Hoje não tem, precisa ter espaço, pois há muita gente boa.
“Tive uma infância muito sombria, as minhas primeiras impressões do mundo foram extremamente sombrias e até hoje é no que eu me inspiro. Meu trabalho me ajudou muito a suavizá-las”
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