Postado em 03/09/2009
Em 80 anos, o país mudou muito, mas ainda sobram deficiências alarmantes
HERBERT CARVALHO
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Na tarde do dia 3 de outubro de 1930 o general Gil de Almeida, comandante das forças federais em Porto Alegre, estranhou quando lhe informaram que um soldado sob seu comando não havia conseguido postar uma carta. Mandou consultar Getúlio Vargas por telefone sobre o que estaria acontecendo e obteve do presidente – como então se chamavam os governadores – do Rio Grande do Sul uma resposta ambígua: “Diga ao general que as providências serão tomadas”. Na verdade, já haviam sido: naquela hora – 16h30 – não apenas o prédio dos Correios caíra em mãos de civis armados, mas o próprio quartel-general da 3ª Região do Exército fora cercado. Em poucas horas a capital gaúcha estava em poder do estado-maior da revolução, chefiado pelo tenente-coronel Góis Monteiro. Dois dias depois, todo o Rio Grande do Sul, com lenço vermelho no pescoço, preparava-se para invadir Santa Catarina, o que não foi preciso: esse estado e também o Paraná não ofereceram resistência às forças gaúchas, que em menos de uma semana subiram até a cidade paulista de Itararé, onde 15 mil homens bem armados de ambos os lados deveriam travar a mais sangrenta batalha da história em território brasileiro. Como se sabe, porém, ela não aconteceu: a essa altura o movimento que estalara simultaneamente em Minas Gerais, na Paraíba e no Recife já tinha envergadura suficiente para fazer com que a cúpula militar – que desde 1922 enfrentava as revoltas do ciclo tenentista – decidisse evitar mais derramamento de sangue, depondo o presidente Washington Luís no dia 24 de outubro.
A partida para o exílio do último representante da oligarquia cafeeira na presidência encerrava o período conhecido na história do Brasil como República Velha. Nas quatro décadas decorridas desde 15 de novembro de 1889 o Brasil tornara-se um país fragmentado pela autonomia excessiva dos estados, a partir do modelo constitucional copiado em 1891 dos EUA, que nos transformara nos Estados Unidos do Brasil (com 20 estados e um distrito federal), mas sem as características econômicas, históricas e culturais daquele país. Na maior parte do período, paulistas e mineiros revezaram-se na presidência da República, chancelados por eleições nas quais as mulheres não tinham direito a voto, que nem mesmo era secreto. Analfabetos (então maioria da população) e menores de 21 anos também não votavam. Em compensação, os mortos garantiam a vitória dos coronéis nas eleições locais e dos representantes dos cafeicultores, em nível nacional.
Agora, enquanto os revoltosos gaúchos amarram seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, para acompanhar a posse de Getúlio Vargas como chefe do governo provisório, saem de cena os fraques e as cartolas típicos da belle époque, característicos de uma elite agroexportadora que, embora participante de uma industrialização incipiente, não reconhecia aos trabalhadores da cidade e do campo qualquer direito, tratando a questão social como “caso de polícia”.
A partir de outubro de 1930, o país, que nem sequer tinha ministérios para tratar de educação, saúde, trabalho ou previdência – e cujos poucos e mal formados funcionários públicos eram nomeados por apadrinhamento político, sem qualquer tipo de concurso público –, ingressava finalmente no século 20, estabelecendo o aparelho de Estado centralizado que faria sua economia crescer em média 7% ao ano nas cinco décadas seguintes.
Por coincidência, em 2010, no mesmo dia 3 de outubro e em meio a uma crise financeira internacional muito semelhante à que se abateu sobre o mundo no final da década de 1920, cerca de 130 milhões de brasileiros vão às urnas eleger um governo ao qual caberá explorar o petróleo do pré-sal, garantir a sustentabilidade ambiental e manter a inclusão econômica e social de milhões de pessoas recém-incorporadas aos mercados de trabalho e de consumo. Se agregarmos a essas tarefas a definição do papel do Estado na economia, veremos que o Brasil e o mundo se acham hoje diante de escolhas que representam um divisor de águas semelhante ao de 80 anos atrás, o que possibilita, na comparação entre ambos os momentos, tirarmos as devidas lições da história.
Crise de 1929
Em 1930, o Brasil tinha 37,6 milhões de habitantes, dos quais 70% viviam em áreas rurais, ao contrário de hoje. As maiores cidades eram o Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, que, com respectivamente 1,5 milhão, 887 mil e 394 mil habitantes, ainda estavam muito distantes de se transformar em megalópoles. A expectativa de vida era de 39 anos para homens e 42 para mulheres, quase a metade da atual. Em razão da crise mundial que derrubara os preços do café, o país contraíra uma dívida externa impagável (cuja moratória seria declarada em 1931) e 2 milhões de desempregados faziam purgar a chaga social que se alastrara desde o fim da escravidão, que não fora acompanhado de uma reforma agrária.
O programa da Aliança Liberal – com o qual Vargas se apresentara ao pleito de 1930 (em que fora derrotado pela fraudulenta máquina governista) –, que começava a ser aplicado pelo governo revolucionário – ou contra-revolucionário, conforme o ponto de vista do então presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, segundo o qual a revolução tivera de ser feita antes que o povo a fizesse – visava à adoção de normas que assegurassem, entre outros direitos, salário mínimo e férias a todos os trabalhadores, reforma da lei eleitoral, do sistema judiciário e do ensino, anistia aos punidos pelos levantes tenentistas, liberdade de pensamento e defesa do café e da pecuária.
Para implementá-lo, são criados os ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Educação e Saúde Pública. Todos os mandatos eletivos são extintos e os Legislativos, fechados. Como cada estado era até então quase um feudo de uma ou duas famílias das elites proprietárias – situação que, em alguns casos e com poucas diferenças, prevalece até hoje –, seus comandos são entregues aos tenentes-interventores, encarregados de transferir o poder das oligarquias regionais para o governo central, que unificará o mercado nacional, abrindo caminho a um capitalismo industrializante, orientado a substituir a dependência secular de produtos importados.
Assim, começa a se alterar o modelo agroexportador baseado em monoculturas, que determinara a estrutura política e econômica do Brasil desde a época do descobrimento. Sua fragilidade se evidenciara diante da tendência para a autarquia e o protecionismo seguida pelos países do hemisfério norte desde a eclosão da 1ª Guerra Mundial, e que se agravara com a crise desencadeada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. Não por acaso, entre 1930 e 1932 são derrubados na América Latina, com a participação de militares, como no Brasil, os governos oligárquicos de Argentina, Bolívia, Chile, Equador, El Salvador, Panamá e Peru, países também exportadores de produtos primários.
Em 1931 o Brasil adota as primeiras medidas para proteger a indústria nacional, proibindo a importação de máquinas e limitando as compras de artigos de luxo. Ao mesmo tempo, intervém na agricultura com a criação do Conselho Nacional do Café, que vai adquirir e queimar milhões de sacas do produto encalhado, estabelecendo a proibição de seu plantio e convertendo áreas para outras lavouras, como a do algodão. Ganha força o êxodo rural impulsionador da industrialização e da urbanização, movimento que, junto com a marcha para o oeste, mudará a face do país na segunda metade do século passado.
Sanear e educar
Do ponto de vista social, o Brasil da década de 1930 é uma calamidade. Em 1935, das 544 cidades brasileiras com mais de 2 mil habitantes, apenas 20 contavam com algum serviço de água e esgoto. Lepra, doença de Chagas, febre amarela, esquistossomose, tuberculose e até a peste bubônica dizimavam a população. Na área educacional, a instrução pública atendia apenas 2 milhões de alunos no curso primário. Inexistiam escolas técnicas, e as superiores limitavam-se a formar bacharéis em direito que desde a Independência monopolizavam a direção política do país.
“Sanear e educar: eis o primeiro dever da Revolução”, resumiu em 1930 o ministro da Educação e Saúde Pública, Francisco Campos. Para a primeira tarefa, o governo estabeleceu três frentes: o Departamento Nacional de Medicina Experimental, dirigido por Carlos Chagas, o de Assistência Pública, sob a direção de Pedro Ernesto, que centralizava a rede nacional de hospitais, e o de Saúde Pública, comandado por Belisário Pena. Na segunda, o ensino secundário foi ampliado de seis para sete anos e dividido em dois ciclos: o ginasial (quatro anos), destinado a dar ao estudante uma formação humanística geral, e o clássico ou científico (três anos, equivalente ao atual ensino médio), objetivando prepará-lo para o ensino superior. A Inspetoria do Ensino Profissional Técnico e a Universidade Técnica Federal abriam caminho para o ensino profissionalizante demandado sobretudo pelas fábricas, que, por um decreto de 1939, deveriam manter cursos de aperfeiçoamento quando tivessem mais de 500 empregados.
Todas essas iniciativas governamentais exigiam cada vez mais funcionários públicos (cujo número dobrou entre 1930 e 1940), que passaram a ser admitidos por concurso e a desfrutar de estabilidade.
Finalmente, a pedra angular desse edifício, que até hoje representa a coluna vertebral do Estado brasileiro, foi dada pela legislação trabalhista. Ela regulamentou o trabalho da mulher e do menor, fixou a jornada de oito horas e instituiu o salário mínimo, o descanso semanal e as férias remuneradas. Estabeleceu ainda a Justiça do Trabalho e reconheceu a existência de sindicatos de trabalhadores e patronais, que ficariam atrelados a uma tutela governamental ainda hoje não totalmente superada.
Desse modo, a era Vargas, que entre 1930 e 1945 apresenta apenas um curto intervalo de garantias constitucionais e governos eleitos (de 1934 a 1937, quando se estabelece o Estado Novo), deixa ao país uma herança contraditória: modernizante, com legados como a siderúrgica pioneira de Volta Redonda (RJ), mas também populista e autoritária.
Em um de seus famosos discursos aos “trabalhadores do Brasil”, Vargas conclamou: “Hoje estais com o governo. Amanhã sereis governo”. Antecipava, profeticamente, a era Lula, que neste dia 3 de outubro fecha um ciclo, com a primeira eleição desde o fim da ditadura militar (1964-1985) sem a presença como candidato do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, que após três derrotas (em 1989, 1994 e 1998) seria eleito em 2002 – e reeleito em 2006 – como o primeiro operário presidente da República no Brasil.
Avanços
O Brasil de 2010 mudou muito em relação ao de 1930, mas ainda exibe anacronismos como trabalho escravo e desigualdades sociais e regionais profundas. Nesses 80 anos, tornou-se uma nação integrada, mas com graves deficiências de infraestrutura, em especial nas áreas de energia e transporte – evidenciadas pelo apagão de 2001, malhas rodoviárias e ferroviárias precárias ou inexistentes, portos e aeroportos saturados. Os 190 milhões de habitantes têm expectativa de vida superior a 70 anos e renda per capita anual de R$ 10 mil, mas a escolaridade média é de ínfimos seis anos.
Somos hoje um país praticamente industrializado, que produz de tudo, mas na pauta de exportações, que conta até com os sofisticados aviões da Embraer, ainda predominam produtos primários como minério de ferro, soja, carne de boi e de frango e celulose. Em anos recentes, o Brasil diversificou seu comércio externo, antes concentrado nos mercados dos EUA e da Europa, para atingir a distante Ásia, onde a China, grande compradora de commodities, substituiu em 2009 os EUA como nosso principal parceiro comercial. Como essas commodities tiveram forte valorização até a eclosão da crise internacional em 2008, o Brasil foi contemplado com uma receita extra, que o economista Paulo Rabello de Castro calcula em no mínimo US$ 250 bilhões, responsáveis pelo crescimento exuberante do PIB nos últimos anos (à exceção de 2009, auge da crise) e pelo aumento das reservas internacionais e do consumo interno.
A renda maior em mãos da população, fruto da estabilidade monetária proporcionada desde 1994 pelo Plano Real, aliada à maior oferta de empregos com carteira assinada, possibilitou o resgate de 25 milhões de pessoas da pobreza (renda de até meio salário mínimo, cujo valor atual é de R$ 510), enquanto 18 milhões deixaram de ser miseráveis (renda de até um quarto do salário mínimo), graças, sobretudo, a programas como o Bolsa Família. Em outras palavras, e números, entre 2001 e 2008 todos progrediram no Brasil, mas enquanto a renda per capita dos 10% mais ricos cresceu a um ritmo de 1,5% ao ano, para os 10% mais pobres a média foi de 8%. Como resultado dessa mobilidade social, hoje 59% da população tem renda familiar superior a três salários mínimos (49% correspondentes à chamada classe C, com rendimentos até dez salários mínimos, e 10% às classes A e B), qualificando o país como emergente – título dado àqueles que deixam de ser pobres, ainda que tenham largo caminho a percorrer para entrar no clube dos plenamente desenvolvidos.
Desafios
Papel fundamental nesse processo está sendo desempenhado pela oferta de crédito, que cresceu de R$ 380 bilhões em 2003 para R$ 1,4 trilhão em março deste ano, possibilitando a explosão de consumo de bens duráveis e a concretização do sonho da casa própria para milhões de famílias. Porém, como os juros no Brasil continuam os mais altos do mundo, surgem dúvidas: essa situação se sustenta? Conseguiremos manter na classe média todos os que lá chegaram, atrair para ela os 24 milhões de pobres remanescentes e erradicar a miséria em que ainda vivem quase 20 milhões?
Para isso teremos de superar alguns gargalos, e o pior deles está na área educacional. O Brasil conseguiu colocar todas as crianças na escola – uma obrigatoriedade constitucional desde 2009 – e tornar o analfabetismo apenas residual. A baixa qualidade do ensino público fundamental, no entanto, fez disparar o chamado analfabetismo funcional, que assola 20% da população com idade igual ou superior a 15 anos. Numa realidade em que vagas não são preenchidas por falta de mão de obra qualificada e num mundo que exige inovação tecnológica como diferencial competitivo, a falta de uma educação pública de qualidade em todos os níveis pode ser um obstáculo ao desenvolvimento tão grande quanto o mísero 1% do PIB reservado pelo governo para investimento em infraestrutura, em que pese todo o alarde feito em torno do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Outro desafio está na área ambiental. Como explorar os recursos do petróleo do pré-sal sem o risco de um desastre como o que ocorreu com a plataforma da British Petroleum no golfo do México, e sem deixar de ostentar a matriz energética mais limpa do planeta? Será possível manter o atual modelo de agronegócio e de produção de etanol a partir da cana-de-açúcar e ao mesmo tempo avançar na reforma agrária ou deter as devastações que ocorrem no cerrado e na Amazônia?
Todas essas questões estão em aberto e deverão ser respondidas ao longo da próxima década. Elas estarão no coração e na mente dos que escolherão o sucessor – ou sucessora – de Lula na presidência, além de outra, que afeta não apenas o Brasil, mas o mundo todo: conseguirá o Estado evitar a eclosão de novas crises, regulando o mercado, sobretudo o financeiro, sem com isso travar o dinamismo da economia?
O importante é que as respostas serão dadas pelo voto e na plenitude de um regime democrático consolidado e não pelas armas, nem sob ameaça de totalitarismos ou conflagração mundial, como há 80 anos. O novo Brasil que sairá dessa eleição precisa manter suas conquistas internas e o prestígio recente obtido no cenário internacional sem depender de líderes carismáticos como Vargas ou Lula. Tudo isso aumenta a responsabilidade de cada brasileiro – e não apenas em época eleitoral – na construção de uma sociedade voltada para o futuro, que não admita retrocessos políticos, econômicos ou sociais.