Postado em 01/03/1998
JOSÉ GERALDO COUTO
O cinema brasileiro é a cara do Brasil? A resposta será afirmativa se levarmos em conta que o país, afinal, tem muitas caras.
Há 40 anos, quando o Cinema Novo eclodiu, a coisa era, de certo modo, mais fácil: tratava-se de expor as muitas e graves mazelas sociais que tinham permanecido ocultas, ou pelo menos ausentes das telas, ocupadas até então pelas chanchadas ligeiras, melodramas "escapistas" ou aventuras exóticas (como os filmes de cangaço).
O Cinema Novo teve um grande impacto, inclusive internacional, por apontar suas câmeras para as precárias favelas (Rio zona norte, Cinco vezes favela), para o sertão miserável (Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol, Os fuzis) e, mais raramente, para as atribulações urbanas (O grande momento, A grande cidade, Os cafajestes).
Qualquer que fosse o cenário, o enfoque político-ideológico era basicamente o mesmo: urgia denunciar as contradições sociais e anunciar a emancipação popular que parecia iminente. Depois do movimento militar de 1964, que frustrou as expectativas da esquerda e lançou sua intelligentsia na perplexidade, os filmes do Cinema Novo passaram a refletir, de modo desesperado ou melancólico, sobre a derrota e sobre os impasses da ação política dos intelectuais (O desafio, Terra em transe, O bravo guerreiro).
A par da busca de formas estéticas "descolonizadas" para expressar a realidade brasileira, havia uma bússola comum aos autores do Cinema Novo: a visão marxista do mundo.
De lá para cá, essa unidade se esfacelou. O cinema brasileiro vivenciou de tudo nas últimas décadas: do experimentalismo radical do underground (chamado pejorativamente de "udigrudi") ao namoro com o grande público (com filmes como Dona Flor e seus dois maridos e as comédias infantis dos Trapalhões), das pornochanchadas às adaptações de obras literárias "respeitáveis", da precariedade trash à estética publicitária.
Costuma-se definir a "era Collor" como um momento de total desarticulação da atividade cinematográfica no país, depois da qual, nos últimos quatro ou cinco anos, estaria ocorrendo uma inequívoca retomada da produção, com um número expressivo de filmes sendo feitos e chegando às telas.
Antes de abordar essa retomada – motivada sobretudo pelas leis de incentivo (Lei do Audiovisual, Lei Rouanet, leis estaduais e municipais) – e analisar os filmes que ela tem dado à luz, cabe chamar a atenção para o que aconteceu na última década no mercado cinematográfico brasileiro.
A primeira constatação a ser feita é a de que, por mais danosa que tenha sido a política do governo Collor para o setor – fim dos órgãos de financiamento e controle, implantação de um laissez-faire que só beneficiou o hegemônico produto americano –, as razões da crise do cinema nacional são maiores e mais profundas.
A crescente concentração de renda na sociedade brasileira, a deterioração dos centros urbanos, a hegemonia brutal conquistada pela televisão na indústria de entretenimento, a difusão do videocassete – todos esses fatores juntos determinaram uma mudança substancial do perfil do público de cinema no Brasil.
O preço do ingresso praticamente quadruplicou nos últimos 20 anos (de cerca de US$ 1 a cerca de US$ 4, em média). Os grandes cinemas populares – localizados no centro das metrópoles, nos bairros periféricos, nas cidades do interior – fecharam, enquanto surgiam as pequenas salas dos shopping centers. O público de cinema diminuiu e se elitizou.
A platéia popular que, em outros tempos, divertiu-se com os filmes de Mazzaropi, com as pornochanchadas ou com as comédias dos Trapalhões praticamente não existe mais. Está em casa, suprindo suas necessidades de ficção e entretenimento com as telenovelas e os programas de auditório.
Quem vai ao cinema no Brasil hoje, com raras exceções, é uma pequena classe média urbana, com os olhos voltados para a América do Norte como meca de consumo e estilo de vida. É um público essencialmente avesso ao cinema brasileiro, justamente por não querer olhar para o próprio país e suas misérias. É, também, um público educado pelas convenções narrativas e temáticas do cinemão hollywoodiano (e, acessoriamente, das telenovelas brasileiras).
É nesse contexto novo e complexo que buscam um lugar ao sol os filmes nacionais da "retomada".
Que Brasil aparece nesses filmes? Eis uma pergunta que não admite uma resposta simples e única. São, na verdade, muitos os Brasis que aparecem na tela neste momento. As razões dessa diversidade são inúmeras, mas podemos distinguir as três mais importantes:
Como resultado desses três fatores, vemos uma diversidade de temas, ambientações e formas narrativas raras vezes verificada em outros momentos de nosso cinema.
Houve, por exemplo, quem apostasse – com êxito desigual – no veio cômico, seja revisando e caricaturando a história do país (como Carlota Joaquina, de Carla Camurati), seja retomando a tradição da comédia de costumes (Pequeno dicionário amoroso, de Sandra Werneck, O homem nu, de Hugo Carvana, Sábado, de Ugo Giorgetti, e Como ser solteiro, de Rosane Svartman), seja parodiando o gênero policial (Ed Mort, de Alain Fresnot).
Houve quem revisitasse a história com intenções mais didáticas e espetaculares (Sérgio Rezende em Lamarca e Guerra de Canudos, Bruno Barreto em O que é isso, companheiro?).
Houve a retomada de um gênero autenticamente nacional, como o cangaço (com O cangaceiro, de Aníbal Massaini, Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry, e Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira), e o retorno às adaptações literárias "seguras" (como Tieta, de Cacá Diegues, e Policarpo Quaresma, de Paulo Thiago).
Alguns cineastas outsiders, como Carlos Reichenbach e Júlio Bressane, continuaram experimentando seu caminho absolutamente pessoal.
E houve, por fim, quem se arriscasse por estradas novas, tentando dar uma resposta original aos problemas da atualidade: Tata Amaral com Um céu de estrelas, Beto Brant com Os matadores, Murilo Salles com Como nascem os anjos, Walter Salles Jr. com Terra estrangeira, etc.
Os temas mais candentes da realidade social brasileira não deixaram de aparecer nas telas, mas sua abordagem já não é mais frontal, combativa e ideológica, como ocorria no Cinema Novo. A ênfase, de um modo geral, tem recaído sobre a construção de tramas e situações envolventes (ou divertidas), com os problemas do país servindo como pano de fundo. Em outras palavras: com raras exceções, o acento hoje está no entretenimento, e não mais na denúncia, no protesto ou na politização.
Entre os temas mais freqüentes nos filmes recentes está o da violência urbana, muitas vezes relacionada às contradições e injustiças sociais. Crise social e violência urbana estão associadas, por exemplo, em Dezesseis zero sessenta, de Vinicius Mainardi, Como nascem os anjos, de Murilo Salles, Um céu de estrelas, de Tata Amaral, Quem matou Pixote, de José Joffily, Terra estrangeira, de Walter Salles Jr., e, em menor grau (de violência, não de crítica social), Sábado, de Ugo Giorgetti.
Também a posse da terra – e os conflitos em torno dela – tem aparecido com certa freqüência. Alguns exemplos são Jenipapo, de Monique Gardenberg, Os matadores, de Beto Brant, O sertão das memórias, de José Araújo, e O cego que gritava luz, de João Batista de Andrade. Nesse terreno, é digno de nota, como novidade, o filme Buena sorte, de Tania Lamarca, tentativa não muito bem-sucedida de retratar o interior modernizado e rico dos estados de São Paulo e Minas Gerais, com seus rodeios, caminhonetes importadas e moda country.
As mudanças de atitude no plano da moral e dos costumes – sobejamente refletidas já nas telenovelas – são fundo e figura em comédias como Pequeno dicionário amoroso, de Sandra Werneck, Como ser solteiro, de Rosane Svartman, O homem nu, de Hugo Carvana, e, mais uma vez, Sábado, de Ugo Giorgetti.
A própria promiscuidade entre poder político, mídia e publicidade recebeu um tratamento incisivo em Doces poderes, de Lucia Murat.
Enfim, o Brasil está nas telas, com todas as suas contradições e precariedades. O que os filmes nacionais não têm mais apresentado – para o bem ou para o mal – é interpretações fechadas dos problemas abordados, e muito menos propostas de solução para eles.
Na selva de filmes das últimas safras – cada um deles merecedor de uma análise à parte, o que não é o objetivo deste artigo –, é possível detectar algumas tendências gerais que podem ajudar a esclarecer e discutir a produção recente.
Uma tendência que salta aos olhos é a da releitura de nosso passado histórico. Esse olhar retrospectivo pode se concentrar em grandes eventos: a guerra de Canudos, a guerrilha urbana sob o regime militar (em O que é isso, companheiro?), a instalação da base militar americana em Natal (em For all, de Luís Carlos Lacerda e Buza Ferraz), a vinda da família real portuguesa ao Brasil (Carlota Joaquina), a Guerra dos Farrapos (em Anahy de las Misiones, de Sérgio Silva). Pode também se dirigir a personalidades marcantes: Lamarca, Bocage (Bocage, o triunfo do amor, de Djalma Limongi Batista), Luiz Carlos Prestes (O velho, de Toni Venturi), sem contar os filmes em preparação sobre Assis Chateaubriand, Villa-Lobos, Rondon, etc.
Por último, há os filmes que não giram necessariamente em torno de nenhum marco factual, mas que não deixam de ser uma leitura de nossa formação histórica, seja remota (O guarani, de Norma Bengell), seja mais ou menos recente (O quatrilho, de Fábio Barreto, Lua de outubro, de Henrique de Freitas, sem esquecer os citados filmes de cangaço).
Claro que, dentro desse grande bloco de produções de época, existem diferenças radicais de abordagem e de opção estética. Guerra de Canudos é um épico didático com formato de série de TV, For all é uma chanchada, Bocage é uma alegoria delirante, O que é isso, companheiro? é um thriller político.
Dentro do próprio cangaço, os enfoques são contrastantes: enquanto Aníbal Massaini, em sua refilmagem do clássico O cangaceiro (Lima Barreto, 1952), tentou requentar fórmulas obsoletas de entretenimento popular, os jovens pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas buscaram um ângulo diferente para abordar o tema, retratando o processo de modernização do sertão e "aburguesamento" do cangaço em Baile perfumado.
De todo modo, a grande quantidade de filmes históricos ou de época parece indicar que existe uma demanda do público (ou de parte do público) por um mergulho no passado, certamente com o objetivo de iluminar melhor a complexidade do presente.
Outra constante que se pode perceber na maioria dos filmes dos últimos anos é a presença da televisão, seja como tema, "personagem", modelo de dramaturgia ou horizonte estético.
A televisão aparece de maneira muito semelhante em dois filmes: Um céu de estrelas e Como nascem os anjos. Ambos são dramas claustrofóbicos que se transformam em tragédias sangrentas, e em ambos a ação é cercada, registrada e influenciada pelas câmeras de TV.
Personagens aparecem na TV ou são discutidos nela em Doces poderes, O homem nu, Como ser solteiro, O que é isso, companheiro?, Jenipapo e Ed Mort. É uma notícia de telejornal (o anúncio do Plano Collor) que dá origem à tragédia e desencadeia toda a ação de Terra estrangeira. E é a filmagem de um comercial de TV que propicia a situação cômico-dramática de Sábado.
Mas a presença da televisão no cinema brasileiro recente não se limita a essas aparições ou referências explícitas. Sua influência se estende à dramaturgia, à escolha dos elencos e à linguagem narrativa dos filmes.
Alguns exemplos flagrantes: Pequeno dicionário amoroso tem seu formato claramente inspirado nos programas da série Comédia da vida privada; O quatrilho tem a estética conservadora e engomada das telenovelas e minisséries de época; Tieta tentou pegar carona no sucesso da novela homônima; Guerra de Canudos foi concebido como uma minissérie (e assim acabou exibido na Globo).
Filmes em que a TV não aparece e que não devem nada (pelo menos aparentemente) ao seu formato são aves raras em nosso cinema. A ostra e o vento, de Walter Lima Jr., Os matadores, de Beto Brant, Miramar, de Júlio Bressane, e Alma corsária, de Carlos Reichenbach, são algumas dessas notáveis exceções.
A quase onipresença da televisão no cinema nacional é compreensível. Por um lado, ela corresponde à importância avassaladora do meio na cultura brasileira hoje. Por outro lado, o recurso ao star system televisivo e a elementos da dramaturgia telenovelesca (entrecho sentimental e maniqueísta, narrativa linear, personagens unidimensionais, clichês dramáticos e visuais) é visto como uma espécie de passaporte para a comunicação imediata com o público. A experiência tem demonstrado que quase sempre se trata de um passaporte falso, que não dá acesso aos corações e mentes dos espectadores.
Da mesma forma, pouca gente parece disposta a pagar ingresso para ver clichês surrados do país e sua cultura, como a fórmula Jorge Amado-Sônia Braga-Bahia requentada em Tieta, ou o cangaço folclórico do Cangaceiro de Massaini, ou ainda o cafajestismo militante de Navalha na carne, de Neville de Almeida.
Os cineastas brasileiros que já tomaram consciência disso (ou que o souberam desde sempre) estão buscando outras maneiras de se comunicar com o grande público, ou então procurando públicos mais modestos e segmentados com que se comunicar. Sabem que têm de oferecer ao espectador alguma coisa que a televisão não lhe dá. Mas o quê?
É dessa busca, que está apenas no começo, que podemos esperar uma renovação vigorosa do cinema brasileiro.