Postado em 03/09/2009
Eles vieram para trabalhar nos cafezais, mas seus filhos e netos marcaram presença na ciência brasileira
EVANILDO DA SILVEIRA
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As primeiras 165 famílias de imigrantes japoneses, compostas de 781 pessoas, desembarcaram do navio Kasato-Maru, no porto de Santos, no dia 18 de junho de 1908. Em 1941, eles já eram 188.986 no Brasil. Todos traziam na bagagem o sonho de ganhar dinheiro nos cafezais de São Paulo e retornar a sua pátria, mas a 2ª Guerra Mundial (1939-1945) forçou a uma mudança de planos. Sem alternativa, passaram a se integrar à sociedade brasileira, decisão que incluía encaminhar os filhos e netos para os estudos. Vieram para trabalhar na lavoura, mas aos poucos foram para a cidade a fim de estudar. Hoje, o resultado pode ser visto na contribuição constante que vêm dando ao desenvolvimento científico e tecnológico do país, principalmente em áreas como agricultura, saúde e medicina, física e engenharia.
O professor titular do Centro de História da Ciência da Universidade de São Paulo (USP), Shozo Motoyama, ele próprio um nissei (filho de imigrante japonês), lembra que apesar do desinteresse em relação às escolas superiores no período inicial, os imigrantes davam muita importância à educação, ensinando a língua japonesa e matemática elementar. “Todo agrupamento possuía uma escola”, explica ele.
Uns poucos, porém, foram mais longe e deram início, justamente nesse período em que a maioria de seus compatriotas estava presa à lavoura, a pesquisas científicas em solo brasileiro. É o que conta a professora titular da Escola de Enfermagem da USP Ana Maria Kazue Miyadahira, coordenadora do projeto Encontros e Memórias: a Inserção Nikkei na USP e na Sociedade Brasileira, que resultou num livro publicado em 2008 para marcar o centenário da imigração japonesa no Brasil. “Muita gente duvida quando se afirma que os imigrados ocuparam-se das ciências exatas e naturais já na década de 1930, antes mesmo do surgimento da USP”, diz.
Um exemplo citado por ela é o Instituto Kurihara de Ciência Natural Brasileira, fundado em 1931, em Mirandópolis, pelo lavrador Shihishi Kamiya e um grupo de amadores. Chamado por seus criadores de “o menor observatório astronômico do mundo”, o instituto realizou pesquisas com relativa importância nas áreas de astronomia, meteorologia, zoologia, botânica, arqueologia, antropologia e história. “Kamiya e seus amigos transformaram um velho galinheiro em observatório astronômico e enviavam dados de seus estudos para o Observatório de Kwazan, no Japão, e para o Observatório Nacional, no Brasil”, revela Ana Maria.
Números do sucesso
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do quadro de professores e de alunos da USP, a mais importante universidade do país, demonstram o sucesso do esforço de integração e o papel dos nikkeis (imigrantes japoneses e seus descendentes) na ciência brasileira. De acordo com o censo de 2000, o último realizado, 28,9% dos membros da raça amarela, na qual se incluem os nikkeis, concluíram o ensino superior, contra 10% dos brancos, 2,4% dos pardos, 2,2% dos índios e 2,1% dos negros. Na USP, o desempenho deles também chama a atenção. Embora não representem mais que 3% da população do estado de São Paulo, perfazem cerca de 15% dos alunos e de 4% a 5% dos professores. Nas áreas de saúde e medicina, os estudantes chegam a nada menos que 25%.
Uma das maiores contribuições tecnológicas dos imigrantes nipônicos até a 2ª Guerra Mundial deu-se sem dúvida na agricultura. Com o apoio do governo do país de origem, pode-se dizer que eles revolucionaram a produção agrícola brasileira. “Isso ocorreu sobretudo com a introdução de culturas que inexistiam no Brasil”, explica Alfredo Homma, do Centro de Pesquisa Agropecuária do Trópico Úmido, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), no Pará. “A lista é imensa. Na Amazônia, por exemplo, eles introduziram juta, pimenta-do-reino, mamão-havaí, melão, além de frutas como mangostão, rambutã e maracujá.”
Em outras regiões, os nikkeis foram os pioneiros no cultivo de plantas como abacaxi sem espinho e caqui. São contribuições muito significativas, pois na primeira metade do século passado os produtos agrícolas cultivados no Brasil não passavam de 20. Além disso, eles foram responsáveis pela introdução de tecnologia e do melhoramento genético de plantas, bem como de novas técnicas de cultivo, comercialização, difusão e importação.
Também foram pioneiros na sericultura, a criação do bicho-da-seda, que começou a partir de 1938, quando surgiu a Sociedade Colonizadora do Brasil (Bratac), que impulsionou essa atividade. A modernização da avicultura nacional se deve igualmente aos imigrantes, que, entre outros avanços, introduziram a comercialização de ovos, antes produzidos nos quintais brasileiros apenas para consumo familiar.
A cultura do associativismo foi outra contribuição que desembocou na introdução de novas tecnologias pelos nikkeis. Isso começou em 1927, com a criação da Sociedade Cooperativa de Responsabilidade Limitada dos Produtores de Batata em Cotia, mais tarde Cooperativa Agrícola de Cotia (CAC), cujas atividades se mantiveram até 1994. Seus técnicos realizaram pesquisas e importaram conhecimentos que resultaram no uso de práticas desconhecidas até então no Brasil, como a correção do solo por meio do uso de adubos químicos e orgânicos, o que teve como consequência o aumento da qualidade e da produtividade agrícola. Deve-se a eles ainda a plantação de hortaliças em estufas, a criação de novas variedades e o uso de enxertos para aprimoramento de plantas.
Atendimento exclusivo
Na área médica, a contribuição dos nikkeis também não foi pequena. Nos primeiros anos, por causa das dificuldades com a língua, eles não conseguiam se comunicar satisfatoriamente nas comunidades onde viviam, o que dificultava o atendimento médico. Para sanar o problema, o Japão assinou um convênio com o governo brasileiro para que doutores daquele país pudessem vir para cá para atender as colônias. Eram os chamados haken-i, que só podiam tratar dos imigrantes japoneses. O Brasil, porém, também acabou se beneficiando, pois foram eles os primeiros a detectar e tratar o tracoma e verminoses como o amarelão, além de iniciar pesquisas para o controle da malária e a difusão de conhecimentos sobre a leishmaniose e a tuberculose.
A carência de médicos nas colônias japonesas levou a outro resultado positivo. Sentindo-se desamparados, muitos dos imigrantes se esforçaram para que pelo menos um de seus filhos se formasse nessa profissão. Assim, a partir de 1939, muitos nisseis começaram a cursar medicina na USP – tendência que perdura até hoje e que se expandiu para outras universidades do país. Cerca de 20% dos estudantes que ingressam em algumas das melhores faculdades de medicina do país são descendentes de japoneses.
Na área de física, acontecimentos trágicos que abalaram os japoneses aqui residentes logo depois do fim da guerra resultaram numa fértil colaboração entre pesquisadores japoneses e brasileiros que dura até hoje. Na época, a colônia se dividiu em dois grupos. De um lado estavam os katigumi, que acreditavam na vitória do Japão no conflito e eram maioria. Do outro, os makegumi, cerca de 20% da colônia, que sabiam da capitulação e eram considerados derrotistas. Entre os katigumi, alguns fanáticos fundaram a organização terrorista Shindo Remmei, que assassinou 23 makegumi e feriu centenas de outros.
Para controlar a situação e convencer os katigumi de que o Japão havia de fato perdido a guerra, dirigentes e intelectuais da colônia convidaram, em 1952, personalidades japonesas famosas a vir ao Brasil dar seu testemunho. Para custear a viagem dessas pessoas arrecadaram entre os imigrantes cerca de 1 milhão de ienes. Um dos convidados foi o físico Hideki Yukawa, o primeiro japonês a receber o Prêmio Nobel, em 1949. Como ele não pôde vir, conta Shozo Motoyama, o dinheiro arrecadado para a viagem foi enviado para financiar pesquisas na área de física nuclear, em que ele atuava no Japão.
Muitos anos depois, em 1958, quando se comemorava o cinquentenário da imigração japonesa, Yukawa e outro grande físico, Mituo Taketani, em visita ao Brasil, fizeram questão de agradecer a ajuda recebida anos antes. Mais: propuseram ao respeitado cientista brasileiro César Lattes a colaboração entre físicos teóricos e experimentais de ambos os países. Surgia assim, quatro anos mais tarde, o projeto Colaboração Brasil-Japão de Raios Cósmicos, conhecida pela sigla CBJ, que persiste até hoje.
O dinheiro enviado ao Japão renderia mais uma contribuição à ciência brasileira: no mesmo ano de 1958, o professor Taketani aceitou o convite para dirigir o Instituto de Física Teórica (IFT) de São Paulo, hoje incorporado à Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Seu trabalho no IFT mereceu os maiores elogios, a ponto de a prestigiosa revista de física ‘Nuovo Cimento’ [da Sociedade Italiana de Física] escrever que ele operou um verdadeiro milagre no instituto, colocando-o na fronteira da investigação”, revela Motoyama.
Além dessas áreas, em várias outras há descendentes de imigrantes japoneses que se destacam por sua contribuição à ciência brasileira. Num capítulo do livro Encontros e Memórias, intitulado “Os nikkeis na USP – Introdução Histórica”, Motoyama cita alguns, entre os quais Célio Taniguchi, engenheiro naval que chegou a diretor da Escola Politécnica da USP. Ele se dedicou ao estudo dos problemas relacionados à tecnologia de construção naval e de sistemas oceânicos, incluindo análise estrutural de plataformas de exploração de petróleo. “O professor Seizi Oga, por sua vez, tornou-se grande referência no campo da farmacologia aplicada, com muitos artigos e livros publicados”, diz Motoyama. “Seu livro Fundamentos de Toxicologia é um dos clássicos brasileiros da área.” Oga também foi diretor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.
Saúde animal
Em geociências, um dos destaques é Jorge Kazuo Yamamoto, que começou no Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT) desenvolvendo a aplicação de computadores em geologia e mineração, linha de pesquisa que levou para a USP depois de 11 anos. Em medicina veterinária, Motoyama cita Massao Iwasaki, especialista em radiologia, que trabalha com tecnologia de ponta, utilizando aparelhos de ultrassonografia, tomografia computadorizada e ressonância magnética no estudo de doenças de cães. Entre as mulheres, uma das citadas é Mitika Kuribayashi Hagiwara, que também atua na área de veterinária. “Ela realizou muitos trabalhos sobre leptospirose canina, patogenia e clínica de retroviroses felinas e sobre clínica e epidemiologia de doenças de cães. Tudo isso dando aulas ininterruptamente por mais de 30 anos”, conta Motoyama.
A exigência das famílias em relação ao desempenho dos filhos nos estudos às vezes beirava o exagero. Um exemplo é o de Alfredo Homma, da Embrapa do Pará. Ele e seus irmãos sempre se destacaram na escola. “Tirar notas altas era motivo de honra, e as baixas, de surras”, lembra. “Tanto que passei em primeiro lugar no vestibular de agronomia da Universidade Federal de Viçosa, sem fazer cursinho, pois simplesmente não tínhamos condições de pagar um”. Sua irmã passou em primeiro lugar em medicina na Universidade Federal do Maranhão e o irmão caçula em primeiro lugar em metalurgia, na Universidade Federal de Ouro Preto.
Assim como Homma, praticamente todos os nikkeis têm uma história sobre a importância que seus pais davam à educação e aos valores culturais de seus antepassados. “Eu me lembro de minha mãe dizendo: ‘Somos pobres, mas descendemos de samurais, então somos ricos em valores como dignidade, honestidade’”, conta Ana Maria Miyadahira. “Aprendi com ela que a maior riqueza não é material, mas do espírito – uma coisa que também tento passar a meus filhos.”