Fechar X

Ficção
Teu Segredo: Os Nomes

Postado em 01/02/2000

por Maria Lúcia Medeiros

Para trás! Era o veredicto final e ela sabia. Grito de guerra finda, o conquistador injustamente posto, o esgar da vitória manchada, a fragilidade do inimigo à mostra e nem misericórdia tinha o Gigante erguido, mil pés de altura e vencedor.

Se pelo menos o campo de batalha fosse um vasto campo e se estendesse a perder de vista ou se fosse todo ele em verde ou ainda sendo verde fosse um vale com encostas onduladas para que melhor se ajuntasse a multidão, se multidão coubesse. Mas a batalha se dava em campo tosco, uma mesa comprida, um quadro da Santa Ceia, um gato de louça, a Frigidaire.

Muda paisagem, assistência amordaçada, um gato surdo, apóstolos aprisionados, o Gigante em desassombro e o outro desfibrado a engolir derrotas e malogros. Pendente, a lâmpada oscilava e ela sabia que eram os movimentos da batalha a desequilibrar a luz. Ora o campo em trevas e o horror crescendo, ora o campo em claros e o fracasso exposto. Expostos a seus pés, seus duros pés já vencidos pelo grito.

Indignar-se quando a tarde havia sido calma e à saída do trabalho pudera demorar o olho expectante no tabuleiro de jambos e vir a ser a compradora exigente sem um tostão no bolso.

O homem que sempre estava ao pé do poste de iluminação e que derramava um desejo viscoso pelo canto do lábio lá estivera outras vezes mas naquela exata tarde nem sombra dele. Por isso o coração não disparou e pôde até erguer mais a cabeça, demorar-se diante da vitrine da Casa Salomão, tossir um pouco e alto para confirmar-se livre e sem medo.
Indignar-se depois de ter parado junto ao vendedor de amendoins, restituído alguns pedaços de conversa e ter encontrado o jeito certo de não entristecer-se e ainda e ainda...

Indignar-se, revolver-se, humilhar-se aos pés do monstro vociferante quando até conseguira encarar o rapaz debruçado na janela, pêlos no peito, olhá-lo e esperar a piscadela, arrepiar-se.

Negro barco sem luz agora, chegar-se para o canto, entrincheirar-se atrás da mesa, encobrir-se, nausear-se.

Se ao menos pudesse proteger com o corpo o movelzinho, morada de papéis, tesouro retirado do fundo do mar e guardado em segredo para fugir da fúria do Gigante...

Mas naquela tarde era o avesso das coisas como sempre fora, de preferência assim, em tardes claras, para que o mundo se mostrasse a ela um poço de escuridão inevitável. Em meio a náusea, clarões: árvores da praça curvadas pela chuva, o céu encoberto, as vozes distantes.

E esse Gigante endemoninhado à sua frente, dentes pontiagudos à estrada da grande fornalha a regozijar-se com o pavor que corria pelas veias.

Mais adiante outro clarão e, então, via-se morta ardendo entre círios, liberta para sempre do olho do Gigante, perscrutável. Sonhava, entre clarões, ter o mérito de apagar-lhe a vida, vê-lo morto, caído a seus pés. Veria.

Para trás! Limoso chão e escorregadio, a trincheira armada e ela entrincheirada, o olho escorrendo angústia por sobre as tábuas da mesa, pedindo que alguém viesse em seu socorro, surgisse do nada qual milagre, aparecimento santo.

Mas agora era o frio aterrador. Defender-se dele, quem poderia? Brotava o suor gelado, o Gigante firmava o olho na testa porejante e mais e mais se erguia e o chão tenteava, fugia-lhe dos pés. Os gritos iam para longe como se longe ele estivesse.

A Santa Ceia, os apóstolos e ela tão sozinha em campo aberto, a voz sem sair, ninguém para acudi-la ou ver o desregramento e protestar, vir em socorro. Sumiam todos, ninguém se arriscava interpondo-se entre eles dois, ninguém.

Só não cairia de joelhos, ah, isso é que não. Por que força e poder se juntavam para esmagá-la? Sabia de outras gentes de sua idade que estariam àquela hora atravessando bosques, caminhozinho aberto de frente para a felicidade.

Mas o mar, o mar tem rotas fundas. Restava-lhe o Altíssimo, o Criador de Todas as Coisas que não a deixaria morrer sem luz.
Disfarçar o medo quisera, saber dissimular o pavor e em colossal demonstração de força, abrir portas e janelas, desaparecer para sempre no meio da noite, ser só a narradora de histórias de velamento, páginas de segredo, evadir-se. E longe, muito longe deixar correr o véu do esquecimento, sepultar.

Haveria de conseguir um dia, talvez fosse até em tarde clara como a que assistira há pouco, o vento nas pernas, o torpor da felicidade, êxtase na caminhada pelas ruas.

Aniquilar-se enquanto a tarde desaparecia sem suspeitar do embate em campo tosco. Sentir-se esmorecida e revolver feridas, o sacrifício oferecido a ninguém, um tributo pago ao nada e ainda assim tentar viver, aceitar os fados, resistir.

A cada movimento desordenado ver a lâmpada acima de sua cabeça acender o desejo de ouvir os ruídos da rua e distrair o Gigante para pôr fim à batalha.

Correr os olhos pelo céu, aprender os números mágicos da escalada, inventar clareiras e não esmorecer, resistir.

Bateram à porta três vezes. Lá fora alguém suplicava um pedaço de pão. Desfez-se o Gigante em gestos de aplacar a fúria a obrigá-la a entregar o pão a alguns mendigos que passavam. Desfez-se a tempestade, varreram-se as cinzas para mudar a paisagem.

Assim ela fez apertando os lábios para esmagar o ódio, a andar meio cambaleante até lá fora para esmagar também o desejo de partir com ele e bater a cada porta. Mendigar.

Ontem sonhavas. E desvencilhavas teu corpo para apressar tua marcha, as casinhas a passar, música de rádio saindo das alcovas.
A rua, aquela rua que enfrentavas de punhos cerrados, era teu longo caminho de todos os dias e por ela seguras, teu sangue a derramar.

Teu abatimento, o usufruto das horas aflitivas, o teu desassossego sustentavam o estandarte da tua desventura. Vigiavas teu flanco esquerdo, o Gigante era infinitamente mais poderoso e viria a qualquer momento para te apunhalar.

O pressentimento te fazia marchar apressadamente, evitar olhar as pessoas, fugir dos automóveis e de Deus e seus desígnios. Temias que o Gigante te segurasse pela roupa e te obrigasse a revelar teu segredo, os nomes todos, as sílabas claras, o começo da história. Tua mão úmida de medo.

Acontecia de ouvires teu nome mas nem isso te fazia voltar a cabeça. Suportavas o frio na espinha e quando a respiração se tornava ofegante demais, paravas em uma soleira qualquer e vomitavas teu nome também.

Avistar a igreja já te acalmava o coração. Pelo menos ali estavam todos presos pelo mesmo fio, coerentes, corpos unidos, o medo diluído, a fé.

E te enfiavas entre os fiéis para ouvir alguma palavra que não fosse aquela que seria proferida quando transpusesses o patamar.

Sempre havia alguém que, sem parar de rezar, te examinava da cabeça aos pés obrigando-te a recuar. Atos de contrição rolavam das bocas fantasmagóricas e recuavas.

Contavas e recontavas a um canto teus ganhos e muitas perdas acumuladas sempre com um sorriso de humildade porque querias ir até o fim, porque acreditavas no Juízo Final.

Ontem sonhavas. E, despossuída, tua marcha arrefecia, cambeleavas para ouvir os hinos e olhavas todos como a teus irmãos enquanto a cidade adernava no escuro.

Ontem sonhavas. E não precisavas mais sucumbir às pressões do corpo, flutuavas junto com ele, ao longe os arrecifes, tua alma banhada. Improvável, tua caminhada se fazia das dezenas de vezes em que evitavas olhar para trás, receio de que o calor da fornalha anunciasse o Gigante cravado ao teu calcanhar para que nada e nem ninguém empurrasse teu corpo para frente, a certeza de lume a mil metros de distância.

Ontem sonhavas. Teus pertences, tuas sílabas de segredo, palavras inventadas em jogos de solidão, jeito de desvencilhar-se das perplexidades.

Atada a um círculo de medo te davas conta de que o desfalecimento vinha chegando, tu que desejavas tão pouco, só a certeza de lume a mil metros de distância.

Ontem sonhavas e esperavas para descansar entre atos, instante em que arrancavas a armadura e te abrigavas na sombra da árvore que esparramava os galhos para o meio da rua. O sol mergulhando por trás das casas e as casas com as varandas expostas por onde saíam os sons que te devoravam. O interior das casas te devorava.

Refugiada na sombra teu olho embaraçado lambia as feridas do homem agachado ao rés da porta enquanto aflorava, incontrolável, o desejo de nascer de novo para fugir dos malefícios e dos furores.

A sombra que te arrefecia não arrefecia o Gigante a manobrar sorrateiro, a te apertar a garganta, ameaçador.

Afundavas, então, nas trevas porque as luzes todas restavam lá do outro lado, do lugar de onde regressavas, excluída todas as noites do Paraíso que era a cidade feita de letreiros, a sedução das luzes e dos aromas adocicados das sorveterias.

As imagens das cidades pregadas nas tuas costas a confirmar que o Paraíso ficara lá, um homem fumando cigarros Colúmbia enquanto um rapazinho lustrava o Studebaker estacionado entre as folhagens do jardim.

Hora de enxugar o suor e experimentar outra vez juntar todos os episódios, refazer a narrativa insensata, penetrar uma vez mais nos labirintos dos recomeços.

Holocausto e êxtase que te faziam alargar os passos e esperar que a locomotiva passasse resfolegando entre fumaça e fogo para que o cheiro do carvão sufocasse em ti outros cheiros e o rosto do Gigante desaparecesse no negrume.

Linhas de trem!

Velhas riscas no chão poeirento por onde porfiavas combatendo às cegas duas mil cabeças de Gigantes repulsivos. Linhas de trem! Fronteira do nada, barragem erguida diante de ti para conter as águas do teu prazer, para te fazer recuar, claudicar, perder terreno.

Mas havia trégua e nessa trégua oferecida pelo Gigante que então sorria, a cidade te caía aos pés em ruas submissas ao teu sonho e então sonhavas.

Hora em que se ofereciam, irmanados, estátuas e chafarizes, esquinas encantadas. Deslizavas tua carruagem por sobre as pedras visitando aléias, ruelas, arabescos que tu surpreendias nos gradis de ferro, nos portões.

Tua carruagem, puxada por cavalos saídos das águas da baía, deixava em sobressalto as donzelas que se recolhiam cerrando os postigos, assustadas.

Antecipavas os malabarismos e, de puro gozo, estalavas os chicotes na tarde tropical coberta por céu caótico, sinais de chuva com sol no Paraíso. Evoluídas por entre árvores gigantescas e em trote glorioso descias em direção ao rio e, em suspiros de contemplação, saudavas as torres das igrejas, volutas e portadas memoráveis.

Revés da sorte, a noite enfim chegava, soava pesada a tua hora, a de abandonar tua sege em via estreita e conduzir cavalos ilusórios ao pasto do desalento.

Linhas de trem! De longe ouvias os gritos da louca encarcerada pelo Gigante e assim olhavas pela derradeira vez as portas do Paraíso e então sonhavas.

Tua noite inacessível. Teus braços abertos.

Maria Lúcia Medeiros é escritora, autora de Velas. Por quem?, entre outros

Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)