Postado em 05/07/2011
por Marlene Jaggi
A Fazenda Vagafogo, localizada em uma área de 46 hectares de Pirenópolis (GO), tem uma das menores RPPNs do Brasil. São 17 hectares formados por cerrado, mata ciliar e convidativas corredeiras no rio Vagafogo, que atravessa e embeleza a propriedade. Quando foi criada, em 1990, quase ninguém sabia o que era uma RPPN – reserva particular do patrimônio natural. E pessoas como Evandro Engel Ayer, dono das terras, advogado e ecologista, eram consideradas no mínimo estranhas. Hoje, duas décadas depois, Evandro é um dos 1.034 proprietários de RPPNs no país. Ele, sua mulher, Catarina, os filhos e quatro funcionários se dedicam à preservação da natureza, mas também a outras atividades que garantem renda para conservar o que ele chama de santuário de vida silvestre. “Fazemos o aproveitamento e beneficiamento sustentável de frutos do cerrado, transformando-os em geleias, chutneys e frutas desidratadas e cristalizadas”, diz ele. A fazenda só não tem hospedagem, mas oferece muito para os 12 mil a 13 mil visitantes que recebe a cada ano: trilhas, caminhadas, rapel, arvorismo, pêndulo, além de um concorrido brunch aos domingos.
Como Evandro, aproximadamente 800 pessoas físicas são donas de RPPNs no Brasil. Nessa lista há pequenos proprietários rurais, como Evandro; empresários famosos, como José Roberto Marinho, presidente da Fundação Roberto Marinho, e celebridades como o cantor Ney Matogrosso. Marinho tem três RPPNs que somam 5.683 hectares no município de Cocos (BA), enquanto Ney Matogrosso criou a sua em Saquarema (RJ), onde preserva 26,11 hectares. Na relação das pessoas jurídicas a diversidade também é grande. De acordo com a Confederação Nacional das RPPNs, cerca de 20% das reservas particulares do país pertencem a companhias dos mais variados portes e setores.
São proprietárias de RPPNs, por exemplo, empresas como a MMX Corumbá Mineração, do grupo Eike Batista, com área preservada de 13.323,44 hectares na Reserva Natural Engenheiro Eliezer Batista, em Corumbá (MS); a Veracel Celulose, com sua Estação Veracel – RPPN com 6.069 hectares na cidade de Porto Seguro (BA) –, a International Paper, com a reserva Parque Florestal São Marcelo, localizada em 187,06 hectares de Mogi Guaçu (SP), e a Carbocloro, com a menor RPPN do país, que também fica em São Paulo e protege 0,7 hectare. Apesar de pequena, a RPPN Carbocloro provou, em 1992, quando foi criada, que é, sim, possível preservar o meio ambiente mesmo em municípios como Cubatão (SP), considerado, na época, um dos mais poluidores de São Paulo. Fortalecem esse time de proprietários instituições não governamentais de peso, como a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza e o Serviço Social do Comércio (Sesc), além de universidades como a Santa Cruz do Sul, do Rio Grande do Sul.
De diferentes origens e espalhados por vários estados brasileiros, esses proprietários têm em comum o respeito pela natureza e o desejo genuíno de contribuir para sua valorização, diz Rodrigo Castro, presidente da Confederação Nacional de Reservas Particulares do Patrimônio Natural. E a criação de uma RPPN representa a forma mais eficaz de garantir que locais importantes do ponto de vista da biodiversidade ou do paisagismo sejam declarados “áreas de conservação da natureza”, gravadas com perpetuidade pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Importância decisiva
O conceito de áreas particulares protegidas não é novo no país. Existe desde o Código Florestal de 1934, mas foi apenas em 1990 que as RPPNs surgiram de fato, por meio do decreto nº 98.914. E somente dez anos depois, com a publicação da lei nº 9.985, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc), as RPPNs passaram a ser uma das categorias das unidades de conservação do grupo de uso sustentável.
De acordo com Ricardo Soavinski, titular da Diretoria de Unidade de Conservação de Proteção Integral do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia ligada ao Ministério do Meio Ambiente, as RPPNs têm importância decisiva na preservação da natureza: possibilitam a participação da iniciativa privada no esforço nacional de conservação ambiental, ajudam a ampliar o número de áreas protegidas no país e diversificam as atividades econômicas nessas regiões, criando novas oportunidades de emprego e renda. Além disso, diz ele, as reservas têm grande poder de difusão, contribuindo para o estabelecimento de estratégias de conservação, especialmente em biomas muito fragmentados.
Para os proprietários, a iniciativa traz uma série de vantagens, como isenção ou redução do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) na área da RPPN, financiamento de projetos no Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e preferência na análise de pedidos de crédito agrícola, além de apoio e cooperação de entidades públicas e privadas, a exemplo de instituições ambientalistas, na proteção, gestão e manejo do imóvel. Outro ponto importante é que a área de uma RPPN jamais poderá ser desapropriada, uma vez que já cumpre seu papel com a proteção ambiental.
Em contrapartida, é preciso obedecer a critérios preestabelecidos e estar preparado para importantes desembolsos. Numa RPPN só podem ser desenvolvidas atividades de visitação com fins turísticos, recreativos ou educacionais, assim como pesquisas científicas, desde que não comprometam o equilíbrio ecológico das espécies ali existentes. Além disso, toda RPPN precisa ter um plano de manejo – documento técnico que define como as atividades deverão ser desenvolvidas e de onde virão os recursos para assegurar a conservação da biodiversidade. Isso, em tese, não é complicado: é só seguir o “Roteiro Metodológico para Elaboração de Plano de Manejo para Reservas Particulares do Patrimônio Natural”, fornecido pelo Ibama, após a criação da RPPN.
Antes da definição do plano de manejo, porém, é necessário seguir as etapas previstas para a criação de uma RPPN. O processo, que antes levava anos, está hoje muito mais simples, informa Soavinski. Os proprietários interessados devem primeiramente preencher um requerimento e encaminhá-lo ao ICMBio, com a documentação necessária. O material é então avaliado e procede-se a uma vistoria técnica no imóvel. Se tudo estiver em ordem, o ICMBio faz uma consulta pública sobre a transformação da área privada em reserva do patrimônio natural. Passada essa fase, é emitido o termo de compromisso ao proprietário, que deve ser averbado em cartório pelo dono do imóvel. Depois da averbação, o ICMBio publica a portaria de criação da RPPN.
Avanço
As 1.034 RPPNs existentes hoje no Brasil preservam 691 mil hectares. É um número expressivo, que veio crescendo muito nos últimos tempos, observa Rodrigo Castro. No ano de sua instituição (1990), foram contabilizadas dez. Cinco anos depois, já eram 76. Em 2000 o número saltou para 474, e em 2005 para 709. “No ano passado rompemos a barreira de mil RPPNs no Brasil”, diz Castro. Esse avanço é resultado de vários fatores, entre eles a adoção de uma plataforma na web que reduz em 70% o trabalho operacional necessário à criação de uma RPPN, a par do empenho das três esferas governamentais (federal, estadual e municipal) no desenvolvimento de mecanismos que aceleram esse processo – uma antiga reivindicação. “Esperei cinco anos para criar duas unidades”, diz a geógrafa Maria Cristina Weyland Vieira, dona das RPPNs de Alfenas e Monte Belo, em Minas Gerais, e vice-presidente da Arpemg, a associação que reúne as reservas particulares mineiras.
Segundo Soavinski, o governo federal responde pela criação de mais da metade das reservas: são 561 unidades, totalizando 489 mil hectares de área protegida. Foi a iniciativa dos estados, no entanto, que possibilitou o avanço das RPPNs: 17 deles contam hoje com legislação específica para essa finalidade e 13 efetivamente criaram reservas.
A distribuição geográfica dessas unidades de proteção da natureza revela que há iniciativas em todos os estados brasileiros. No ranking dos que mais têm RPPNs, de acordo com dados da confederação nacional do setor, Minas Gerais aparece no topo, com 241 unidades, seguido pelo Paraná, com 217. A maior extensão em área de reservas particulares protegidas, no entanto, fica em Mato Grosso, com 172.980,67 hectares distribuídos em 15 RPPNs. Na última posição no ranking está o Acre, com apenas uma RPPN de 38,01 hectares. São Paulo também tem pouca expressão nesse tipo de iniciativa. Há no estado 46 RPPNs, que totalizam 6.781,12 hectares.
Minas Gerais tem uma das RPPNs mais conhecidas do país: o Santuário do Caraça. Criada em 1994 pelos padres da Província Brasileira da Congregação da Missão, a reserva fica nos municípios de Catas Altas e Santa Bárbara e faz divisa com Ouro Preto e Mariana. Tem 10.187,89 hectares de mata atlântica de interior, cerrado e campos de altitude e integra a área das Reservas da Biosfera da Serra do Espinhaço e da Mata Atlântica. A RPPN é também um dos divisores de duas grandes bacias hidrográficas, a do rio São Francisco e a do rio Doce, o que demonstra sua importância para a conservação e para o equilíbrio ecológico local.
De acordo com Aline Cristine Lopes de Abreu, coordenadora ambiental da reserva, o santuário está às vésperas de aprovar seu plano de manejo, o que deverá contribuir para melhor aproveitamento de seu potencial. Atualmente, o Caraça é conhecido por seu santuário religioso, por sua pousada de passado histórico, como colégio onde estudaram importantes personalidades do país, mas também por ser local de várias pesquisas, consequência de sua rica biodiversidade, em que se destacam 202 espécies de orquídeas, nove das quais em risco de extinção no estado, 339 de aves, muitas delas também ameaçadas, como o jacuaçu, o gavião-pega-macaco e o pica-pau-rei, além de 66 de mamíferos, como o lobo-guará, mais uma espécie em perigo de desaparecer.
A Bahia é também importante em número de reservas e em área protegida: são 89 RPPNs com 43.835,97 hectares destinados à preservação. Desse total, 6.069 hectares constituem a Estação Veracel. Maior reserva privada do nordeste e a segunda maior do bioma mata atlântica, essa RPPN tem o reconhecimento da Unesco como sítio do patrimônio mundial e é considerada área-chave para a biodiversidade, em função de sua importância para a proteção de espécies ameaçadas de extinção.
Com 80% da área coberta por floresta primária, a Estação Veracel é importante reserva de mananciais para os municípios vizinhos da Costa do Descobrimento. Proteger essa floresta significa preservar parte das bacias dos rios dos Mangues, Ronca Água e Camurugi, além das 115 nascentes que existem em seu interior, entre elas a do rio Jardim e a do rio Mutari, de grande valor histórico, pois foi neste último que Pedro Álvares Cabral abasteceu sua esquadra com água doce ao chegar à costa brasileira, como conta Lígia Mendes, bióloga responsável pelo local.
Segundo ela, a RPPN tem como meta ampliar sua atuação com programas que possam melhorar a geração de renda das comunidades vizinhas. “A ideia é criar condições para que, em vez de caçar, a pessoa possa, por exemplo, hospedar um observador de pássaros”, diz Lígia. Na área de educação ambiental, a atuação se dá em várias frentes, do programa que recebe visitantes na estação ao que leva o conhecimento ambiental às escolas, seus alunos e professores. No centro de pesquisa local são desenvolvidos estudos como o de monitoramento de mamíferos de médio e grande porte existentes na estação. Entre as 16 espécies identificadas até agora estão a paca e a onça-parda. Outra pesquisa em curso na reserva é o Projeto Harpia na Mata Atlântica, que analisa a incidência dessa ave no bioma e já devolveu à natureza dois exemplares que lá chegaram precisando de cuidados. O foco agora é o monitoramento de um ninho encontrado na região.
Educação e renda
O destaque do estado de Mato Grosso se deve em grande parte à RPPN Sesc Pantanal, com 87.871 hectares, criada em 1996 em Barão de Melgaço. O investimento na recuperação de uma área degradada do pantanal mato-grossense transformou fazendas econômica e ambientalmente esgotadas na maior unidade de conservação particular do país, diz Maron Emile Abi-Abib, diretor-geral do Departamento Nacional do Sesc. A RPPN faz parte da Estância Ecológica Sesc Pantanal, que inclui outras quatro unidades: o Hotel Sesc Porto Cercado, o Parque Sesc Baía das Pedras, o Centro de Atividades de Poconé e a Base Administrativa. Estruturada para empreender ações práticas voltadas para a educação e proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável, a estância já foi foco de 47 projetos e pesquisas em parceria com universidades federais, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e entidades científicas. Entre as iniciativas de destaque estão os programas Borboletário, Bocaiuva, Cumbaru, Colmeia, Quintal Inteligente e Fábrica de Criação Popular, que fomentam a renda familiar e beneficiam mais de 500 pessoas.
A educação ambiental na RPPN do Sesc acontece durante as atividades de turismo paisagístico, cultural e pantaneiro. A estrutura de serviços existente possibilita admirar a beleza cênica, por meio de canoagem, safáris fotográficos, visitas a locais de manifestações de arte popular e indígena, focagem de fauna, observação de pássaros e ninhais, passeios fluviais e terrestres, interação com a vida do pantaneiro, trilhas interpretadas e autoguiadas. Um exemplo do peso da reserva na proteção da natureza é o aumento de 18 para 350 araras-azuis na região, todas monitoradas com chip.
O Sesc foi também responsável pela criação da primeira RPPN do estado de Roraima, na estância ecológica que mantém na serra do Tepequém, no município de Amajari. São 54,581 hectares de preservação, com espaços para o turismo ecológico, onde os visitantes podem observar animais como tamanduás, jabutis, gaviões, garças, assim como paisagens de imensos buritizais e cachoeiras.
A Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza é outra instituição conhecida pelo trabalho que desenvolve em suas RPPNs. A primeira, com 2,34 mil hectares, foi criada em 1994. A Reserva Natural Salto Morato fica no maior e mais preservado remanescente contínuo de mata atlântica do país, em Guaraqueçaba, no litoral norte paranaense. Em 1999, a área foi reconhecida pela Unesco como sítio do patrimônio natural da humanidade. Seu plano de manejo, aprovado em 2001, é referência entre os chamados “repepenistas”. “A fundação decidiu manejar a reserva como um parque nacional, com proteção integral”, diz a diretora executiva, Malu Nunes.
Em 16 anos, a biodiversidade de Salto Morato atraiu cerca de 70 mil visitantes. Nesse período, foram realizadas na reserva mais de 80 pesquisas e descobertas duas novas espécies de peixes. Segundo Malu, a RPPN começa agora a passar por melhorias na estrutura voltada para uso público, como o Centro de Visitantes e a Trilha da Figueira. Também estão previstas para os próximos anos outras atrações, como a implantação de novos passeios e a criação de roteiros de observação de aves. Além disso, a RPPN dará continuidade às 14 pesquisas em andamento e às ações do projeto Fauna e Flora em Risco, iniciado em 2010, com o objetivo de conservar o palmito-juçara, a jacutinga e o macuco, espécies ameaçadas ou vulneráveis devido a desmatamento, extrativismo ilegal e caça predatória. “Também testamos métodos não agressivos para acabar com o capim braquiária, para que a vegetação nativa volte ao local”, conta Malu.
A experiência de Salto Morato foi fundamental para que a fundação criasse em 2009 uma segunda RPPN, desta vez fora do Paraná – no município de Cavalcante (GO), a 22 quilômetros do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Com 8,9 mil hectares, a Reserva Natural Serra do Tombador é a maior RPPN do cerrado goiano e a quarta de toda a região desse bioma – o segundo mais ameaçado do país. A aquisição de terras exigiu um investimento de R$ 1,8 milhão, dos quais US$ 1 milhão foram aportados pela The Nature Conservancy (TNC). Responsável pela implantação e manutenção da reserva, assim como pela gestão da área, a Fundação Grupo Boticário já investiu, até agora, outros R$ 600 mil na produção do plano de manejo e em obras de infraestrutura, como o Centro de Conservação do Cerrado, que terá mais de 1,3 mil metros quadrados de área total, com espaço para alojamentos, cozinha, laboratórios e auditório.
Financiamento
Os custos para formar uma RPPN variam muito, conforme o tamanho da área a ser preservada e as atividades que se pretendem realizar. Na Reserva Natural Salto Morato, por exemplo, foram investidos de 1994 até hoje US$ 2,5 milhões na implantação e manutenção. São desembolsos como esses que impedem a propagação de projetos semelhantes no Brasil, diz Malu.
A opinião é compartilhada por vários repepenistas. A boa notícia é que existem iniciativas destinadas a levantar recursos para essas unidades. Segundo o presidente da Confederação Nacional de Reservas Particulares do Patrimônio Natural, três delas estão hoje em andamento: uma da Aliança para a Conservação da Mata Atlântica, outra que incentiva as RPPNs do Pantanal – mantida pela Associação de Proprietários de Reservas Particulares do Patrimônio Natural de Mato Grosso do Sul (Repams), com o aval da Conservação Internacional – e o Programa de Incentivo a Conservação em Terras Privadas na Caatinga – de responsabilidade da Aliança da Caatinga, formada por oito instituições ambientais que atuam nesse bioma.
No caso da Aliança para a Conservação da Mata Atlântica, trata-se de uma linha de financiamento, lançada em 2003, destinada à criação de novas RPPNs e a projetos de gestão dessas áreas – planejamento, ações de pesquisa, proteção e fiscalização, educação ambiental, visitação e divulgação, entre outros. Somente para se ter ideia, um edital do ano passado ajudou a conservar cerca de 14 mil hectares de mata atlântica, com recursos de R$ 356 mil para 21 projetos selecionados de um total de 65 recebidos. Apesar dessas iniciativas, há ainda muito a fazer para estimular a conservação voluntária, diz Castro, lembrando, por exemplo, a possível inclusão das RPPNs em programas públicos de monitoramento e de combate a ameaças ao meio ambiente.