Postado em 29/03/2012
Jornalista, crítico de gastronomia da Folha de S.Paulo e professor de História da Gastronomia na Universidade Anhembi Morumbi, Josimar Melo dedica-se à pesquisa de novos sabores e à avaliação de pratos e estabelecimentos. Sócio-diretor do portal Basílico, Josimar criou eventos importantes para a gastronomia brasileira, como o Boa Mesa, o Mais.Paladar e o Prêmio Brasil Gastronomia. É autor de Berinjela se Escreve com J (DBA, 1999), Folha Explica a Cerveja (Publifolha, 2000) e do Guia Josimar Melo (DBA), publicado anualmente desde 1992.
O crítico preside o júri da América Latina do World’s 50 Best Restaurants, que elege os 50 melhores restaurantes do mundo, realizado pela Restaurant Magazine, de Londres. Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o convidado desta edição fala sobre o início da divisão da refeição – em entrada, prato principal e sobremesa –, o surgimento dos restaurantes e as tendências gastronômicas contemporâneas. “Em 1995, 1997, veio esta grande revolução espanhola, equivalente ao que aconteceu no século 16, a meu ver, que foi a chamada cozinha molecular. Ela mexe com os registros dos paladares na cabeça”, diz Josimar. A seguir trechos da conversa.
Origem dos restaurantes
A instituição que chamamos restaurante é muito recente na história da humanidade. Comer em restaurante é uma coisa de 250 anos, do final do século 18, quando surgiram os primeiros restaurantes na França. Antes disso, as pessoas saíam para comer fora eventualmente, mas a regra era comer em casa.
Existiam as estalagens, que eram lugares para viajantes deixarem seus cavalos para descansar e comer – e a pessoa também descansava e comia. Havia também as tavernas, que eram lugares para beber, mas sempre tinha um caldeirão com um ensopado para quem quisesse comer. As estalagens eram principalmente para repouso dos viajantes e as tavernas para beber, ou seja, a principal atividade não era fazer e servir comida.
Durante anos, os restaurantes eram exclusivamente franceses e depois foram se espalhando pela Europa. Esses estabelecimentos são fruto do desenvolvimento das cidades, pois até mesmo hoje, nas cidades pequenas, se der para a pessoa ir para casa comer, ela vai. Então o crescimento das metrópoles favoreceu a multiplicação dos restaurantes. Na época da Revolução Francesa, final do século 18, surgiu o restaurante gastronômico, que não tinha a ver com praticidade.
Esses restaurantes, que são o modelo que existe até hoje, eram como teatros, em que se vai para viver o espetáculo da gastronomia. Assim como hoje, as pessoas iam a esses lugares para viverem uma experiência cultural, conhecerem o trabalho de um artista, que é um chef de cozinha, ter contato com ingredientes incomuns no dia a dia da sua casa. Na alta gastronomia, os grandes chefs da Antiguidade, desde o Império Romano até a França do século 18, trabalhavam para famílias, eram chefs de palácios.
Novos ingredientes
Até o século 16, a culinária era muito mais ligada à saúde e à medicina do que à noção de arte e estética. Os ingredientes eram definidos em função da saúde. Hoje existe a culinária funcional, que vai na mesma linha. A partir do século 16 começou uma noção de comida como prazer e como estética, porque durante a Idade Média a comida com esse lado medicinal diminuiu bastante em relação à Antiguidade, mas o prazer era proibido.
Já no século 18, o prazer passou a ser menos condenável, justamente na época em que surge o primeiro restaurante, em 1760, em Paris. Mas a mudança no jeito de comer aconteceu no século 16, quando houve as grandes navegações e começaram a aparecer ingredientes absolutamente novos. Até o século 16 não tinha batata na Europa. A pizza e o macarrão italiano não levavam tomate até o século 18, porque o tomate foi da América para a Europa já no século 16, mas era considerado uma planta ornamental. A introdução desses novos ingredientes foi uma revolução na cozinha ocidental.
Evolução gastronômica
Como a aristocracia medieval não podia fazer da comida uma fonte de prazer, ela a usava como forma de ostentação e símbolo de poder. A alta cozinha medieval era extremamente monótona e até grosseira. Os banquetes eram feitos em grandes mesas em que tudo era servido ao mesmo tempo, doces e salgados, e não havia uma ordem considerada interessante para experimentar os pratos. Comia-se sem talheres e guardanapo.
A forma de ostentar poder era, primeiro, oferecer caça, pois só a aristocracia podia caçar, e especiarias, que eram muito caras. Então eles colocavam açúcar, canela, sal, tudo junto na caça, e tudo ficava com o mesmo sabor.
Só no fim da Idade Média, e depois com a eclosão dos restaurantes, houve um refinamento do serviço da cozinha, da comida. Os banquetes do Renascimento já eram com entrada, prato principal e sobremesa.
Já havia certa noção estética, ou seja, o que é melhor comer antes, o que prepara melhor o paladar para o segundo momento, uma sequência de pratos e vinhos. E as opções mudaram, em vez de só fazer alimentos assados, passou-se a fazer cozimentos em gordura, a se utilizar o açúcar – antes usado para temperar pratos salgados – para a confeitaria.
Movimentos contemporâneos
A nouvelle cuisine francesa, na década de 1970, incorporou algumas técnicas chinesas, diminuiu os molhos complexos para realçar o sabor dos ingredientes. Isso foi uma mudança no registro de paladar da cozinha ocidental muito importante. Desde então, qualquer chef até para fazer um prato clássico francês vai tentar reinterpretá-lo à luz dessas preocupações da nouvelle cuisine.
Ou seja, diminuir o número de ingredientes, deixar as coisas mais crocantes, fazer molhos mais leves para não mascararem o gosto dos ingredientes etc. Já no século 20, em 1995, 1997, veio esta grande revolução espanhola, equivalente ao que aconteceu no século 16, a meu ver, que foi a chamada cozinha molecular. Essa cozinha reinventa estruturas de comida, o veículo dos sabores. Essa cozinha do Ferran Adrià [chef espanhol] e de outros, que hoje tem representantes em vários países, levou as pessoas a refletirem de novo sobre a cozinha. Ela mexe com os registros dos paladares na cabeça.
Gastronomia e política
Hoje há também uma tendência de comprar produtos sustentáveis; então vários restaurantes querem rastrear a origem do produto, querem saber de onde ele veio, se há muito agrotóxico e antibiótico, quem produziu e se é uma produção sustentável. Sustentável significa que respeita o meio ambiente, o trabalhador, que é sustentável para o ser humano.
Se muitos restaurantes começarem a fazer isso, vai ter uma demanda para os produtores por produtos sem agrotóxico. Imagina se param de usar agrotóxico; é uma mudança social, política e econômica. O interessante é que não é uma coisa puramente de culinária, é uma atitude política que os restaurantes e comerciantes têm que ter. Isso interfere no sabor também: uma galinha caipira é muito mais gostosa do que frango com antibiótico. Usar produtos politicamente melhores é bom para o sabor.
“Até o século 16 não tinha batata na Europa. A pizza e o macarrão italiano não levavam tomate até o século 18, porque o tomate foi da América para a Europa já no século 16, mas era considerado uma planta ornamental. A introdução desses novos ingredientes foi uma revolução na cozinha ocidental”
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