Postado em 03/02/2011
Livros. Eles transformaram a vida da família alemã Herz, que chegou ao Brasil em fuga da repressão nazista em 1938. A ideia de trabalhar com obras literárias surgiu em solo brasileiro, quando o clã as adquiria e as alugava à colônia alemã. Mas, o que a família não sabia é que a “brincadeira” se transformaria em uma das maiores livrarias do país: a Livraria Cultura. “Atualmente a empresa tem onze unidades, emprega mais de 1,5 mil pessoas, e continua crescendo. Ano passado abrimos três novas unidades e neste ano temos mais quatro previstas”, disse o livreiro e presidente do conselho de administração da empresa, Pedro Herz, ao Conselho Editorial da Revista E.
Os apenas dez títulos administrados no início logo se multiplicaram em centenas e milhares. E isso levou os Herz ao Conjunto Nacional, na Avenida Paulista – onde se localiza a atual matriz da rede. “Desde o início, a gente sabia que esse era o ponto”, lembra Pedro. Além da história da Cultura, o livreiro fala das mudanças permanentes na indústria de entretenimento e dos desafios da área. A seguir, trechos.
Minha história
Eu sou a segunda geração de uma família de alemães fugidos do nazismo. Em 1938, meus pais fugiram da perseguição de Hitler sem bagagem, praticamente só com a roupa do corpo, e foram acolhidos na Argentina. Minha mãe arranjou emprego numa tecelagem, enquanto meu pai buscava algum trabalho com o qual pudesse ajudar em casa. Pouco mais de um ano depois, conseguiram visto para o Brasil, onde nasci. Até 1945, quando terminou a guerra, foi aquela dificuldade toda, o Brasil, de alguma forma, participando dos confrontos com tropas na Europa.
Em 1947, minha mãe teve de ajudar meu pai, então representante comercial de uma indústria de confecções, para criar os dois filhos. Como se relacionavam com a colônia alemã, acabaram até formando um grupo de amigos, ela teve a ideia de alugar livros. Começou o negócio com dez livros em alemão, comprados com o crédito cedido por um importador. O prazo de devolução era de uma semana, mas não tinha penalidade nenhuma para quem não devolvesse. Os livros eram bem acabados, encadernados, costurados. Esse foi o início de uma biblioteca circulante.
Estantes transbordantes
Minha mãe achava que muitos livros mereciam ser lidos, mas não comprados. E o negócio funcionou, foi crescendo, os livros e as pessoas foram aumentando. Até que chegou um dia em que alguém perguntou se nós poderíamos também vender livros. E começou assim o estímulo para que ela abrisse também um pequeno varejo de livros em alemão, best-sellers. Ao lado dessa biblioteca circulante, nasceu, por assim dizer, uma livraria. O negócio funcionava na sala de casa, um sobrado na Alameda Lorena. Estimulada, minha mãe começou a vender os livros, e assim foi, até a hora em que faltou lugar na sala...
Apareceu uma amiga da minha mãe e propôs dividir uma sala na Rua Augusta. Durou muito pouco, porque uma queria trabalhar, outra queria fechar. Então arrumamos outro sobrado, também na Rua Augusta, muito comprido. Passou um pouco mais de tempo, os livros começaram a ocupar os quartos, faltou espaço para as camas. Mudamos para um apartamento quase vizinho, alugado, e a livraria tomou conta do resto da casa.
Morada das letras
Saímos de novo da Rua Augusta, em abril de 1969. Na época, a biblioteca circulante tinha um volume bastante razoável de livros locados em português, em inglês. Minha mãe vislumbrou, nessa ocasião, que a Av. Paulista seria um lugar onde tudo aconteceria em São Paulo. E apareceu a oportunidade de alugar uma loja no Conjunto Nacional, a primeira das que hoje mantemos lá. E aí o espaço começou a ficar apertado. Quatro anos depois, tivemos que pegar a segunda loja, e a terceira, e a quarta, porque os livros não cabiam mais no espaço. Também não dava para uni-las, quebrar as paredes.
Desde o início a gente sabia que esse era o ponto. Mas, em primeiro lugar, é preciso investir em material humano e em tecnologia. Nós temos o controle de cada livro, onde tem, quantos tem, a que horas foi vendido. E esta ferramenta é toda feita dentro da Cultura e atualizada até duas vezes ao dia. Até a arquitetura tem essa marca. O arquiteto desenha o macro, o micro nós fazemos dentro de casa. Nós sabemos qual a nossa necessidade. É tudo assim, a área de comunicação também. Fazemos uma revista, hoje, que tira 25 mil exemplares distribuídos gratuitamente, e é lida por mais de 1,5 milhão de pessoas que pediram para receber a versão online. Fazemos quase 100% das coisas de que precisamos dentro de casa.
Espaço e leitura
Acho que somos um centro cultural. Desde que abrimos a unidade no Shopping Villa Lobos, essa ideia já existia, porque tenho um auditório em todas as unidades. Este conceito do Teatro Eva Herz surgiu porque o prédio que nós ocupamos no Conjunto Nacional permitiu. Em todas as unidades onde tivermos a possibilidade de abrir um teatro, nós faremos. Não que o teatro dê retorno financeiro. Mas ele agrega. A vontade do centro cultural vem desde sempre. Eu queria ter um espaço onde, em algum momento, o autor lesse sua obra e discutisse com a plateia. Um lugar onde ocorressem até pequenos shows, pequenas apresentações teatrais.
Leitura e comportamento
Quanto ao livro eletrônico, trabalhamos com eles desde que foi possível aqui no Brasil. Temos 150 mil títulos disponíveis, e vendemos cinco, seis mil por dia. Não tenho ideia do que vai acontecer com o livro impresso. Se você perguntar para um leitor, ele não quer substituir pela versão eletrônica. Não sei se um aparelho novo fará leitores. Acho que nós estamos às vésperas de poder ler na porta do microondas ou na porta da geladeira. Mas ouso dizer que os equipamentos eletrônicos, se funcionam, são absolutamente obsoletos. Não sei se vão fazer novos leitores, que é o que nós estamos empenhados em conseguir. Mas penso que quem não lê não passará a ler se for na porta da geladeira.
Eu quero saber se mais pessoas estão lendo. As pessoas estão vivendo mais, querendo trabalhar menos, e a indústria do entretenimento cresce muito. Porém ninguém expandiu o danado do dia, ele continua tendo 24 horas. E temos que fazer tudo aquilo que nos atrai dentro desse mesmo espaço de tempo. Estamos fazendo tudo em fatias menores. A oferta de coisas para experimentar cresce o tempo todo. Vocês lembram quando o Morita [Akio Morita, 1921-1999, líder e gestor da Sony] inventou o videocassete e começaram a dizer que o cinema ia acabar? Não é isso o que a gente vê.
Num ano, falaram que o futuro era o CD-ROM. Três anos depois, todos fecharam seus departamentos de CD-ROM, as editoras tiveram prejuízos maciços, os CDs foram para o lixo. Acho que o livro eletrônico é mais uma bolha como essa. As pessoas são muito mais conservadoras do que dizem. Para mudar um comportamento na gente, o processo é muito mais lento.
Vejo o mercado editorial como absolutamente natural. É uma atividade econômica, é impossível todos irem bem ou todos irem mal na sociedade em que vivemos. O problema é se nós conseguimos realmente atrair mais leitores. Esse é o grande problema, não só da indústria do livro, mas da indústria fonográfica, de roupas... É aprender a lidar com isso.
“As pessoas estão vivendo mais, querendo trabalhar menos, e a indústria do entretenimento cresce muito. Porém ninguém expandiu o danado do dia”.