Postado em 02/05/2012
Foi com uma precisão quase cirúrgica que o cartunista, jornalista e escritor Henrique Souza Filho, o Henfil, fez críticas e análises nada fáceis sobre o Brasil e os brasileiros. Em seus breves 43 anos de vida, consciente do poder de sua obra e da época em que vivia, atuou em publicações como o Jornal do Brasil, Realidade, IstoÉ e O Pasquim.
Seu trabalho ficou mais conhecido pelas charges, mas também estavam em seu repertório textos (como as crônicas Cartas da Mãe, que publicou na IstoÉ), peças (foi coautor de A Revista do Henfil, que trazia seus personagens e música), filmes (Tanga: Deu no New York Times é sobre o poder da mídia de fabricar fatos) e participações na televisão (como a que fez no quadro TV Homem para o programa TV Mulher, exibido na década de 1980 pela Rede Globo).
A obra de Henfil nos livros também é extensa: Diário de um Cucaracha, de 1978, fala sobre o período dos anos 1970 em que morou nos Estados Unidos, onde se sentiu vítima de preconceito contra os latinos; Como se Faz Humor Político, de 1984, é um depoimento ao jornalista Tárik de Souza sobre a importância do trabalho humorístico. A revista Fradim, que fez circular durante os anos 1970, em plena ditadura, e chegou a ser suspensa, trazia quadrinhos com um quê de revolucionário em seu conteúdo e seu traço.
Ainda no campo político, cabe lembrar que o nome do movimento das Diretas Já que, entre 1983 e 1984, propôs a volta das eleições diretas para presidente, surgiu da busca de Henfil por uma frase de efeito para destacar uma entrevista do Pasquim com o senador Teotônio Vilela, idealizador da campanha. O cartunista criou um diálogo fictício: “E aí, Teotônio, diretas quando?”, “Diretas já!”.
Outro evento que mostra essa vertente política se deu por conta de uma apresentação da cantora Elis Regina para o exército, em 1972. Henfil “enterrou-a” em uma charge no mesmo jornal, unindo a ela personalidades como os cantores Roberto Carlos e Wilson Simonal e o jogador Pelé. A cantora protestou e Henfil enterrou-a novamente. Anos mais tarde chegou a pedir desculpas pelo ocorrido, mas não houve arrependimento.
Pressa de viver
Henfil nasceu em Ribeirão das Neves, Minas Gerais, em 1944. Como dois de seus sete irmãos, o sociólogo Herbert de Souza (o Betinho) e o músico Francisco Mário, ele sofria de hemofilia, doença genética que impede a coagulação do sangue. Anos mais tarde, durante uma transfusão de sangue no sistema público de saúde, acabou contraindo o vírus da aids, cujas complicações acabariam causando sua morte em 1988.
Para o filho, o produtor cultural Ivan Cosenza Souza, ter hemofilia acabou conferindo a característica da inquietude ao cartunista. “Ele nasceu e cresceu ouvindo que hemofílicos eram pessoas que teriam uma vida curta. Então ele tinha muita pressa para fazer as coisas”, diz.
Compartilhar a condição com os dois irmãos contribuiu para a relação entre os três. “Era uma relação muito intensa, eram quase uma pessoa só”, afirma Angela Patricia Reiniger, diretora do documentário Três Irmãos de Sangue, que conta a história dos irmãos. Herbert, o Betinho, foi também um grande ativista dos direitos humanos e Francisco, ou Chico, foi um compositor e instrumentista talentoso. Ambos também faleceram por complicações geradas pela aids.
Após a pesquisa para o longa, Reiniger avalia que Henfil era o mais passional, enquanto Chico, o mais introspectivo, e Betinho, o mais racional dos três. A cineasta pôde perceber a urgência de Henfil não só em se expressar, mas em viver. “Ele vivia para botar em sua obra o que sentia e o que o incomodava no mundo. Com a doença foi mais necessário ainda, para ele, correr contra o tempo, expressar suas ideias por meio do cartum ou do cinema.”
Aos olhos do filho, Henfil foi também uma pessoa extremamente observadora, e não só em relação ao País, mas também em relação ao mundo que o cercava. “Ele via muito a fundo, ia muito na causa dos problemas, é o que mantém a atualidade [do seu trabalho]. Ele mexia com o comportamento humano.”
O cartunista Laerte trabalhou com ele em projetos da Oboré, cooperativa de jornalistas para a comunicação popular, e para o Movimento Democrático Brasileiro, frente das oposições durante a ditadura. O convívio era intenso: “Mesmo os descansos e lazeres não eram tempos vazios. Conversávamos muito, trabalhávamos bastante”.
Henfil proporcionou a Laerte um aprendizado tanto na parte “física”, de técnicas e traços, quanto na “metafísica”, de reflexão sobre o trabalho jornalístico. “Era uma troca, mas a experiência dele agiu muito como orientação. Ele propunha desafios sempre, gostava de fazer o papel de guru, além do de moleque”, assegura.
Outro colega de trabalho, o escritor Luis Fernando Verissimo, que também colaborou para O Pasquim e o Jornal do Brasil, acrescenta que a criatividade estava sempre presente no convívio com Henfil. “Era extremamente criativo nas suas observações e no seu dia a dia”, lembra. “Era muito divertido estar com ele, mesmo que só como plateia, era uma pessoa muito afetiva.”
Criança malcriada
O primeiro emprego de Henfil foi como revisor da revista Alterosa, editada e publicada em Belo Horizonte. Lá, foi “batizado” pelo chefe com a corruptela de seu primeiro e seu último nome. No carioca Jornal dos Sports, fez charges esportivas usando justamente os apelidos pejorativos dados a cada time: os flamenguistas eram os urubus, os vascaínos os bacalhaus e os torcedores do Fluminense eram os pó-de-arroz.
Henfil precisou vencer o dilema entre uma carreira mais “séria” como sociólogo e a arriscada empreitada nos quadrinhos. Acabou abandonando o curso de Sociologia após dois meses e decidiu-se pela área em que, afinal, ganhou uma reputação mais do que sólida. “O trabalho dele continua muito atual. Ele tinha um traço rápido, quase infantil”, explica Verissimo.
Em sua opinião, Henfil foi quem melhor soube driblar a censura. “[Ele] foi a grande revelação do humor brasileiro na época da ditadura justamente por isso, pelo seu traço lúdico, de criança malcriada, com o qual ele dizia muita coisa que outros não conseguiam dizer.”
De acordo com o filho Ivan, muitos desenhos poderiam ter sido feitos no início do século passado “como também vão servir daqui a cem anos, podem ser usados na Europa e em outras partes do mundo”. O produtor cultural continua descobrindo desenhos do pai e busca conservá-los e divulgá-los por meio do Instituto Henfil, ainda sem sede.
Laerte conta que Henfil gostava de aprender enquanto experimentava – o que deixava alguns colegas sem fôlego. “Trabalhar com o Henfil, para mim, era tão estimulante quanto exaustivo, porque a sua velocidade sempre foi maior que a de qualquer um no grupo.” O cartunista paulista não nega a influência do mineiro em seu trabalho.
“Ele tinha um verdadeiro prazer na elaboração das ideias, no traçado dos argumentos”, esclarece.
O trabalho de Henfil nos anos do Pasquim foi algo de particular genialidade, segundo Pedro Granato, diretor teatral e músico. Ele dirige a peça Top! Top! Top!, que usa personagens do cartunista e esteve em cartaz no Sesc Santo Amaro (veja boxe Atualidade em Cena). “O que eles [o pessoal do Pasquim] fizeram foi tentar interferir com aquela que penso ser a melhor maneira do mundo: com humor e com arte. E de uma maneira até autoirônica, eles mesmos se sacaneavam, não tinha essas coisas de o cara ser o dono da verdade.”
Tá vendo alguma esperança aí?
Para Ivan, o legado de Henfil vai além do político. “Ele foi um dos primeiros artistas a ter a coragem de assumir publicamente a aids. Precisou que ele fosse embora para que mudasse o tratamento dado ao sangue no País. Não havia controle. Hoje, o Brasil dá quase um exemplo nesse sentido.”
Segundo Granato, apesar de toda a expressão da obra do cartunista, o acervo e a memória dele ainda são muito destratados. Porém, para ele, o trabalho do mineiro ainda se faz presente de outras formas: “Tem mil coisas que, se você puxa um pouquinho, você vê que a pessoa sabe o que é, só não sabe de onde”.
O gesto do Top! Top! Top!, por exemplo, que o fradinho Baixinho fazia para dizer que alguém havia se dado mal, é para o diretor teatral algo já consagrado no cotidiano brasileiro e cartunistas mais contemporâneos beberam na fonte do Henfil. “São meio crias indiretas do Henfil mesmo”, diz.
E, ao que parece, essa relação de filiação continua atuante. Adepto à ideia do “riso que liberta”, Henfil foi testemunha de uma época, mas ultrapassou fronteiras. Ou, como na vontade que revelou em carta de 1978 – e que parece, de alguma forma, ter atingido: “Um dia, vou rasgar o papel que escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês, tudo com meu grande beijo”.
Atualidade em cena
Peça leva ao palco galeria de tipos saídos das tirinhas e apresenta um painel social do Brasil
Um painel de críticas sociais. É assim que Pedro Granato, diretor de Top! Top! Top!, define a peça apresentada nos dias 15 e 22 de abril no Sesc Santo Amaro. Com dramaturgia adaptada das tirinhas e personagens de Henfil, a apresentação ocorreu na praça coberta da unidade, convidando o público a interagir com os atores.
Granato explica que a peça segue a lógica dos quadrinhos e da cena de rua, em que a necessidade é capturar rapidamente a atenção do espectador que está de passagem: “A pessoa pode ver um trecho da peça e ela já entende. A peça não precisa ser vista como um todo para começar a fazer sentido. Cada cena se basta”.
No espetáculo, histórias de dois grupos de personagens se entrelaçam de forma não-linear: os fradinhos Cumprido e Baixinho, que filosofam sobre a solidariedade, e a trupe da caatinga, formada pelo Capitão Zeferino, o Bode Orelana e a Graúna, que tenta sobreviver na dura realidade do Sertão nordestino. Passagens das crônicas Cartas da Mãe também entram na narrativa de forma adaptada.
O grupo IVO 60, formado em 2000, buscou no trabalho do cartunista mineiro temas cuja crítica ainda é pertinente. “A escolha foi por aquilo que ainda fazia sentido criticar atualmente”, diz Ana Flávia Chrispiniano, atriz da peça. Foi preciso fazer algumas adaptações, mas a atualidade do trabalho de Henfil e sua precisão continuam presentes: estão no alvo a televisão, a indústria da seca, a burocracia, a polícia.
“É meio triste, na verdade. Porque tem muita gente que fala ‘Não acredito, ele falou isso naquela época e isso ainda é relevante’. Mas ao mesmo tempo que tem isso, ele mostra esperança nos personagens. Ele trata de um universo que é duro, mas não fica pra baixo.”
Desde 2008, quando estreou, Top! Top! Top! já foi apresentado em parques, escolas da rede pública e cidades do interior. As onomatopeias acabam costurando a peça: os personagens sempre se dão mal. A apresentação não é direcionada a crianças, mas a classificação é livre. “Os mais adultos leem que a gente está fazendo uma crítica direta, mas para as crianças também passa como uma coisa lúdica, engraçada”, diz Granato.
Os personagens da mão do povo
Henfil retratou em sua obra temas tipicamente brasileiros, como as contradições entre o Nordeste e o Sul do país. Confira os principais personagens do cartunista que disse: “Eu quero ser a mão do povo desenhando”
Bode Orelana – Culto, alimentava-se comendo livros e revistas e indignava-se com os rumos da política. Beirando muitas vezes o cinismo, pois preocupava-se mais com o falar do que com o fazer, representava uma crítica do cartunista aos intelectuais da época.
Graúna – Com a forma de um ponto de exclamação, a ave negra que estava sempre com fome é talvez o personagem mais famoso e um dos mais reconhecidos até hoje. Com sua ingenuidade, revelava verdades que não eram tão fáceis de digerir. Junto ao Bode Orelana e ao Capitão Zeferino, formava a turma da caatinga, que Henfil usava para criticar as mazelas do Nordeste (a pobreza, a concentração de renda, os latifúndios) e espinafrar o “Sul Maravilha”, idealizado como “terra de oportunidades”.
Capitão Zeferino – Rústico, o cangaceiro representava a autoridade e fazia frente ao feminismo da Graúna.
Fradinho Cumprido – Henfil já afirmou que representava uma “versão antiga” de si mesmo. Submisso, temente a Deus, quase “carola” e alienado, era também bondoso. Não era raro apresentar sentimentos de culpa sem, no entanto, tomar alguma atitude em relação aos problemas que o cercavam.
Fradinho Baixinho – Se Cumprido é a versão antiga, esta seria a “atual” de seu criador. Ao contrário de Cumprido, não tinha medo de ser “sacana” e fazer piadas, chegando, por vezes, ao sadismo. Questionador da moral e dos bons costumes, era dono de uma boca suja e mordaz.
Ubaldo, o Paranóico – Contemporâneo do fim da ditadura, temia que a abertura do regime fosse um golpe dos militares. Enquanto todos estavam esperançosos, Ubaldo permanecia medroso, com os nervos à flor da pele, esperando ser capturado a qualquer momento.
::