Postado em 02/05/2012
No fim da década de 70, a artista francesa Sophie Calle foi acusada de entrar na vida privada das pessoas. A crítica surgiu, principalmente, por causa de seu trabalho Suite Vénitienne (Sequência Veneziana), de 1979, no qual ela persegue um homem de Paris até Veneza, lá descobre seu paradeiro, o acompanha e fotografa essa perseguição.
A partir deste momento, ela decide virar a câmera para si. “Era uma maneira de dizer efetivamente que eu falo da vida dos outros, mas também posso falar da minha”, revelou em entrevista, em julho de 2009, quando visitou o Brasil durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Sophie, que teve outra obra sua, Prenez soin de Vous (Cuide de Você), de 2007, exposta no Sesc Pompeia em 2009, assim como uma série de outros artistas, é personagem e objeto do próprio trabalho.
Eles se valem de autorretrato, performance, relatos em primeira pessoa e até intervenções no próprio corpo.
No caso de Cuide de Você, Sophie usa uma carta de rompimento enviada pelo então namorado, o escritor argelino Grégoire Bouillier, como ponto de partida de seu trabalho. “Os problemas que me coloco são artísticos, não tenho a impressão de revelar a minha vida”, afirma. Por meio dessa carta, enviada por e-mail, ele termina o namoro com ela e no fim escreve “Cuide de você”. Um grupo de 107 mulheres interpretou trechos da carta, e Sophie registrou em vídeo essas leituras e fez uma colagem.
O documentário, entre o final da década de 80 e início de 90, também viu a vertente despontar em filmes como Tongues Untied (Línguas Desatadas), 1989, de Marlon Riggs, em que o diretor norte-americano se coloca como personagem principal para discutir homossexualidade, racismo e militância. Outro exemplo é da também norte-americana Camille Billops em Finding Christa (Encontrando Chrsta), de 1991, em que a diretora relata seu reencontro com a filha, anos depois de ser dada para adoção.
Essa vertente de manifestação artística ganhou terreno nas últimas décadas com o avanço tecnocientífico, que permitiu mudar a relação que se tinha com o próprio corpo. “Sendo o corpo concebido como um lugar de experimento – maleável, moldável, programável –, torna-se evidente que ele faça parte das manifestações artísticas no contemporâneo”, explica a artista plástica e professora de design da Universidade Mackenzie Leila Reinert. “É a recuperação do corpo como ponto de partida de tudo. Acho muito legítimo?, acrescenta o curador e crítico de arte Agnaldo Farias.
Origens
No entanto, não é de hoje que a temática da autorrepresentação frequenta o imaginário – e as obras – de expoentes das artes plásticas. A título de ilustração, é possível remontar ao século 17 com o holandês Rembrant e seus mais de 100 autorretratos, ou ao final do século 19, com outro holandês, Van Gogh, retratando sua angústia na própria representação.
Já no século 20, a tendência aparece com força na década de 40, por exemplo, no trabalho de artistas como o norte-americano Jackson Pollock, o francês Marcel Duchamp e o irlandês Francis Bacon e, mais tarde, a partir da década de 60, floresce com os norte-americanos Andy Warhol e Dennis Oppenheim, e a sérvia Marina Abramovich, entre outros. A partir de então é inaugurada a era da superexposição individual, da publicização do indivíduo “para o bem ou para o mal”, segundo Agnaldo Farias.
Muitos desses artistas passam a usar a fotografia combinada com outras técnicas como suporte da obra. “A fotografia sempre se prestou a uma investigação de si próprio, a um registro do outro como documento. Por ser muito rápida, é uma técnica que permite exercícios desta natureza”, lembra Farias. “A dissolução do eu como uma identidade estável é constituinte da linguagem fotográfica e propicia experiências de despersonalização”, completa Leila.
A performance da reflexão
Mostra Retratos Performáticos convida o público a pensar sobre questões contemporâneas
Ao se deparar com as fotos inusitadas da exposição Retratos Performáticos, em cartaz até 6/5, o público que chega ao Sesc Vila Mariana encontra questões contemporâneas como exploração da imagem, preocupação com a beleza, identidade de gênero, autoimagem. Um homem vestido de mulher?
Um rosto coberto por uma cabeça de peixe? “A tônica da exposição é o performartizar-se diante da câmera, a ideia é provocar reflexão, deslocar o público para um certo estranhamento, ironizando até”, explica Diego de Moraes, coordenador do Núcleo da Imagem e da Palavra do Sesc Vila Mariana, responsável pela concepção do projeto.
A mostra reúne o trabalho dos artistas brasileiros Alexandre Mury, Edouard Frainpont, Marcela Tiboni, Rodrigo Braga, Flávia Bertinato, Marcelo Amorim, Gisela Motta e Leandro Lima. “A exposição é, sobretudo, de fotos e de como este suporte está sendo explorado”, afirma Diego.
O artista plástico fluminense Alexandre Mury, por exemplo, faz releituras de ícones das artes plásticas, como a mexicana Frida Kahlo em Três Fridas (2010), incorporando ele mesmo a figura da pintora mexicana. Marcela Tiboni também se apropria de figuras célebres da história da arte. São imagens de personagens de famosos artistas e não os artistas em si, que se fundem com a identidade do homem contemporâneo na obra da artista paulistana.
A apropriação também pauta o trabalho do goiano Marcelo Amorim. Em Missing (2009), o artista resgata arquivos fotográficos particulares e os coloca em outro contexto, dando novo sentido à essência intimista e privada desses registros.
A dupla paulista Gisela Motta e Leandro Lima desenvolve um trabalho semelhante, mas, além da apropriação, há também a manipulação. Eles criam a imagem de um filho adolescente fictício a partir da fotografia de qualquer casal. O resultado é a obra Dê forma, realizada entre 2005 e 2011.
O paulista Edouard Fraipont desenvolve um trabalho híbrido que funde experimentação fotográfica com a produção de retratos e performances, como na obra Autorretrato (1997) e na série 1\-1\41 e 1\-1\32 (2003).
Na série de retratos Figuração, a mineira Flávia Bertinato tira do contexto coisas às quais estamos sujeitos diariamente e as coloca de um modo renovado.
Já Rodrigo Braga, em vez de recriar, propõe situações insólitas em uma conjunção quase animalesca, que resultam em imagens fortes, como em Comunhão I (2006), em que aparece imerso em um lodo agarrado à cabeça de um bicho.
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