Postado em 03/06/2011
por Jose Luis Ajzenmesser
Para além das divergências futebolísticas, na Argentina ocorre certa profusão da cultura brasileira. O programa La Guagua, transmitido pela Rádio FM Urquiza de Buenos Aires, comandado há 20 anos por Jose Luis Ajzenmesser, reproduz cinco horas da melhor música do país canarinho – sinal de que os hermanos sabem reconhecer o que temos de melhor, além do futebol, claro.
Provocações à parte, e Ajzenmesser gosta delas, o encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E com o radialista revelou diversas boas surpresas – como a vontade de que haja, entre os dois países, um maior conhecimento para que se evite o estreitamento do estereótipo. Ajzenmesser mantém no Brasil diversos amigos em torno da música e alguns desafetos. Ao longo da conversa, afirma: “[quando] Faz-se música brasileira para o mercado norte-americano (...) talvez seja porque com boa música não dê para comer”. A seguir, trechos.
O gosto médio não tem gosto
Trato de diferenciar o ouvinte do “escutante”. A diferença entre ouvir e escutar é fundamental para mim – e é importante para um veículo como o rádio. Para escutar é preciso ter os cinco sentidos apurados. La Guagua tem cinco horas de duração, às terças e sextas-feiras. É uma utopia achar que se escutem cinco horas sem desvio de atenção. Repito: é importante escutar. Porque se isso ocorre algo vai permanecer. Gosto médio não existe. E recorde sempre – o gosto médio não tem gosto. Há músicas que têm qualidade, que vêm acompanhadas de estudo e sensibilidade.
Os brasileiros não conhecem os argentinos e nós não conhecemos vocês. Muitos argentinos pensam que o Brasil é o samba. Muitos brasileiros acham que a Argentina é tango. Isso para mim está errado. Há 20 anos faço La Guagua. Meu programa de rádio tem como proposta que se conheça a música brasileira. Aquela que não está refletida na mídia, assim como a boa música da argentina.
O programa não é pior nem melhor que nenhum outro. Mas único. Fazer a divulgação daqueles que realmente se dedicaram à música. Seja popular ou erudita. Quando menino, escutava música brasileira: João Gilberto, Elza Soares, Wilson Simonal, Pixinguinha... Então me proponho a dizer aos ouvintes quem são todos esses. Ao ligar o rádio, escutamos Sivuca? Hermeto Pascoal? Na Argentina, escutamos Astor Piazzolla? Nessa divulgação há um componente muito importante que é meu gosto. Eu divulgo só o que gosto.
Alguns desafetos
O Gilberto Gil cantando tangos é horrível. O Plácido Domingos cantando boleros é uma falta de respeito. Por isso muita gente briga comigo. Eu briguei com Djavan. Depois que foi para os Estados Unidos, ele modificou sua música. A mesma coisa ocorreu com Ivan Lins, um compositor e músico extraordinário, apesar de não gostar -do seu jeito de cantar. Já não é música brasileira. Faz-se música brasileira para o mercado norte-americano. Não sei por que eles mudam. Talvez seja porque com boa música não dê para comer.
Os músicos são obrigados a modificar seu estilo e se submetem a mecanismos perversos. Mas estou aberto ao debate, para dizer se estou equivocado. É isso que busco na rádio: aquele interlocutor que permita abrir o debate sobre as coisas, porque aí está o enriquecimento das relações.
O futuro da rádio
Aquelas rádios com orquestras ao vivo, onde o público ficava no estúdio, se perderam. Impossível voltar a essa história. Mas, ainda sim, a rádio tem duas possibilidades: pode ser um meio de comunicação ou um meio de divulgação. A segunda opção acontece quando falo e o ouvinte está do outro lado e não responde. A primeira ocorre quando a realidade se produz a partir da comunicação. Aquele que está do outro lado, ouvindo, tem de ter uma atitude ativa.
De qualquer forma, acho que ainda hoje a televisão e os meios gráficos não superam o rádio. Às vezes sinto-me frustrado, porque brigo mesmo já que não há políticas culturais eficientes. Todos os apoios que tenho são independentes. Pago para fazer o programa. As rádios na Europa ou nos Estados Unidos são bancadas com dinheiro pelos ouvintes. Em segundo lugar pelo governo. E em terceiro lugar pelos patrocínios. Na Argentina, o governo somente patrocina o pior da música. Os norte-americanos e os ingleses inventaram a world music.
Tudo o que não é música anglo-saxônica é world music. Eles nivelaram todos os estilos musicais em um só. A música de Cabo Verde é a mesma da Venezuela. Terrível! Um maior conhecimento e propagação da música, da literatura, da pintura faz com que a gente pense, abra a cabeça. E os governos não querem isso. Para o poder, muito melhor divulgar lixo: aquela música que não tem sustentação, que não tem raiz. E há outra questão: os selos discográficos colocam dinheiro por debaixo da mesa. O nome disso é jabá.
De Piazzolla a Cole Porter
Na música, existe o problema da falta de criadores. O século 20 teve muitos criadores, algo que não existe hoje. A não ser Cole Porter no jazz. Ou Astor Piazzolla no tango. Lembro que em comemoração à morte de Piazzolla fiz um programa de seis horas.
Aqui no Brasil ele é muito respeitado, porque adorava música brasileira. Piazzolla começou com uma orquestra em 1946, já era moderno na época. Ele renovou o tango. Pergunto todos os dias se existe boa música popular sendo feita. Não estou me referindo àquelas músicas do passado somente para defendê-las. Estou preocupado porque não há novas músicas. Lembra do Rod Stewart?
É um artista pop que eu gosto quando faz pop. Mas quando canta jazz está longe do jazz. Muitos jovens ligam para a rádio pedindo para escutar Night and Day do “Rod Stewart”. A música não é dele! É do Cole Porter! Esse é o problema de nossos dias: desconhecimento da realidade e daqueles que realmente fizeram algo pela música. Sempre estou olhando para a frente. Por isso gosto de Piazzolla, porque foi aquele que ajudou a transformar Buenos Aires – a cidade não é a mesma a partir da década de 1940.
Tradição da MPB
Aprendi muito sobre música brasileira olhando cada vez mais para trás. Há muitos anos, eu escutava Carmen Miranda. Até que um dia eu conheci Ruy Castro. Ele escreveu a biografia dela e ajudei a dar uns dados quando ela foi a Buenos Aires na época de Getúlio Vargas. Apresentei Ruy a uma amiga íntima dela que morava na Argentina. A Carmen cantava muito bem, com exceção das coisas que fazia nos EUA. Cantava samba de maneira impressionante.
Vejo todo um movimento ao redor do choro. Em algum momento ele foi esquecido como manifestação da música popular brasileira. O Pixinguinha esteve em Buenos Aires na década de 1930 com oito batutas. Enxerga-se nele uma atualidade, e Pixinguinha não conhecia uma nota de música. João Donato toca quatro notas, no máximo, no piano. E eles são geniais. A música tem um elemento fundamental: o silêncio. O virtuosismo, o excesso de notas, não é tão importante.
A influência do jazz na música popular brasileira é muito grande. Mas acho também que músicos populares do país influenciaram o jazz. Escuto o João Nogueira, aquele samba de Ciro Monteiro, Geraldo Pereira. Puro swing! Eu brigo com os jazzistas, porque eles acham que o swing é algo somente do jazz. Mentira! Paulo Moura foi um músico extraordinário tocando clarinete e sax. Depois da Bossa Nova veio a Tropicália, que eu não conheço muito bem e não gosto. Musicalmente, jamais gostei da Tropicália. E uma coisa que não faço é divulgar o que não gosto. ::
“A música tem um elemento fundamental: o silêncio. O virtuosismo, o excesso de notas, não é tão importante”