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Futuro ameaçado

Postado em 01/03/2000

Vem aí a cobrança pelo uso da água. Será o fim do desperdício?

JORGE LEÃO TEIXEIRA E CECÍLIA ZIONI

Polêmica à vista: os brasileiros que utilizam a água encanada pagam, nas contas mensais, apenas pelos custos de tratamento e distribuição. A regulamentação de uma lei (nº 9.433/97) pretende instituir a cobrança pelo líquido em si, até agora gratuito.

As regras para a cobrança ficarão a cargo da Agência Nacional de Águas (ANA), organismo cuja criação já foi aprovada pela Câmara dos Deputados e agora espera a decisão do Senado. Algumas cidades, antecipando-se a essa determinação, já estão cobrando uma taxa extra pelo uso da água, como Piracicaba e outros seis municípios paulistas. A taxa por enquanto é voluntária e destina-se a projetos de preservação de recursos hídricos. No estado do Ceará, instituiu-se um sistema que onera o consumo somente dos que ultrapassam certos limites. O objetivo, além de levantar recursos, é inibir o uso perdulário da água.

Acabar com o desperdício, evitar a poluição e preservar com maior rigor as bacias hidrográficas está se tornando, em todos os países, uma preocupação comum. Não é à toa que a água pura está se transformando no produto mais precioso do mundo. Com efeito, ela é a próxima fronteira a ser desbravada pelos investidores privados. Quem afirma é Johan Bastin, diretor do Grupo de Infra-Estrutura Municipal e Ambiental do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento, com sede em Londres. O precioso líquido será também um dos grandes desafios do século 21 no plano social, já que as previsões estimam que dois terços da população mundial sofrerão com a escassez de água, perspectiva que antecipa tensões internacionais e graves problemas internos.

O Brasil possui um terço das bacias fluviais do mundo: 13% da água doce do planeta. Como, porém, a falácia de que a água é infinita e renovável continua prevalecendo no país, o desperdício e a imprevidência são estarrecedores. A derrubada de matas ao longo dos rios e em suas nascentes provoca escassez de chuvas e vem secando cursos de água (o rio São Francisco tem hoje menos da metade da vazão de 50 anos atrás).

Paralelamente ao desperdício, prolifera um desleixo criminoso, que multiplica a poluição nos cursos de água e lagoas, agredidos pelo esgoto e por lixo de toda ordem, numa faina daninha que vai assoreando as calhas dos rios, em parceria com a erosão provocada pelo desmatamento. Bem vital, a água acaba transformada em veículo de doenças, que sangram em cerca de US$ 400 milhões anuais os recursos do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo dados do Inae (Instituto Nacional de Altos Estudos), menos de 40% dos brasileiros pobres dispõem de água tratada adequadamente e apenas 23% deles utilizam serviço de esgoto, fato que gera funestas conseqüências e aumenta a mortalidade infantil.

Na bacia Amazônica o perigo é provocado pelos garimpos, legalizados ou clandestinos, que contaminam a água com metais pesados, como o mercúrio, numa demonstração da irresponsabilidade com que a questão é tratada no país.

Os brasileiros também se acostumaram com a idéia de que, além de inesgotável, a água pode ser usada a custo zero. Empresas a utilizam praticamente de graça e somente agora algumas começam a preocupar-se em devolvê-la da mesma maneira como a captaram.

Cada vez mais, em todo o mundo, a água é encarada sob o ponto de vista estratégico, ao mesmo tempo em que adquire certo status de commodity, podendo futuramente ser negociada com tanta facilidade quanto o petróleo. Afinal, com a crise ainda em gestação, o quadro mundial apresenta números que projetam um futuro dramático para o abastecimento. O relatório do WWF (Fundo Mundial para a Natureza) publicado em fevereiro registra que 2 bilhões de pessoas no mundo já são vítimas de escassez de água. E outro bilhão não tem acesso a água potável com qualidade aceitável.

Negócio da China

Dono de 20% da água doce do mundo, o Canadá já assinou um contrato, com duração de 30 anos, para vender para a China água proveniente do Alasca, cerca de 60 bilhões de litros por ano. E poderia ter assinado outro contrato para vender água doce para a Califórnia, nos Estados Unidos, que sofre de escassez permanente, não fosse a reação da população canadense, que vetou o negócio.

Essas informações foram dadas pelo professor Wilson de Figueiredo Jardim, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na 51a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, realizada em Porto Alegre em julho de 1999. Jardim apontou a falta de água potável, ao lado do desemprego, como o grande problema da humanidade no século 21. Ressaltando a situação privilegiada do Brasil, o professor alertou para o desperdício de cerca de 30% que acontece nos sistemas de fornecimento, derivado dos gastos imprudentes dos consumidores e das falhas nas redes públicas, em sua maioria "caóticas e obsoletas" – cálculo divulgado na imprensa estima que a Cedae (Companhia Estadual de Água e Esgotos), do Rio de Janeiro, desperdiça 50% da água que trata.

Embora a Terra seja um planeta-água, com 69% de água salgada, como observou naquela reunião o diretor do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo, Rolf Weber, os custos da dessalinização, praticada em países árabes, são elevadíssimos, o que leva a Turquia, rica em água doce, a trocá-la por petróleo.

A necessidade de recuperação de sistemas obsoletos e o aumento do consumo em decorrência do crescimento urbano, aliados a reivindicações para melhoria na qualidade da água oferecida à população, levaram cidades como Berlim, Bruxelas, Bucareste e Praga, na Europa, a abrir licitações para privatizar seus sistemas de abastecimento.

A licitação em Sófia, capital da Bulgária, atraiu firmas poderosas como a Bechtel (EUA), Vivendi e Suez Lyonnaise des Eaux (França), além da americana Enron, com sede no Texas, que comprou em julho de 1999 a britânica Wessex Water PLC por US$ 2,2 bilhões, além de ter entrado em licitações no Panamá e no Rio de Janeiro (quando da malograda tentativa de privatização da Cedae). Nos Estados Unidos, em 1999, Atlanta privatizou o sistema de abastecimento de água, confiado a um consórcio liderado pela Suez Lyonnaise, que ganhou uma licitação pelo prazo de 20 anos, pagando US$ 400 milhões.

O setor chegou a ser dominado pelas francesas Vivendi e Suez Lyonnaise, beneficiadas pela experiência que permite aos municípios franceses escolherem um gestor para seu abastecimento de água. Após a privatização do setor na Grã-Bretanha, nos anos 80, surgiram várias empresas, com destaque para a Thames Water, que passaram a agir local e internacionalmente. A Thames Water, inclusive, já abriu escritório no Rio de Janeiro.

Os americanos, embora recém-chegados ao mercado, trabalham agressivamente, tendo no comando da Divisão de Águas da Enron uma executiva, Rebecca Mark, com experiência e prestígio no mercado internacional de energia, no qual desenvolveu projetos no valor de US$ 20 bilhões para aquela empresa. Os franceses começam agora a se unir aos investidores americanos, de olho no mercado latino-americano, tendo firmado um contrato de US$ 125 milhões em Porto Rico.

A maior parte dessas empresas busca uma taxa de retorno que oscila entre 10% e 15% ao longo dos contratos. Mas os riscos também rondam o setor: uma rede urbana em frangalhos, por exemplo, exigirá grandes investimentos imediatos. Além disso, incertezas políticas e econômicas podem dificultar os reajustes que os contratos exigirem. "Um bom negócio, mas só para quem tem nervos de aço e paciência de Jó", definiu um executivo do ramo, opinião que é subscrita por vários tecnocratas das financiadoras internacionais.

A competição mundial ignora nacionalidades, religião e credos políticos. Água e saneamento contam com ativos importantes, fluxo de caixa e liquidez, trunfos que atraem os capitais privados. Não admira, portanto, que seja o lado financeiro e não a postura filosófica que provoque as maiores polêmicas, como ressaltam membros do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, em Washington. Nancy Birdsall, porta-voz desse organismo, gosta de citar como exemplo o caso do Rio de Janeiro, onde uma disputa entre o governo estadual e lideranças municipais pelos ativos da Cedae foi a causa principal do cancelamento de uma tentativa de licitação. "Não havia uma oposição ideológica significativa à licitação", disse Nancy, "mas a luta dura entre os governos estadual e municipal impediu que fosse realizada. "

Outro problema que distorce a atuação dos sistemas latino-americanos decorre dos custos: ligar uma casa à rede de água custa em torno de US$ 450, enquanto sua conexão com uma rede de esgoto sai por quase US$ 800. Isso faz com que políticos e administradores públicos não invistam em saneamento, agravando a contaminação de fontes, mananciais, rios e lagos.

O fundamental, insistem os técnicos, é evitar o desperdício, não poluir e racionalizar o mais possível o uso da água. Costume enraizado nos brasileiros, uma boa lavagem de carro chega a desperdiçar cerca de 150 litros de água. Três minutos sem desligar o chuveiro gastam 50 litros. E uma torneira que pinga a noite inteira joga fora 45 litros de água tratada.

Em meados da década de 90, já eram 23 os países que viviam uma situação crítica quanto à disponibilidade de água, a maioria no Oriente Médio e na África subsaariana, mas nações ricas como Bélgica e Holanda enfrentavam problemas de abastecimento, assim como os estados da Califórnia e do Texas, nos Estados Unidos, onde o problema se acentuou nos últimos anos.

Diante desse quadro, o governo Fernando Henrique Cardoso pediu urgência ao Congresso Nacional na votação dos projetos de lei que criam a ANA e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SNGRH), encaminhados aos deputados em agosto de 1999. Na ocasião o secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente mencionou dados para frisar o desperdício, comparando os 40% a 50% que as empresas de distribuição do país perdem na captação de água com os índices europeu e americano, que não ultrapassam os 20%.

Cipoal de interesses

Existe uma disputa de poder pelo controle dos recursos hídricos entre os ministros do Meio Ambiente, José Sarney Filho, e da Integração Nacional, Fernando Bezerra. Como também há opiniões controvertidas entre usuários, prefeituras, governos estaduais e empresas que ganharam licitações para implantar e explorar serviços de água e saneamento. As disputas judiciais entre estados e municípios começaram com uma ação impetrada pelo município paulista de Avaré, há seis anos, que indagava à Justiça se esgoto era tarifa ou taxa. Depois da demora habitual, decidiu-se que era taxa, sendo sua cobrança, portanto, exclusividade do Executivo (se fosse tarifa, empresas como a Sabesp poderiam cobrá-la).

A controvérsia também atinge as regiões metropolitanas, com algumas opiniões que consideram os municípios como poderes concedentes, enquanto outras afirmam que o direito de explorar a rede de saneamento pertence ao estado. Diferentemente do setor de telecomunicações e transportes, a União não é dona das 27 empresas estaduais de água e saneamento, as quais podem decidir quando desejam dispor de seus ativos. Mesmo nos municípios onde o serviço é autônomo, resistências ao programa de concessões podem envolver interesses dos governos estaduais e de políticos locais. E como água e esgoto são concessões dadas simultaneamente, não havendo dúvida quanto ao fato de que água deve ser cobrada como tarifa, mas, apesar da decisão de Avaré, persistindo dúvida sobre se esgoto é tarifa ou taxa, é fácil perceber o cipoal que pode enredar o setor.

O mais grave, porém, é que, na esteira da decisão de Avaré, empresas privadas estão propensas a acionar companhias estaduais de saneamento, alegando que, apesar de usar água abundantemente, não produzem a quantidade de esgoto que lhes é cobrada. Até novembro, três empresas já reclamavam R$ 85 milhões da Cedae, no Rio de Janeiro, soma maior do que a arrecadação total da própria Cedae durante um mês. Ante a cobrança de esgoto por estimativa, elas recorreram aos tribunais, que lhes deram ganho de causa, reconhecendo que a água era usada como matéria-prima, não produzindo esgoto correspondente ao seu consumo. O ressarcimento maior irá beneficiar a cervejaria Antarctica em cerca de R$ 65 milhões, seguindo-se a Refinaria de Manguinhos, com R$ 16 milhões.

A Lei das Águas criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, substituindo o antigo Código de Águas, que vigorava desde a década de 30. Agora caberá ao Senado examinar a criação da Agência Nacional de Águas e regulamentar aspectos da lei no 9.433.

Além de aumentar a eficiência dos serviços prestados, o governo acredita que a ação da ANA contribuirá para reduzir o déficit e o endividamento públicos. O Ministério do Meio Ambiente é favorável à formação de consórcios intermunicipais, que criem uma agenda capaz de solucionar problemas ambientais e saneamento, como coleta de lixo e gestão conservacionista, programa já lançado na Baixada Fluminense.

Caberá ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos articular ações do governo federal e das administrações estaduais, principalmente no que tange à emissão de outorgas de direito ao uso das águas. Resta saber como e quanto irão pagar os grandes consumidores pelo uso da água dos rios – hidrelétricas, empresas de saneamento e de irrigação, indústrias – como o ministro Sarney Filho anunciou mais de uma vez. E conforme prevê o ministro Fernando Bezerra para o caso do projeto de transposição das águas do rio São Francisco, caso ele venha a vingar (ver box à pág. 40).

Terceira via

Os ambientalistas, de modo geral, consideram que o chamado "módulo Planasa", que deu origem à Sabesp e à Cedae, está esgotado, mas não aceitam a perda do controle público sobre serviços essenciais como a distribuição de água e o saneamento, sugerindo uma terceira via, capaz de levar a um consenso estado, prefeituras, sociedade civil e iniciativa privada.

A proposta é endossada por militantes do Partido Verde (PV) e de ONGs combativas e atuantes, tendo sido defendida em diversas oportunidades pelo vereador Alfredo Sirkis, representante do PV na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, bem como pelo cantor Gilberto Gil, da Fundação Ondazul.

Pela proposta seriam criadas Agências de Águas e Conselhos de Águas, para atuar na operação da distribuição de água, esgotamento sanitário e tratamento de esgoto, despoluição de praias, rios e lagoas, e na prevenção de inundações.

Outro modelo de terceira via está sendo estudado pelo governador Anthony Garotinho, visando a reformulação da Cedae, que ficaria com a produção de água e o tratamento do esgoto, cabendo aos municípios a distribuição de água e a coleta de esgoto, rateando-se a arrecadação entre estados e municípios. O modelo permitiria que alguns municípios terceirizassem os serviços sob sua responsabilidade.

 

Todos usam. Quem cuida?

Estados, municípios e empresas disputam serviços de água e esgoto

São 645 os municípios do estado de São Paulo, e em 366 deles os serviços de água e esgoto são fornecidos pela Sabesp, a companhia estadual de saneamento. Em 278, o atendimento é feito pelas administrações municipais ou sob sua responsabilidade, e só em Limeira é prestado por uma empresa privada (controlada por capital francês, a Suez Lyonnaise des Eaux).

Esse quadro pode mudar, pois em vários municípios – como Jundiaí, Itu, Mauá e Araçatuba, só para citar alguns – estão em curso processos de terceirização ou privatização dos serviços. Em outros também, como Osasco, a tendência é entregar à Sabesp esse trabalho.

O que é melhor: serviço privado ou público? Não se pode responder sem uma longuíssima série de considerações, e a argumentação é forte, de um e de outro lado. Mas sobre um fato o consenso é grande, se não for total: não haverá resposta conclusiva enquanto não for definida, de uma vez por todas, a origem do poder de concessão desses serviços nas regiões metropolitanas.

Cabe ao município, determina a lei, o poder de concessão; o problema é que água e esgoto dependem intrínseca e profundamente de fatores não limitados pelas divisas municipais – como bacias hidrográficas, cursos de água, lagos e lagoas, por exemplo.

Por isso a saída, defendem muitos, está na outorga ao estado dos serviços de saneamento básico nas regiões metropolitanas ou naquelas em que as características dos recursos hídricos exijam ações interligadas.

Santos é um bom exemplo: nessa cidade litorânea, não há fontes de água doce, e o abastecimento, que é exemplar (praticamente 100% de coleta e tratamento, tanto de água quanto de esgoto), se faz pela importação de água de cidades próximas. A informação é de Luiz Carlos Neto Aversa, gerente de Comunicação e Marketing da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, a Sabesp, que fechou 1999 com índice de 85% na coleta e de 60% no de tratamento de esgoto. A Sabesp atende 366 cidades em que vivem 22 milhões de pessoas, cerca de 65% da população do estado.

A própria capital paulista é outro exemplo citado por Aversa: a cidade cresceu em torno da nascente do rio Tietê, e a oferta de água desse e outros rios da região é menor que a demanda.

"A cidade caminha de peito aberto e de cabeça oca para o racionamento irreversível de água encanada, a partir de 2004", escreveu recentemente o colunista Joelmir Beting, no jornal "O Estado de S. Paulo".

Outro ponto a favor do serviço estadual: são altos e com tendência de crescer sempre os investimentos exigidos para coleta, distribuição, deposição e tratamento de água e de esgoto. A maior parte dos municípios não tem renda suficiente. A Sabesp, uma das maiores empresas mundiais no setor, investiu, entre 1995 e 1998, mais de R$ 3,4 bilhões para chegar aos níveis indicados.

Solução mista

Um sistema alternativo parece estar em vias de ser testado na cidade de Jundiaí, cuja Câmara Municipal aprovou, em janeiro, proposta do prefeito para criar uma empresa de capital misto (em que até 51% das ações ficariam com a prefeitura) para explorar o fornecimento de água. A empresa já tem nome, DAE Água e Esgoto S.A., e deve suceder a autarquia municipal encarregada há 30 anos desse trabalho.

Com a mesma idéia, Jundiaí já havia se decidido pela transferência dos serviços de esgoto, em 1998, a um consórcio de empreiteiras, a Companhia de Saneamento de Jundiaí, vencedora da licitação aberta nesse ano. A cidade tem índices de saneamento invejáveis (93% nos serviços de coleta e 84% nos de tratamento de esgoto, chegando a 90% este ano, e 100% nos de água), e a decisão de abrir o setor para a iniciativa privada é forma de ampliar a captação de recursos demandados por novos investimentos, necessários para manter bem atendida a população de mais de 360 mil pessoas (95 mil domicílios).

Nos anos 90, foram gastos R$ 90 milhões na construção de uma nova represa para coleta de água; agora, é preciso investir no tratamento, e espera-se que a empresa de capital misto consiga financiamentos mais facilmente que a prefeitura. Isso já aconteceu na área de esgoto, quando o consórcio aplicou cerca de R$ 20 milhões na implantação da Estação de Tratamento de Esgotos de Jundiaí, que funciona desde setembro de 1998.

Em Itu, está quase pronto o texto de projeto de lei do Executivo, preparado com consultoria da Universidade de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas, que mira a demanda de saneamento, água e esgoto até o ano 2019. Pretende-se passar (com aprovação da Câmara Municipal) a concessão dos serviços atualmente prestados por uma autarquia municipal, a Serviços de Água e Esgotos (SAE), para uma empresa privada.

Em Mauá, há polêmica sobre o rumo a tomar. Neste começo de ano, a Câmara Municipal deve receber de volta um pacote de projetos do prefeito Oswaldo Dias, rejeitado pela edilidade ao final de 1999, entre os quais figura a concessão dos serviços de coleta e tratamento de esgoto para a iniciativa privada.

No começo dos anos 90, Antonio Palocci Filho, prefeito petista de Ribeirão Preto, firmou 80 diferentes contratos de parceria com o setor privado, que significaram aporte de R$ 120 milhões para obras e serviços municipais. Entre eles, o tratamento de esgoto, com prazo estipulado para 20 anos, ainda em vigor.

Em 1999, chegou ao fim uma longa disputa entre a Sabesp e a cidade de Osasco. Depois de anos de pendências jurídicas, firmou-se, afinal, contrato pelo qual Osasco tornou-se o 366o município operado pelo governo paulista. Agora, a Sabesp cuidará de tudo, e planeja gastar R$ 7,8 milhões em obras e R$ 9,2 milhões em serviços só no primeiro ano na região. Dentro de três anos, pretende-se que 70% das famílias já tenham serviços de coleta de esgoto.

Guarulhos vive situação semelhante à que existia em Osasco. Seu débito com a Sabesp chega a R$ 60 milhões, mas as negociações estão suspensas. O rodízio de água, terminado em 1998 na região metropolitana, persiste em Guarulhos.

Também estão suspensos entendimentos para mudar o sistema de prestação de serviços de saneamento, água e esgoto em Araçatuba, onde são responsabilidade da prefeitura. Estão abaixo da demanda, por falta de recursos, e um grupo de vereadores propôs, há tempos, passar a concessão para a Sabesp. Mas o negócio está parado.

 

Tábua de salvação

A experiência internacional recomenda o respeito a várias regras básicas no manejo dos rios, verdadeira tábua de mandamentos para o abastecimento de água e saneamento. São elas:

• A responsabilidade sobre o uso de um bem público – a água dos rios – não deve ser fragmentada entre os vários setores usuários: irrigação, indústria, abastecimento urbano, hidreletricidade e navegação.

• O gerenciamento deve ser integrado, através da operação e manutenção das estruturas hidráulicas, como barragens, canais, adutoras, e mediante o disciplinamento dos usos, com o objetivo de garantir o equilíbrio sustentável entre oferta e demanda de água.

• As decisões gerenciais devem ser tomadas o mais próximo possível de onde ocorrem problemas e conflitos, exigindo a descentralização do poder decisório e a delegação de responsabilidade a autoridades e comunidades locais.

• O uso dos rios deve ser disciplinado por "outorgas", que destinem a cada empreendedor determinada vazão, sem o risco de um uso descontrolado das águas rio acima, a fim de evitar que investimentos, notadamente na fruticultura irrigada, deixem de ser feitos por falta dessa garantia.

• As águas subterrâneas e as dos rios são um bem econômico, e seu uso, sempre que houver escassez e forem insumo para o processo produtivo, deve ser pago.

• A arrecadação da cobrança pela utilização das águas deve ser aplicada na própria bacia, seja para financiar o monitoramento dos rios, seja para um investimento de interesses comuns, como estações de tratamento de esgoto ou barragens para controle de secas ou enchentes.

• A unidade de planejamento e de gerenciamento de recursos hídricos é a bacia hidrográfica, definida como o conjunto de rios cujas águas engrossam o fluxo de um rio principal, que desemboca no mar.

• A luta pela recuperação dos rios não pode ser vencida apenas pela ação governamental, tornando-se vital a participação ativa de todos os interessados no estabelecimento de regras de convivência, coletivamente pactuadas.

 

O Velho Chico em debate

O projeto de transposição das águas do São Francisco provoca opiniões divergentes até no nordeste. Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte o defendem com entusiasmo, vendo nele a redenção das secas que assolam seus territórios. Bahia e Pernambuco oscilam entre o pró e o contra. Minas Gerais é contra, Alagoas também. Sergipe mantém-se em posição de expectativa.

Quem defende o projeto frisa que não há dificuldade para a engenharia nacional executá-lo, mediante sistemas de elevatórias, adutoras, canais e túneis, que levariam uma pequena quantidade de água (100 metros cúbicos por segundo, de um total de 2,1 mil metros cúbicos por segundo) até a altura de 170 metros para transpor a chapada do Araripe, na divisa de Pernambuco com o Ceará. Dali a água correria por gravidade pelas calhas dos rios Salgado e Jaguaribe, chegando ao açude do Castanhão, em construção, que possui capacidade de acumulação maior que a baía da Guanabara. Da calha principal sairiam derivações para Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Mais de 10 milhões de pessoas seriam beneficiadas, irrigando-se uma área de 600 mil hectares. O custo da obra, na primeira fase, seria de R$ 1,5 bilhão. Lembre-se que o governo gasta com verbas de assistência às vítimas da seca naquela região, anualmente, mais de R$ 2 bilhões.

Os defensores do projeto, como o almirante José Celso Macedo Soares, lembram também que, se a vazão do São Francisco por qualquer motivo ficasse aquém do normal, bastaria desligar as bombas da elevatória.

Entre os mais ativos opositores ao projeto estão os porta-vozes da causa nacionalista, agastados com a política de privatizações, temerosos, inclusive, de que a privatização da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) possa transferir para a empresa privada, possivelmente estrangeira, que a comprar – ou o consórcio de empresas privadas – o encargo das obras de transposição e a exploração da distribuição das águas.

O defensor mais ardoroso do projeto é o ministro Fernando Bezerra, que é do Rio Grande do Norte. Ele alega que dentro de três anos o nordeste terá que importar água. Ou exportar nordestinos.

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