Postado em 01/03/2000
No processo educativo, a arte possui um papel primordial: funciona como uma ferramenta eficaz diante da multiplicidade de imagens às quais estamos submetidos. E cada vez mais, com o advento de linguagens e tecnologias, é preciso aprender a decodificar signos novos e, por vezes, revolucionários.
Na evolução dos preceitos da arte-educação, o desenvolvimento do espírito crítico e da capacidade de leitura consciente vêm ganhando espaço nas discussões sobre o tema. Na entrevista que se segue, a arte-educadora e ex-diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP, Ana Mae Barbosa, retrata a trajetória da educação artística no Brasil e no mundo.
Com uma aguçada percepção global dos eventos mais recentes, ela traça um perfil dos novos padrões que norteiam os conceitos de arte como instrumento eficaz no desenvolvimento pleno da democratização e liberdade cultural, em um tempo em que o trânsito de informação é incessante
De que maneira a arte pode servir como instrumento de educação?
A educação não se trata apenas da transmissão de conteúdos, mas visa ensinar a aprender. Por esse motivo, a arte é fundamental, pois leva pessoas a aprender a aprender. Para essa dinâmica pessoal da aprendizagem, a arte é muito importante, pois mobiliza algo essencial: a captação visual do conhecimento. Hoje, vivemos imersos em imagens. Aprendemos inconscientemente através delas. Por meio da arte, operamos com vários sentidos e é muito importante deixá-los em alerta, deixar de aprender apenas intelectualmente. Outro fato importante é, também, alfabetizar-se visualmente. Tornar-se uma pessoa capaz de decodificar as imagens, de lê-las e não ser presa fácil de uma aprendizagem meramente inconsciente. Atualmente, temos de encarar a educação individual e permanente para podermos enfrentar as escolhas. E isso está ficando mais complicado porque o número de ofertas é cada vez maior. A Internet está aí com um leque enorme de produtos que vão do muito bom ao vulgar.
Qual é a orientação para a arte-educação no Brasil?
Há ainda quem ensine arte repetindo a postura positivista que existia no país no início do século, quando era preciso tomar (ou domar) a imaginação através da geometria. Persistem padrões visuais péssimos e estereotipados para as crianças colorirem. Por exemplo, aquele índio de filme americano. Atualmente, desenvolve-se o que chamamos de Nova Arte Educação, ou seja, a idéia de relacionar expressão com cultura dentro da sala de aula. Permitir que o aluno seja capaz de construir a sua linguagem pessoal, mas ao mesmo tempo mostrar a ele que arte é cultura, e cultura sedimentada, importante para a sobrevivência do ser humano. Infelizmente, as políticas públicas nos últimos 50 anos não incentivaram a arte. A concepção contemporânea do ensino da arte visa a relação entre a expressão do indivíduo e a compreensão da arte como cultura.
Dentro desse novo conceito de arte e educação, como são trabalhadas as diferentes linguagens?
São trabalhadas integradamente. No conceito geral, que corresponde à condição pós-moderna, deixa de haver uma preocupação com a vanguarda para dar lugar a uma preocupação com o contexto em que a arte se dá. O grande patamar é a produção da arte. Todos nós trabalhamos em função da produção artística. Se ela muda, muda também o seu ensino. Essa é uma mudança internacional e muito rápida devido à globalização. Nos Estados Unidos, por exemplo, criou-se um sistema chamado Disciplined Based Art Education (DBA). O objetivo é ensinar arte na escola por meio de quatro componentes: o fazer arte, a história da arte, a crítica de arte e a estética. Em 1983, no Festival de Inverno de Campos do Jordão, a idéia da nova arte-educação foi lançada pela primeira vez no Brasil. Naquela ocasião, uniu-se a música com outras expressões artísticas. E nesse festival, mesclamos o erudito com o popular. Anteriormente, seguia-se os princípios modernistas do ensino da arte, que pretendiam preservar a virgindade expressiva e não dar espaço à informação. As escolas consideradas de vanguarda eram assim: davam lápis e papel para que a criança ficasse mais livre para criar. No entanto, não havia nenhuma intenção de mostrar a arte. No modernismo, a preparação do professor e o trabalho da criança na escola eram voltados para a idéia de que criatividade era originalidade. Qualquer informação era perniciosa para o fluir da criatividade.
Mas, por que era assim?
A idéia era cultivar a criatividade da pessoa. O modernismo interpretava a criatividade como originalidade. A pós-modernidade tem outra interpretação. Prima mais pela elaboração, pela flexibilidade. O ensino pós-moderno da arte reage contra essa utopia de que todos nós somos artistas. Não somos. Mas todos podemos usufruir da arte. Todos podemos criar através da sua interpretação, embora não sejamos fazedores de arte. É aí que reside a grande democratização da arte. Há duas maneiras de chegar até ela: os que são talentosos chegam através do fazer; os que não são chegam a ela através da decodificação, também criadora.
Não há uma sofisticação excessiva no casamento da arte com a tecnologia? Não é muito difícil as pessoas assimilarem a arte tecnológica?
Isso é absolutamente natural. A produção da arte a partir das tecnologias de ponta vem depois do conceitualismo, uma concepção de arte como idéia. Segundo esse conceito, não era necessário sequer perpetuar um objeto. Esse modelo é praticamente uma filosofia da arte. Aliás, em um determinado momento do modernismo a arte virou filosofia. Acho que há muito de filosofia nos produtos que vêm sendo mostrados atualmente. As artes, através das novas tecnologias, vêm substituir o ideal de vanguarda do modernismo.
Então, o sentido de vanguarda desaparece?
O sentido de vanguarda permanece no Brasil. Esse sentido se dissolve frente ao diálogo da arte com os meios, com o seu entorno, com a vida. Não é mais a arte que é sublime. O cotidiano é que é sublime através dela. Isso se reflete muito sobre a arte-educação. Nesse sentido, um dos melhores exemplos de arte-educação dos últimos anos foi uma exposição do Sesc chamada Labirinto da Moda - Uma Aventura Infantil. Principalmente em relação à formação de monitoria, essa exposição foi um marco, pois o curso preparatório continuava durante toda a temporada da exposição. No Brasil, a formação de monitoria é muito precária. A Bienal passada, por esse aspecto, foi uma tragédia. Os monitores tinham uma camiseta que dizia "Tira Dúvida". A monitoria foi reduzida a isso.
O que significa a abordagem triangular na arte-educação?
É trabalhar o ensino da arte na relação da leitura da obra e sua contextualização. Seja no tempo, seja no espaço, a exemplo da arte pública. Essa abordagem, que eu expus no livro A Imagem no Sentido da Arte, foi adotada, com alguma modificação, pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PNC). Segundo esse entendimento, é preciso substituir o conceito de "apreciar" a obra de arte, cujo resultado final é uma impressão meramente subjetiva, pela "leitura" da obra, ou seja, tentar decodificar seu significado. Uma leitura que constrói o significado da obra.
Como fica a padronização do ensino projetado num nível superior, como, por exemplo, a influência ou a imposição de valores alheios à nossa cultura?
Eu rebato essa questão com outra. O que é a nossa cultura, afinal? O mais importante, hoje em dia, não é evitar a contaminação cultural. Eu sou a favor de toda contaminação. O passo mais importante é ter consciência dessa contaminação e não se submeter ao valor hegemônico. Porque esse valor, na arte, ainda é representado pelo europeu e pelo norte-americano branco. Agora, é muito importante, em todos os níveis de ensino, flexibilizar para aprender a ler e a valorizar outros códigos dentro de suas próprias normas. Hoje, o grande exercício que deve ser feito é tentar interpretar as obras de acordo com a sua origem. Estabelecer relações com outras culturas.
Dentro do pós-modernismo, existe um conceito que caracterize a obra de arte plástica?
Existem vários conceitos. O grande problema do mundo de hoje é lidar com a diversidade. Ser capaz de construir julgamentos em função dessa diversidade de conceitos e normas. Não há mais um conceito hegemônico a ser seguido. Há várias normas, vários códigos e julgamentos que são construídos na relação do sujeito com a obra. A obra dita os meios pelos quais você vai interpretá-la. Você não pode interpretar Hamlet como se fosse uma comédia. Na obra há indícios de que é uma tragédia. O mesmo acontece com uma pintura. Você tem de colocar na obra elementos que justifiquem a sua interpretação. Eu já vi uma criança interpretando a Guernica, de Picasso, como uma explosão nuclear. Guerra ou explosão nuclear são possíveis interpretações. Não é uma interpretação ditada. A grande pergunta não é o que o artista quis dizer com isso, mas sim, o que a obra diz. O leitor da obra atribui diferentes significados de acordo com a sua experiência. Acontece que esse significado tem de estar confirmado na obra. Essa relação é o diálogo entre leitura e obra.
E os critérios de qualificação de uma obra?
Eles têm de ser variáveis também. É difícil, no mundo contemporâneo, conviver com a diversidade. Quando se quebra a hegemonia, vêm à tona diferentes códigos. É em função desses códigos que se verifica que uma obra está trabalhada.
Então, não existe mais o bom e o ruim?
Existe. Mas o bom e o ruim são relativizáveis. Não respondem a uma única norma, como antes respondiam ao código europeu. Por exemplo, a Yolanda Waters, que eu considero uma grande artista, aqui seria vista como uma artista do Embu ou da Praça da República. Afinal, há um preconceito em relação às obras que não são vendidas em galerias de arte ou apresentadas em museus. Porém, essa artista seria classificada dessa forma por pessoas que têm como valor o código europeu.
Nesse contexto de desprezo por alguns códigos, como a senhora analisa a crítica de artes plásticas?
A crítica jornalística não ousa contra os grandes deuses-curadores. Ela assina embaixo do que eles dizem. É muito raro uma crítica jornalística contestar. Contesta muito mais a literatura. Isso porque a crítica literária é muito mais forte que a crítica de arte no Brasil.
Por quê?
Porque somos um país educado pelos jesuítas, que sempre deram mais importância à literatura do que às artes plásticas. Existia até um certo preconceito contra ela. A idéia de que as imagens eram sedutoras demais. O que foi o barroco senão a exacerbação do visual exatamente para seduzir através dos sentidos? A relação é direta. As escolas de arte se preocupam mais em forjar o artista do que com a formação crítica.
Como formar consumidores de arte com um perfil crítico em meio ao bombardeio de imagens em que vivemos?
É o que chamaríamos de pedagogia crítica e cultural. É preciso relacionar as duas. Ambos os conceitos surgiram com Paulo Freire e estão sendo desenvolvidas nos Estados Unidos. Na escola primária e secundária é necessário começar desenvolver a capacidade de escrever sobre arte e não só falar sobre ela. Vê-la, analisá-la, mas também escrever sobre o assunto. Eu mesma tenho dificuldade com alunos de pós-graduação ao fazê-los escrever sobre arte. A crítica é uma atividade que deve ser exercida no cotidiano: ao comprar o seu sapato, ao comprar a sua roupa ou em relação à armação dos seus óculos. Sem uma crítica estética do cotidiano, dificilmente se formam indivíduos críticos das grandes obras.
Pode-se afirmar que existe um período autêntico e original da arte brasileira?
Eu não penso muito em termos de originalidade. Para mim, esse é um critério que deixou de existir com o modernismo. Do ponto de vista factual, a única coisa brasileira é a arte plumária feita pelos indígenas antes dos europeus chegarem. Mas eu raciocino de outra forma. Eu penso o problema do colonialismo de maneira diferente. Quando eles nos colonizaram, nós passamos a possuir o direito à cultura que eles estavam nos impondo. Eu vejo o barroco como um produto nosso. Não é porque veio de Portugal que vamos considerá-lo apenas uma arte colonizadora. Principalmente pelo fato de que, no Brasil, nós não tivemos um colonizador forte. Vejo que o barroco que nós produzimos é diferente do italiano, do theco ou mesmo do português. É tão diferente que apresenta diferenças locais. O barroco mineiro é diferente do baiano, que é diferente do de São Pedro dos Clérigos, em Recife. Houve momento em que nosso barroco chegou a ser até kitch. É aí que eu gosto dele. Exagerado, com anjos deformados e sexualizados. Eu só considero invasão cultural quando ela vem oficialmente e não permite intervenções no modelo. Invasão cultural foi a francesa, quando se criou uma escola de Belas Artes, estabelecendo uma ruptura na cultura barroca que se estava produzindo aqui. Com os franceses, apregoou-se o estilo neoclássico, descartando a arte anterior. O distinto era o neoclássico. O barroco virou coisa de pobre, coisa de povão. Passou a existir nesse momento uma divisão de classes: o barroco é para a classe baixa e o neoclássico, para a classe rica e dominante.