Postado em 08/12/2010
De caráter elaborado e concepção criativa bastante sofisticada, as composições eruditas – como as do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e dos alemães Ludwig van Beethoven (1770-1827) e ?Johann Sebastian Bach (1685-1750), para citar três dos nomes mais conhecidos – permanecem atuais em sua capacidade de sensibilizar plateias. No entanto, tanta qualidade e sofisticação acabaram levando muitos a pensar, ao longo do tempo, que a música erudita exige um conhecimento aprofundado ou até mesmo uma sensibilidade especial para que sua rica estrutura possa tocar não somente os ouvidos, mas também a alma do assoberbado homem contemporâneo – invadido por sons e imagens em tempo integral.
Segundo explica o maestro João Maurício Galindo, diretor artístico e regente titular da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, os concertos públicos – ou seja, fora dos salões da nobreza – começaram a surgir a partir da segunda metade do século 18 e, no século seguinte, já se podia encontrar diversas salas especializadas, fazendo da música erudita uma opção de lazer mais democrática.
“Era uma época em que existiam pouquíssimas opções”, informa Galindo, também criador e apresentador dos programas Pergunte ao Maestro e Encontro com o Maestro, ambos na Rádio Cultura FM e voltados justamente à uma (re)aproximação com a música erudita. “Não tinha energia elétrica, você não podia ir ao cinema, não se ouvia música em casa, não tinha futebol, espetáculos ao ar livre. As opções eram ficar em casa lendo, conversar com os amigos ou então ir a um concerto.”
Deseducação musical
O maestro explica também que esses conceitos deram seus primeiros passos rumo à popularização movidos pelo surgimento da classe média na Europa, um dos desdobramentos da Revolução Francesa (1789-1799) – que acabou com a monarquia na França e desencadeou uma mudança parecida em quase toda a metade ocidental do continente.
“Ou seja, à medida que ia aumentando o número de pessoas dessa classe social”, afirma.
Porém, mesmo antes disso, um estilo hoje considerado parte do universo erudito já se mostrava bastante popular fora da aristocracia: a ópera. “Era comum em algumas cidades da Europa existir um teatro de ópera da elite e outro do povo”, declara Galindo. “Em Viena, por exemplo, no século 18, tinha o Teatro Imperial, frequentado pelos nobres, e havia a ópera popular. Na Itália também. A ópera, nos séculos 18 e 19, era mais ou menos como a novela hoje.”
A diferença, explica o também diretor artístico da Orquestra Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo, é que na época de Beethoven e Mozart o público tinha outras características. “A plateia era de músicos, pois naquela época todo mundo tocava um instrumento, fazia parte da educação.”
Segundo o especialista, em países de maioria protestante, como a Alemanha, era hábito ouvir canto coral nas igrejas, enquanto a classe média recém-surgida, quando queria ouvir em casa a música dos concertos, só tinha uma saída: tocá-la ela mesma. “Em geral se comprava um piano porque era um instrumento mais completo”, retoma o maestro. “Hoje em dia isso não existe mais, mas até os anos de 1960, 1970 era muito comum encontrar piano nas residências. Sendo assim, o público que ia assistir a concertos era um público que conhecia a linguagem musical”.
Com a chegada do século 20, e de suas evoluções tecnológicas, a música sofreu um sobressalto. “No século 20 surgem o rádio e o fonógrafo”, continua Galindo. “Aí ficou mais cômodo comprar o disco ou ouvir rádio do que ficar horas por dia estudando violino, piano ou flauta.” Ou seja, em vez de propiciar uma difusão maior do estilo, o tiro saiu pela culatra. “Criou-se um público de ‘analfabetos musicais’, por isso a música erudita ficou difícil”, completa.
Descomplicação
Mas “perder o medo” não é difícil, segundo o maestro. Ele recomenda “curiosidade e contato com vários estilos musicais”. Uma dobradinha que, na sua opinião, tem surtido grande efeito entre os jovens. “O Projeto Guri, que atende 40 mil jovens no estado de São Paulo, ensina violino, flauta, violão, percussão, canto coral”, exemplifica. “Há outros projetos, como o do Instituto Bacarelli, na favela de Heliópolis. Você não imagina o universo de pequenas bandas de colégio, fanfarras, locais onde a garotada tem contato com o ato de fazer música – não somente a erudita, a popular também.”
De acordo com a pianista Marina Brandão, é comum que novos ouvintes de música erudita surjam a cada apresentação quando o objetivo é promover essa aproximação. “As pessoas vêm me falar que não gostavam desse tipo de música, mas que saíram de lá com outra ideia”, conta. “Elas acham que se trata de uma música elitista. Já conheci até quem tivesse medo de entrar no Teatro Municipal. Por isso a chave é saber como formar um público, como montar um programa com peças mais acessíveis sem perder o nível.”
Essa é uma das tônicas da série de espetáculos Aprendiz de Maestro, uma realização da Tucca – Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer, e que conta com a direção da atriz e diretora Regina Galdino e com a participação do maestro Galindo e da atriz Andrea Bassit. A iniciativa surgiu em 2002. “É um projeto de música clássica para criança”, esclarece Andrea. “São concertos didáticos, em que a gente fala sobre tudo referente à música erudita: instrumentos de sopro, de corda, de percussão, como é dividida uma orquestra, qual a história dela.”
Fazem parte do repertório do projeto adaptações de obras como os balés do compositor russo Tchaikovsky (1840-1893) – A Bela Adormecida, O Quebra-Nozes e O Lago dos Cisnes – até a famosa ópera A Flauta Mágica, de Mozart, além de episódios sobre alguns compositores e peças como Allegro, um Boneco sem Concerto, do qual participou o ator Cássio Scapin.
“Uma das características desse projeto é ter aliado a música erudita ao teatro”, analisa Andrea. “Porque às vezes você vem com uma situação de bom humor, você fala, por exemplo, da vovó e ela está ali, então as pessoas vão se identificando, vão se sentindo inseridas naquele contexto, e talvez isso abra um canal mais direto com elas.”
Mesmo sendo voltadas para as crianças, as apresentações acabam conquistando também os adultos, pais e professores. “O público adulto tem crescido muito”, informa a atriz. “E também a Regina Galdino, diretora, é muito atenta em não fazer a coisa ficar enfadonha. Isso ajuda a trazer o espectador para o teatro e a quebrar esse mito de que tudo é muito complicado no mundo erudito.”
Osesp Itinerante
“Descomplicar” o universo da música erudita também é um dos objetivos que estão por trás do projeto Osesp Itinerante, realizado pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Em sua terceira edição, a turnê percorre 19 cidades do interior do estado, região metropolitana da capital e ABC paulista, oferecendo uma programação que inclui concertos ao ar livre, oficinas de instrumentos com músicos da orquestra, cursos de apreciação musical e apresentações de música de câmara e canto coral.
O Sesc é parceiro da Osesp na iniciativa, realizando parte dessas atividades em suas dependências, no caso das cidades onde a instituição está instalada, e apoiando a produção mesmo onde não há unidades. “O Sesc dá apoio logístico, ajuda no contato com as prefeituras e na produção do evento”, explica Sérgio Pinto, assistente da Gerência de Ação Cultural (Geac) para música. “Atuamos, enfim, como co-realizadores dos espetáculos em parceria estrita com a Fundação Osesp.”
O projeto encerrará a agenda de 2010 com uma apresentação, no dia 12 de dezembro, na Praia do Gonzaga, no município de Santos, litoral do estado. O espetáculo, gratuito, está marcado para as 19h30, e a regência será de Yan Pascal Tortelier.
Modelos de aproximação
Unidades do Sesc São Paulo incluem música erudita na programação para aumentar o repertório do público
Uma das premissas da programação artística do Sesc São Paulo é o respeito às mais diversas manifestações. Sem restrições a gênero ou estilo. “Isso reflete a diversidade da produção artística brasileira, em especial a musical”, afirma Sérgio Pinto, assistente da Gerência de Ação Cultural (Geac) para música. Segundo Sérgio, como a música tem importância “grande presença na nossa cultura”, é natural que as iniciativas na área, em todas as unidades do Sesc, reproduzam essa diversidade e peso. “O volume de nossa programação é mais um reflexo da importância que a música tem na cultura brasileira”, diz.
Dentro dessa filosofia, a música erudita aparece justamente para contribuir com a formação de plateias. “A produção de música erudita é razoavelmente bem resolvida no Brasil”, retoma Sérgio. “Dessa forma, se atuamos nessa área, não é no sentido de atender a demandas deste meio, mas sim muito mais uma obrigação nossa para com o público. Para a formação de um repertório, para uma aproximação com a linguagem. Nossos esforços vão sempre para essa direção.”
Entre os exemplos de programações oferecidas pelo Sesc, Sérgio destaca iniciativas do Sesc Santo André, que apresenta mensalmente o projeto Um Instante, Maestro!; do Pinheiros, que realiza espetáculos quinzenais do gênero; e das unidades Interlagos e Itaquera, que, numa parceira com a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, unem música popular e erudita na série Som em Sintonia. “Um dos modelos de nossa programação, como nos projetos de Santo André e Pinheiros, é trabalharmos com um consultor, que serve tanto como um curador, para selecionar os trabalhos e as propostas, como também um mediador junto com o público”, esclarece.
A última edição do projeto de Santo André apresentou, no dia 21 de novembro e sob direção e comentários do maestro Sérgio Assumpção, o trabalho do Quarteto Guit’Ars, que explora o universo musical camerístico para quatro violões. A atividade do Sesc Pinheiros, que se concentra em solistas e pequenos conjuntos, trouxe, no dia 24 de novembro, o pianista Marcelo Verzoni apresentando peças do compositor alemão Schumann (1810-1856).
Já as últimas edições do Som em Sintonia ocorreram apenas no Sesc Itaquera. A mais recente delas, realizada em julho, reuniu os jovens músicos de Heliópolis com o rapper Rappin’ Hood. “Alguns desses concertos [do Som em Sintonia] circularam por unidades do interior e litoral também”, informa Sérgio Pinto. “Esse outro modelo procura unir o universo da música erudita com a popular, esse poder de atrair para o concerto, e mostra um pouco também do trabalho da orquestra.”