Postado em 03/06/2011
Os últimos anos têm sido marcados por inflamados debates sobre a definição dos limites da literatura. Embora a tarefa seja difícil e passível de opiniões divergentes, consolidou-se a convenção de que esse universo estaria relacionado ao uso estético da palavra e, assim, sua história remontaria a tempos anteriores ao surgimento da escrita.
Prova disso está na tradição oral, que já buscava os recursos de expressividade nos fatos narrados, configurando-se, portanto, como literatura. É o caso do poeta grego Homero, que, segundo estudos, teria transmitido oralmente os seus poemas épicos Ilíada e Odisseia, apenas mais tarde registrados em livros.
O desenvolvimento dos diferentes formatos para o texto escrito também remete diretamente à história literária.
Os primeiros suportes surgiram por volta de 2400 a.C., a partir de pedaços de argila ou pedra, nos quais era praticada a escrita. Daí em diante, vieram os papiros, pergaminhos e os códices até se chegar ao livro, consolidado com Johannes Gutenberg, inventor, no século 15, da impressão moderna.
Atualmente, a revolução tecnológica traz à tona a hipótese da substituição do livro como objeto, por formatos eletrônicos e novos suportes, capazes de trazer, de forma digitalizada, uma biblioteca inteira em um único aparelho, como o Kindle, da Amazon; o Papyrus, da Samsung; e o iPad, da Apple – entre outros leitores de e-books.
A respeito do assunto, foi publicado Não contem com o fim do livro (Record, 2010), transcrição de uma conversa entre o semiólogo italiano Umberto Eco e o roteirista francês Jean-Claude Carrière, dois bibliófilos e entusiastas do livro. Entre diversos assuntos, discutem o fato de que os suportes modernos tornam-se rapidamente obsoletos e, portanto, são objetos que correm o risco de se tornarem inutilizáveis.
“Temos a prova científica da superioridade dos livros sobre qualquer outro objeto que nossas indústrias culturais puseram no mercado nesses últimos anos. Logo, se devo salvar alguma coisa que seja facilmente transportável e que deu provas de sua capacidade de resistir às vicissitudes do tempo, escolho o livro”, defende Eco.
Os dois também lembram que o livro teve sua história ligada às religiões, sendo que as três maiores crenças monoteístas – cristianismo, islamismo e judaísmo – têm escrituras sagradas, o que talvez explique o caráter quase ritualístico da adoração aos livros. Para a crítica literária Beatriz Resende, autora de Contemporâneos: Expressões da Literatura Brasileira no Século XXI, “o livro não deve acabar, mas deve ter algum diferencial para merecer ser impresso.
É ecologicamente complicado manter a exaltação ao papel”. Já o poeta Chacal acredita no fim do livro e concorda com a questão ambiental. “Acho que com um iPad, por exemplo, você pode ter todas as comodidades do livro, sem ser uma coisa que violente a natureza”, afirma.
A analogia com a chegada de diferentes suportes em outras linguagens também acaba sendo inevitável. “Não há a menor chance de o livro deixar de existir e a prova disso é que voltaram a fabricar vinil. O CD nem o MP3 conseguiram acabar com o vinil. Tem certas coisas que, nem que seja como peça de antiquário, continuam a existir e, às vezes, ganham até mais valor do que antes”, diz o escritor Glauco Mattoso.
alternativas de veiculação
Mesmo após a consolidação do livro como suporte principal para a veiculação da literatura, diversas foram as tentativas de abandoná-lo, principalmente para driblar as limitações impostas pela indústria editorial. No Brasil, nos anos de 1970, num período em que a ditadura impunha a censura, os escritores passaram a buscar alternativas para a distribuição de seus textos.
Assim, o mimeógrafo passou a ser utilizado por um grupo de poetas que buscavam se colocar no meio literário. “Na época o mimeógrafo era o suporte ao qual eu tinha acesso mais facilmente, mais barato e que não precisava passar pelo crivo dos editores”, relembra Chacal, que também fundou, em 1973, o grupo Nuvem Cigana, um núcleo de produção independente de poesia, distribuída por conta própria e lançada em eventos chamados Artimanhas.
Em 1990, Chacal criou a “balada literária” CEP 20.000, que acontece até hoje, no Rio de Janeiro, toda última quarta-feira do mês, quando jovens poetas se reúnem para compartilhar a poesia falada.
Segundo a ensaísta e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda – organizadora do livro 26 Poetas Hoje, que foi publicado em 1975 e reuniu textos de escritores da chamada “geração mimeógrafo” –, “era uma distribuição agressiva interessante, e a poesia também estava muito popular entre os jovens”.
Mais recentemente, em 2009, Heloísa lançou o livro e website Enter – Antologia Digital, que reúne o trabalho de 37 autores que exploram a prática literária no ambiente da internet, através de vídeo, áudio e fotos, propondo uma utilização do meio eletrônico como interface de experimentação.
A midiartista Giselle Beiguelman também publicou em dois formatos, website e livro, o seu O Livro depois do Livro, sendo que a nomenclatura dos dois foi propositalmente invertida: a versão impressa tem os capítulos divididos com termos de computação e a variante para a internet apropria-se dos recursos de organização dos livros. Em um trecho do trabalho, Giselle escreve: “A riqueza da cultura contemporânea reside na sua capacidade de criar nas, e a partir das, intersecções entre as linguagens”.
O escritor Glauco Mattoso foi outro que buscou, nos anos de 1970, meios para impor sua obra e vencer as restrições do mercado editorial. Num período em que a criatividade dos artistas ia desde panfletagens poéticas, com poesias atiradas de cima do Edifício Itália, até a utilização dos rolos de papel higiênico como suporte, o escritor criou o seu Jornal Dobrabil, trocadilho com o Jornal do Brasil, meio de comunicação mais expressivo da época.
O Jornal Dobrabil consistia em uma folha frente e verso, toda datilografada com poesias, dobrada em três e enviada, através de carta simples, para uma lista de amigos e intelectuais. Foi justamente a tecnologia que permitiu a Glauco, após o fim de sua fase visual – devido ao glaucoma que o levou à cegueira -, que continuasse a produzir poesia.
“Tudo o que eu tinha feito antes, aquela mistura de poesia visual com datilografia, parecia uma página virada da minha vida, até que magicamente surgiu o computador falado”, conta. Através de um software chamado DOSVOX e desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), passou a utilizar o computador com controle total sobre a sua redação, pois o programa converte qualquer texto escrito em voz [software similar está disponível para utilização na biblioteca do Sesc Belenzinho].
tendência
A busca por suportes alternativos acompanha a história do livro praticamente desde a sua criação. Porém, no Brasil, mais recentemente, diferentes práticas vieram confirmar essa necessidade da palavra de conquistar outras plataformas. Durante a Mostra Sesc de Artes 2008, realizada pelo Sesc São Paulo, diversas iniciativas, com a experimentação de outros suportes, foram reunidas, entre elas, literatura pelo celular, em cédulas de dinheiro, lixeiras, caixas de fósforos, elevadores, por email, performance, musicada.
“O Sesc busca contemplar as diferentes formas de apresentação do texto, levando a literatura para lugares inusitados. Existe, hoje, a discussão sobre se o livro vai desaparecer, mas nós apostamos que ele sempre terá o seu espaço e irá conviver com outras tecnologias”, explica o assistente de literatura da gerência de ação cultural (GEAC) do Sesc São Paulo Francis Manzoni. Outros projetos do Sesc (ver boxe Diferentes Leituras), como a Biblioteca Líquida, Estante Viva e Manual de Invenção, também suscitam a reflexão acerca dos caminhos da literatura.
Em São Paulo, uma outra tendência recente é a realização de saraus nas periferias, que também funcionam como possibilidade de experimentação literária. É o caso do Sarau da Cooperifa, comandado pelo poeta Sérgio Vaz, que realiza anualmente uma noite de “Poesia no Ar”.
No último mês de abril, 500 bexigas de gás hélio foram distribuídas para que os escritores prendessem suas poesias e as soltassem no céu de São Paulo. O poeta e agitador cultural Robinson Padial, mais conhecido como Binho e idealizador do Sarau do Binho, é outro incentivador da poesia. “O sarau não é só um espaço de contemplação, mas pede uma postura ativa.
A partir do momento em que você tem a palavra e se expressa, está se colocando no mundo e isso tem uma simbologia muito forte”, explica Binho, que também foi responsável por uma intervenção, em 1997, denominada “postesia”, que consistia na utilização dos postes como suporte para poemas curtos. “Você passa a dividir a poesia com outras pessoas e o legal é interferir na paisagem de forma que isso gere reflexão.”
A metrópole paulistana também é palco de uma experiência pioneira no país. O projeto Poesia no Metrô teve início em outubro de 2009 e segue até hoje em cartaz, com curadoria dos poetas Carlos Figueiredo e Claudio Willer. Durante a mostra, foram expostos 42 poemas, em 56 espaços nas paredes de 12 estações das linhas 2-verde e 3-vermelha; e 36 trechos de poemas dentro dos vagões.
Para a primeira edição foram selecionados textos de 21 poetas da língua portuguesa, entre eles Camões, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade e Augusto dos Anjos. De acordo com uma estimativa realizada pelo metrô, seriam mais de 3 milhões de possíveis leitores diariamente.
“Fizeram uma pesquisa na praça da Sé questionando se as pessoas queriam ir pro céu e 13% disseram que não. Nós fizemos uma outra pesquisa sobre quem gostaria que a poesia no metrô continuasse e o resultado foi acachapante, com 98% de sim. Então, as pessoas querem mais o projeto poesia no metrô do que ir para o céu”, brinca Carlos Figueiredo. A segunda edição do projeto busca patrocínio e irá contemplar 20 poetas do século 20.
revolução da informação
A tecnologia e, principalmente, a internet trouxeram à tona a discussão sobre o acesso irrestrito às informações. Esse caráter democrático da rede também traz o problema da seletividade, pois um texto leva a outro, sem qualquer tipo de filtragem, já que todos se tornam informantes.
Para Glauco Mattoso, o internetês – linguagem abreviada criada na rede – e a credibilidade muitas vezes duvidosa da informação são as principais desvantagens da internet. No caso da obra literária, o leitor também se torna escritor e traz novos sentidos aos textos, que passam a ser comentados, às vezes diretamente com o autor. “Acho o fenômeno dos fãs um dos mais impactantes trazidos pela tecnologia.
Isso implica um leitor novo, que reinventa a obra e se sente autorizado, inclusive, a mexer naquele texto. É uma forma de participação meio que entre a crítica e a leitura”, explica Heloísa Buarque de Hollanda, que é uma das curadoras do projeto “Oi Cabeça”, iniciado no dia 18 de maio, no Rio de Janeiro, com periodicidade mensal, até dezembro, composto de debates temáticos sobre perspectivas para a literatura.
Os incontáveis blogs espalhados pela rede também servem de suporte para textos literários que, muitas vezes, são consistentes e conquistam milhares de leitores. É o caso, por exemplo, da escritora Ana Paula Maia, que publicou Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, em capítulos, através de seu blog; depois do sucesso na internet, o livro foi editado em versão impressa pela Record.
As diversas redes sociais, como o Facebook e o Twitter, também se apresentam como espaço de troca literária e funcionam até mesmo como suporte para novos textos, mesmo que em até 140 caracteres, como é o caso do Twitter. O poeta Chacal, que finaliza um livro com diversos trechos que haviam sido publicados no Facebook, aprecia o espaço aberto e democrático criado pela internet.
“O que eu fazia com o mimeógrafo para 100 pessoas consigo fazer, através de um post, para muito mais gente. Eu mesmo coloco em circulação, sem pedir licença para ninguém. É um mimeógrafo contemporâneo”, explica.
O acesso quase irrestrito à informação ainda vem sendo assunto de muitos debates, em torno dos impactos que essa revolução pode trazer para as futuras gerações.
“Acho muito interessante, porque passa a não ter mais aquela hierarquia de a informação vir apenas das redes poderosas de televisão, jornais etc.”, afirma Chacal. Para a pesquisadora e crítica literária Beatriz Resende, ao mesmo tempo em que o acesso é facilitado, o acúmulo de informações se torna menos importante do que a sua articulação.
“O conhecimento realmente mudou, pois ele não vai mais ser medido pela quantidade de informação, mas sim pelo espírito crítico, pela relação que se tem com ele. De certa forma, isso é muito político”, explica. Nesse sentido, cria-se uma expectativa a respeito de como essa sociedade da informação irá se organizar nos próximos anos. Para Beatriz Resende, “esse acesso absoluto ao conhecimento desestabiliza o poder. Por isso que o saber é sempre a última coisa a ser democratizada, porque ele representa o poder”.
Diferentes leituras
Sesc São Paulo reúne iniciativas que propõem reflexões sobre o texto escrito e outros suportes literários
Com uma extensa e variada programação literária, o Sesc São Paulo se tornou referência para escritores e apreciadores dessas iniciativas. Além de buscar maneiras alternativas para difundir a literatura, as unidades do Sesc dão oportunidades para os jovens artistas, que não conseguem espaço no restrito mercado editorial. “O trabalho passa pela experimentação, pelo diálogo contínuo com os escritores e também pela troca com as outras linguagens”, explica o assistente de literatura na gerência de ação cultural (GEAC) do Sesc São Paulo Francis Manzoni.
Para o poeta Chacal, que participou do projeto Boca Suja, de literatura em guardanapos, durante a Mostra Sesc de Artes 2008, “a importância do Sesc se dá, principalmente, ao permitir certa profissionalização do escritor que está começando, de uma maneira que ele se estimule e possa desenvolver sua linguagem”. A seguir, alguns projetos voltados à literatura do Sesc São Paulo.
• Biblioteca Líquida: Durante a Mostra Sesc de Artes 2010, de 18 a 28 de novembro, esteve em cartaz a instalação Biblioteca Liquida, em que sete escritores brasileiros renomados escreveram livros curtos e inéditos apresentados em um suporte digital, que é uma interface manipulável por gestos. Com curadoria do escritor Marcelino Freire e técnicos do Sesc, a mostra também propôs a discussão da autoria e das formas editoriais tradicionais, ao trazer obras de autores não identificados. “Tivemos a intenção de brincar um pouco com esse interesse exagerado em torno da figura do autor”, conta Francis.
• Estante Viva: A cada mês, um escritor convidado seleciona livros marcantes em sua trajetória presentes no acervo da biblioteca do Sesc Belenzinho. Essa seleção fica disponível por um mês, em uma estante do autor no local, e é comentada em um encontro com leitores. “É uma maneira de aproximar o leitor do autor e também de criar vínculos entre acervo e programação do Sesc”, explica Francis. Neste mês, a estante é do escritor Evandro Affonso Ferreira, que conversa com o público no dia 22.
• Manual de Invenção: Um dos eventos do Circuito Sesc de Artes, que acontece de 01 a 19 deste mês, o Manual de Invenção – Intervenções em Pôster Arte é uma iniciativa do poeta mineiro Heik Pimenta, em parceria com a artista visual carioca Cássia Lyrio. Os dois passarão por 13 cidades do interior paulista, onde vão produzir cartazes, feitos em tempo real, no espaço público, através de poemas curtos, desenhos, pinturas, colagem, fotografia e outras técnicas. Os pôsteres serão fixados em muros, postes e outros locais, e deixados nas cidades como resultado da visita. Mais informações no Em Cartaz desta edição. ::