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A montanha está lá

Postado em 01/02/2000

Sílvio Luís França



Sir Edmund Hilary, o primeiro homem a pisar no topo do Monte Everest, a montanha mais alta do planeta, foi indagado por que tanto sacrifício para tal feito. Gentilmente, ele respondeu:

- Porque a montanha está lá!

Apesar das sucessivas agressões e transformações sofridas, a natureza exerce uma irresistível atração sobre o ser humano. Desde as suas origens, o homem tem demonstrado essa inclinação inata para desbravar terras e mares, mapear e povoar o mundo.

Nos anos de 1960, os processos de mudanças pelas quais o mundo passou, incluindo costumes e valores, tecnologias e reivindicações contraculturais, orientalismo e seu universo místico, estimularam o surgimento de novos nômades, para os quais a natureza passou a ter um papel fundamental, fosse como bem, fosse como qualidade de vida.

As preocupações com a ecologia fizeram ganhar força o chavão "conviver com a natureza", fato que incentivou milhões de pessoas a nela buscar os mais diversos prazeres. Nesse universo, o esporte ao ar livre ganhou um papel de destaque, pois abriu-se à possibilidade de práticas diversas, usando meios e ambientes naturais. Assim, antigas práticas foram recicladas e outras criadas.

Caminhadas, escaladas de montanhas, descidas de rios em botes de borracha, asa delta e parapentes, exploração de cavernas, entre tantas outras atividades, começaram a se constituir em programas de fim de semana de aventureiros amadores, desenvolvendo também um próspero mercado de produtos.

Esse ramo tem crescido tanto em opções que sua parcela de participação no lazer das pessoas vem assumindo proporções gigantescas, visto o número de agências que promovem os mais variados tipos de programas de aventura e de passeios para todas as faixas etárias e interesses.

Simultaneamente, encontramos um segmento de pessoas que, estimuladas pela mídia em geral e por programas esportivos direcionados, buscam neste tipo de atividade um grau de desafio que os diferencie, nas quais não baste simplesmente escalar uma montanha ou descer uma corredeira em bote, mas fazê-lo em condições de risco, a fim de valorizar o ineditismo e a dificuldade da façanha. Como tudo tem um preço, a tragédia, muitas vezes com conotações shakespeareanas, cobra sem dó o ônus devido, levando vidas ou causando traumas que acabam exercendo um papel de estímulo ou de mística em torno de um determinado desafio. É o caso típico da montanha K2, a mais perigosa do mundo, cujo grau de complexidade de escalada alimenta uma estatística macabra e, ainda assim, incentiva novos candidatos. A cada três alpinistas, um morre. No Monte Everest, para cada quatro, temos um caso fatal.

O risco, antes sinal de cuidado e preocupação, tem servido de componente motivador para alguns praticantes de esportes extremos pelo status que lhes confere o meio, pela fama e possibilidades publicitárias. Nestes casos, em que o exagero prevalece, nos esquecemos do prazer do esporte e de seus benefícios para a saúde corporal ou psíquica.

Restrita somente a pessoas bem treinadas e equipadas, os esportes de risco tinham um universo muito mais limitado até pouco tempo atrás. Hoje, no entanto, esse segmento já adquiriu contornos comerciais sérios, em que o objetivo é garantir ao interessado sensações antes restritas a poucos aventureiros como, por exemplo, alimentar tubarões de dentro de uma gaiola, escalar o Everest sem oxigênio suplementar ou, com pouca ou nenhuma preparação física e psicológica, enfrentar maratonas em desertos e florestas, expondo o corpo às mais duras privações e situações de estresse. Em nome do quê? Talvez de uma auto-afirmação ou do desencanto com as características que os esportes mais tradicionais vêm adquirindo. Cremos que, por mais que se brinque com a vida, nada substituirá a prática de uma atividade física prazerosa.

Sílvio Luís França é assistente técnico da Gerência de Desenvolvimento Físico-Esportivo

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